sábado, 12 de novembro de 2016

PARANOIA COM O ESTADO DO CORPO SÓ VAI PIORAR COM O PROGRESSO DA CIÊNCIA

Mark Zuckerberg, o rei do Facebook, pretende investir US$ 3 bilhões para curar todas as doenças existentes na Terra.

Não sei como é possível levar a sério uma proclamação dessas: acreditar que as maleitas existentes desaparecem por obra e graça de US$ 3 bilhões só faz sentido na cabeça adolescente de um eterno adolescente como Zuckerberg. Mas entendo a ambição dele e a moda em que ele se inspirou.

Semanas atrás, a revista "The Economist" dedicou amplo espaço ao assunto: e se, no futuro próximo, for possível prolongar a vida humana até aos 120 anos (mínimo)?

E se novos tratamentos permitirem substituir órgãos finitos (coração, rins, fígado etc.) por novos exemplares a partir do nosso "armazém" genético?

Enfim, e se a imortalidade estiver ao alcance do engenho humano?

A "The Economist" concede o benefício da dúvida para todas as utopias da ciência e depois alerta para dois problemas, para além dos óbvios (demográficos, econômicos, ambientais etc.).

Em primeiro lugar, só vale a pena viver mais quando se vive bem (os autores clássicos sabiam disso; será preciso lembrar o destino da Sibila de Cumas?).

Por outro lado, os tratamentos anti-envelhecimento teriam que estar disponíveis para todas as bolsas. Caso contrário, haveria um fosso ainda mais intolerável do que aquele que separa pobres e ricos; seria o abismo entre seres mortais e imortais.

Fatalmente, a revista esqueceu um efeito perverso mais imediato: se a morte por "causas naturais" se transformar em artigo raro, que espécie de conduta teria a humanidade para evitar todas as outras fatalidades (crimes, acidentes etc.) que poderiam acabar com uma vida teoricamente infindável?

Hoje, a paranoia com o estado do corpo excede os limites da sanidade. Num mundo de seres (quase) imortais, imagino que essa paranoia hipocondríaca seria tão aguda que só o suicídio seria capaz de nos aliviar.

*

"Nasci adulta e morrerei criança" –assim falava a escritora lusa Agustina Bessa-Luís (que tem o seu "Breviário do Brasil" finalmente editado pela Tinta da China). Essa confissão, no melhor espírito Benjamin Button, começa a fazer sentido quando chego a meio da jornada (escrevo "meio da jornada" com a esperança razoável, ou talvez irrazoável, de ter mais 40 anos pela frente).

Isso é visível nas pequenas rotinas: observo o meu filho (de 15 meses) e compreendo a beleza daquela vida. As dormidas. As comidas. E as tropelias que ele gosta de fazer nos entretantos.

Então olho para mim e concluo que não é apenas ele que é parecido comigo (fisicamente). Eu também sou parecido com ele (espiritualmente). Deplorava um prato de sopa - e agora não consigo viver sem ela. Deplorava a perda de tempo com o sono - e agora não dispenso a minha sesta.

E, em matéria de tropelias, o velho sentimento de culpa que sempre me acompanhava quando havia trabalho para fazer deu lugar a um ócio limpo, lúdico. Infantil.

Mas não é apenas nas dormidas e comidas que me torno mais jovem à medida que envelheço. Ainda me lembro do meu horror ao sol. Adolescente pretensioso, repetia mentalmente as palavras de Paulo Francis ("Intelectual não vai à praia; intelectual bebe") e hibernava durante o Verão.

Quando o Outono chegava, como agora chega ao hemisfério norte, saía da toca e, ao som de Tony Bennett ("Maybe September / I'll Love Again"), recebia as primeiras chuvas como certas tribos primitivas: grato e festivo. Só faltava dançar.

Não mais. Essa alegria está reservada para a Primavera, que agora chega ao hemisfério sul; e atinge o seu apogeu quando há calor e areia e mar.

Não sei que estranhos comportamentos me esperam no futuro. Mas se o leitor irónico está a pensar nas fraldas que as crianças também usam, só posso responder: não excluo nada até lá chegar.

*

Em inícios do século 20, Thomas Hardy (1840 - 1928) escreveu um dos seus poemas mais perturbantes. Intitula-se "God's Funeral" e, como o título indica, é uma marcha fúnebre sobre o enterro de Deus.

Os homens, em perfeita evocação de Feuerbach, falam do "defunto" como uma projecção mental dos medos e frustrações da humanidade. Mas palpita ainda entre alguns dos presentes a nostalgia da crença - os dias que começavam com a oração dos simples e o sentimento de confiança que repousava sobre eles.

No poema, Thomas Hardy junta-se melancolicamente ao cortejo. Não é possível defender o indefensável depois do triunfo do materialismo e do niilismo.

Uma pergunta, porém, resiste ao enterro: se Deus está a sete palmos, que será dos homens que ficam cá em cima? Foram vários os teóricos políticos que se ocuparam questão.

No século 18, Edmund Burke (1729 - 1797) já tinha alertado para as consequências da "descrença": os jacobinos atacavam o cristianismo mas os homens, "animais religiosos" por definição, rapidamente procurariam novos dogmas para preencher o vazio interior. A França do Terror e da Virtude, com o grotesco culto do Ser Supremo, foi a resposta sanguinária ao "enterro de Deus".

De igual forma, Alexis de Tocqueville (1805 - 1959) regressaria ao cemitério no século seguinte: se a "era da igualdade" era imparável, a única forma de impedir que a igualdade degenerasse em tirania era aprender alguma coisa com a religiosidade dos americanos –essa espécie de fortaleza interior mas também comunitária que se opunha aos abusos do poder central.

É nesta linhagem que se situa Raymond Aron (1905 - 1983). Sobretudo o Raymond Aron de "O Ópio dos Intelectuais", um clássico que a 3 Estrelas publicou.

Uma digressão: lembro-me de ler algures que uma das primeiras medidas dos bolcheviques, depois da Revolução de 1917, foi substituir nas casas da plebe russa as figuras do Cristo Pantocrator por retratos de Karl Marx. A história talvez seja apócrifa e, aqui entre nós, convenientemente capilar: entre a barba de um e de outro, venha o camponês e escolha.

Mas o episódio, real ou imaginário, capta o espírito da "religião secular" tal como Aron o apresenta: o "funeral de Deus" não deu lugar ao luto prolongado ou à euforia libertadora.

"As necessidades do coração", para usar uma expressão do próprio Aron, rapidamente levaram os homens, e sobretudo os intelectuais, a procurarem os alicerces consoladores de uma nova religião.

O comunismo (e o nazi-fascismo) cumpriu esse papel ao conceder um sentido e um fim para as almas perdidas da modernidade. O proletariado (ou a raça) seria o novo messias; a "sociedade sem classes" (ou um Reich de mil anos), um novo reino celestial; e os intelectuais, os mesmos que transportaram o caixão de Deus até à última morada, surgiam como os guardiões da nova "fé" –e como os "inquisidores" contra os novos "cismas" e os novos "hereges".

Eu sempre soube que o comunismo, o fascismo ou o nazismo eram "heresias" contra a dignidade básica do ser humano. Depois de ler Raymond Aron, a palavra "heresia" ganhou contornos ainda mais precisos, mais literais –e mais letais.
Por: Paulo Pereia Coutinho  Do site: http://www1.folha.uol.com.br/

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