segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

VIVER A VIDA SEM SAIR DO LUGAR


Viver a vida sem sair do lugar
Justina Mintz/AMC 
John Slattery, Jon Hamm, Vincent Kartheiser, Christina Hendricks e Kevin Rahm em 'Mad Men'

Passei a vida com gente dizendo para eu viver a vida. Esse conselho não solicitado era oferecido sempre que eu estava no meu canto, absorto e feliz, com um livro na mão. Na ideia simples dos simples, quem lê não "vive" realmente.

O que implica saber que tipo de "vida" pode ser qualificado de "vida". Respirar o ar puro das montanhas? Passear no shopping? Conversar ininterruptamente ao celular? Ir para as redes sociais e rir alto com imagens de gatinhos que sabem como usar o controlo remoto?

Mistério. Quando escutava esses conselhos, o prazer da leitura era suspenso por uns tempos. E uma culpa absurda descia sobre a minha cabeça egoísta. Que fazia eu com um livro quando havia uma "vida" para viver?

Foram precisos anos e anos de luta contra a estupidez para perceber que o problema não estava em mim. Estava nos outros. Eles falavam da vida que não viviam —e inquietavam-se com alguém que parecia vivê-la mais intensamente, embora sem sair do lugar.

Hoje, tenho os meus compromissos profissionais. Adoro a conversa com os amigos, as viagens com a família e os momentos de absurda preguiça —na cama, no mar, até na famosa montanha.

Mas há sempre a sensação desconfortável de que não estou a viver realmente sem um livro na mão. Mesmo os sentimentos mais nobres —o amor, a compaixão, a justiça— me parecem mais reais e fortes nos romances que li do que nas experiências que vivi.

E se existe alguma consciência pesada não é pelos livros que li. É pelos livros que não li.

"Quando morrer, voltarei para buscar os instantes que não vivi junto do mar", escreveu Sophia de Mello Breyner. Quase subscrevo essa frase. Quando morrer voltarei para buscar os instantes que não vivi junto dos livros. Assim soa melhor.

E quem fala em livros, fala no resto da criação humana. Rebecca Nicholson escreve no "The Guardian" um ensaio primoroso sobre as horas que desperdiçamos com séries televisivas. O verbo, claro, está errado: para Rebecca, o que uns chamam "desperdício" é na verdade uma benção dos céus.

De acordo com uma calculadora da companhia de telecomunicações AT&T, testada pela jornalista, precisamos de 9,1 dias de trabalho (com um horário de 8 horas) para assistir a todo "Mad Men". O mesmo período é exigido por "Game of Thrones". "Dexter", que para mim morreu na 4ª temporada, exige 10,6 dias.

Fui espreitar. Tentei a matemática com as minhas três séries favoritas, mas confesso que não as encontrei. De lapiseira na mão, fiz então os meus cálculos.

"Seinfeld", a mais brilhante comédia da história da televisão, exige 11 dias de trabalho. "The Wire", o mais próximo que a ficção televisiva esteve da grande literatura, consome 7,5 dias. "The Sopranos" vê-se em 10,75 dias.

Por outras palavras: no espaço de um mês, ao ritmo de 8 horas diárias, é possível assistir a três obras-primas que nos acompanham para a vida. E ainda sobram mais 11 meses para respirar o ar puro das montanhas e rir alto com imagens de gatinhos que sabem como usar o controlo remoto.

Passei a vida com gente dizendo para eu viver a vida. O tempo que perdi escutando e matutando esses conselhos foram o verdadeiro e imperdoável desperdício.
Por: João Pereira Coutinho  Publicado na Folha de SP

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