quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

JOSÉ DIRCEU: "SOU UM CUBANO-BRASILEIRO"



O Mídia Sem Máscara republica hoje artigo do historiador Carlos Azambujasobre a trajetória de José Dirceu, um dos delinqüentes maiores da máfia petista, que posa de vítima no caso do Mensalão, do qual foi o grande operador (tendo Lula como chefão) e que agora tem a cara de pau de afirmar que o Caso Rosemary Noronha, no qual seu nome já está envolvido, não é nada mais que uma nova armação de setores conservadores. Enfim, a velha inversão revolucionária de sempre.

Uma análise de “O Último Comboio”, capítulo do livro “A Revolução Impossível”, onde o papel de José Dirceu no terrorismo financiado por Cuba é abordado.

José Dirceu, em setembro de 1988, afirmou: “Nunca fui foquista. Participei da luta armada, apoiei, achava que era necessária, mas na verdade nunca acreditei nela como forma de luta” (página 110 do livro “Abaixo a Ditadura”, escrito por ele e por Vladimir Palmeira).

José Dirceu, em um seminário do Partido dos Trabalhadores, realizado dias 15 e 16 Abr 89, às vésperas da eleição presidencial, já vislumbrando uma provável vitória de LULA, e recordando-se do treinamento militar que recebeu em Cuba, com o nome de “Cmt Daniel”, disse: “Em vez de comandar uma coluna guerrilheira, o grande sonho de minha vida, vou ter que comandar uma coluna de carros oficiais em Brasília”.

No capítulo “O Último Comboio” do livro “A Revolução Impossível”, de autoria de Luis Mir, editado em 1994 pela Editora Best-Seller, 755 páginas, há as seguintes referências a José Dirceu de Oliveira e Silva, o kamarada “Daniel”, que foi militante do PCB, depois da Ala Marighela, depois da Ação Libertadora Nacional, depois do Molipo, e hoje do Partido dos Trabalhadores.

Na página 613: “Se radicara em Cuba depois de sua saída da prisão na lista dos 15 presos libertados em troca do embaixador norte-americano. Amargou um veto logo na chegada quando pediu o ingresso no treinamento militar e na ALN. O responsável pela organização em Havana, Agostinho Fiordelísio, lhe disse que deveria se integrar ao processo com vagar e não de imediato. Havia restrições de parte da ALN à sua figura desde seu tempo como presidente da União Estadual de Estudantes de São Paulo e candidato a presidente da União Nacional de Estudantes: carreirista e pouco confiável politicamente. Era, o que se chamava na época, de um quadro adormecido, ou seja, à espera do que fazer. Quando foi escolhido para a tarefa, estava inscrito no treinamento militar em Pinar Del Río, num grupo de militantes de várias organizações. É isolado para se dedicar exclusivamente a isso. Apresentado por Alfredo Guevara ao ministro da Defesa, Raúl Castro durante uma solenidade, os dois conversaram muito e marcaram um novo encontro. Começou a relação política e militar entre os dois. José Dirceu teve o acesso franqueado por Raúl Castro a documentos importantes sobre estratégia militar, informação e contra-informação, segurança militar. Finalmente, faz um curso e se torna especialista em questões militares. É essa especialização (e mais o treinamento militar) que o torna habilitado, segundo os internacionalistas cubanos, a viabilizar a entrada do contingente guerrilheiro que retomaria a luta. A transformação em quadro político-militar no aparelho internacionalista cubano surpreende a todos. Nos encontros políticos dos brasileiros, na capital cubana, para discutir a realidade brasileira e a caminhada revolucionária, suas opiniões eram vistas com desdém e as propostas que fazia, todas, eram invariavelmente derrotadas”.

Na página 615, um depoimento do também banido, militante da ALN, Agonalto Pacheco:

“O planejador do novo dispositivo político-militar dentro do Brasil foi José Dirceu, que fez tudo sem a menor base na realidade e a partir de Havana. A organização não tinha condições de receber ninguém, não havia a menor segurança. Tentamos discutir isso com Piñero, Valdes, Herrera (obs: respectivamente, chefe e membros da Inteligência cubana). Não pude falar com Dirceu, que vivia isolado. Todos nós que participamos, cubanos e brasileiros, temos que ter uma visão crítica desse processo, humildade revolucionária para assumir nosso papel e nossos erros”.

Na página 617, prossegue Luis Mir:

“O Grupo dos 28” (obs: ou Grupo Primavera ou Molipo-Movimento de Libertação Popular) “como ficou conhecido, eram 32. Destes, morreram 18 (...). Os sobreviventes são Itobi Alves Corrêa, que segundo Agostinho Fiordelísio estava em pânico quando lhe pede para livrá-lo da viagem ao Brasil (vai para o Chile e depois do golpe militar naquele país se radica em Paris); Vinicius Medeiros Caldevilla, que se recusa a embarcar e consegue permanecer em Cuba trabalhando na Rádio Havana; Luiz Araújo, que inicia a viagem de regresso mas deserta em Argel; Ana Corbisier, que entrou no Brasil e com o massacre que se dá, se refugia num convento de Freiras em Salvador, Bahia, trabalhando num revista católica e submergida na mais absoluta clandestinidade por cinco anos; José Dirceu, que retornou para Cuba, onde viveria longos anos trabalhando como quadro internacionalista para o governo cubano; um camponês conhecido como Brechu e Natanael de Moura Giraldi”.

Na página 618:

“Agostinho Fiordelísio confirma que o grupo de estudantes paulistas despertou nos dirigentes cubanos algo próximo da euforia: ‘O contingente militar do PCB era, efetivamente, o melhor que a ALN tinha trazido para Cuba. O esquema foi preparado por José Dirceu em menos de seis meses. O planejamento: o grupo entraria no Brasil e começaria a agir imediatamente. Resgataria os quadros que estavam detidos, se necessário com um grande seqüestro e, com a unidade revolucionária consolidada, se iria para o campo’. O Chile de Allende, o primeiro presidente socialista do continente, eleito em setembro de 70, daria a retaguarda política do novo projeto (...)”.

Prossegue Luis Mir: “José Dirceu desembarca no Rio no final de abril de 1971, no exato momento em que o fuzilamento de Marcio Leite Toledo demole a estrutura da ALN” (obs: Marcio Leite Toledo, um quadro da ALN, cursado em Cuba, foi “justiçado” na rua, em São Paulo, em 23 de março de 1971, por seus companh eiros).Aproveita a crise pessoal e política dos contrários à execução para convencê-los de que uma retomada, com novos dirigentes e práticas, estava em curso. Hiroaki Torigoi e Silvia Peroba Carneiro Pontes engajam-se na nova travessia. A primeira tarefa encomendada por Dirceu: assaltar um cartório para conseguirem certidões de nascimento e casamento para os militantes que estavam voltando. O assalto, num cartório de Santo André, periferia de São Paulo, foi bem sucedido. José Dirceu retorna a Cuba depois de diversas viagens pelo Brasil para verificar o que sobrara depois da morte de Câmara Ferreira” (obs: dirigente da ALN, morto em dezembro de 1970): “algumas poucas pessoas, aterrorizadas, e um pequeno núcleo de dez militantes comandados por Carlos Eugênio”(Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, um dos matadores de Marcio Leite Toledo, o último dos comandantes da ALN, que logo depois, em dezembro de 1972, abandonou seus comandados e viajou para Cuba, onde recebeu treinamento armado e, na hora de voltar para o Brasil, desertou, indo viver em Paris até a Anistia), “isolados e sem capacidade militar ou operacional. Apesar disso, seu relatório, feito em Havana, é otimista: a entrada do grupo teria boas condições de segurança. O momento em que os encarregados de reorganizar o movimento revolucionário voltam ao Brasil era o pior possível, segundo Carlos Eugênio: ‘Vivíamos acesos 24 horas por dia. Não tínhamos tempo de pensar em nada mais que não fosse a sobrevivência. Os militantes da ALN descobriram que havia uma nova organização revolucionária durante o assalto à Ericsson. Numa ação conjunta do GTA (Grupo Tático Armado) e do grupo Frente de Massas, dois grupos chegam quase que simultaneamente. Todos velhos conhecidos. Os “outros” eram os recém-chegados do Molipo”.

“Lídia Guerlanda rememora o espanto com os recém-chegados e seus planos: ‘O Molipo chegou como se nada tivesse acontecido. Já tinha acontecido, sim, a tragédia. Estávamos assaltando para comer, para sobreviver’”.

“No Presídio Tiradentes, a criação do Molipo provoca reações desencontradas e uma certeza sinistra: seria um grande massacre em curtíssimo prazo (...) De fevereiro a julho de 1971, forma-se um corredor de entrada dos militantes do Molipo através do Chile (...) Outro objetivo: o recrutamento de novos quadros entre os quatro mil exilados brasileiros no Chile, um grande celeiro de quadros (...) Em julho de 1971 Reinaldo Morano faz um balanço estatístico de tempo de sobrevivência na clandestinidade: seis meses”.

Por tudo isso, pode ser dito que o kamarada “Daniel”, embora tenha recebido treinamento armado em Pinar Del Rio e acesso a documentos importantes sobre estratégia militar, informação e contra-informação e segurança militar – facilitados por Raúl Castro -, o que, teoricamente, - contrariamente ao julgamento de seus próprios companheiros - o transformou em um especialista em questões militares, foi o grande responsável pela morte de todos os seus companheiros do Molipo que, seguindo suas ordens, voltaram clandestinamente ao Brasil.

Finalmente, (página 629) “Em 18 de agosto de 1971, viria à luz, em Milão, redigido por Ricardo Zaratini e Rolando Frati, a segunda parte do documento ‘Por uma Autocrítica Necessária’. Uma análise crítica devastadora sobre a luta armada, guevarismo, debraysmo, guerrilha rural e a derrota. Esse debate duraria cerca de dois anos, a partir de uma premissa básica: retornar ao PCB ou formar um novo partido comunista”.

Muitos retornaram ao PCB e outros tantos, como o kamarada “Daniel”, formaram – ou ajudaram a formar – um novo partido: o Partido dos Trabalhadores.

Recordemos que quando de sua posse como ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu depois de elogiar o ditador de Cuba, Fidel Castro, agradeceu seu apoio nos anos 70, quando o comandante o abrigou.Dirceu dedicou parte de seu pronunciamento para lembrar episódios da sua geração. Em tom nostálgico, disse que suas primeiras palavras seriam para aqueles que lutaram com ele e não puderam ver a posse de Lula.

No início de Abril de 2003, José Dirceu voltaria ao assunto, declarando que a geração que chegou ao poder com o presidente Lula deve muito a Cuba. Lembrou que nos anos do regime militar a esquerda teve a solidariedade de Cuba com “sua mão amiga e seu braço forte”. “A geração que chegou ao poder com Lula é devedora de Cuba. E me considero um brasileiro-cubano e um cubano-brasileiro”.
Carlos I. S. Azambuja é historiador.

MUDANÇAS DE POSIÇÕES NO EQUILÍBRIO ENERGÉTICO MUNDIAL

Grandes mudanças já estão a caminho no setor global de energia. Algumas dessas mudanças são contrárias às expectativas anteriores. O que nós percebemos agora, novamente, é que o capitalismo funciona. O capitalismo sempre resolveu nossos problemas básicos. Mesmo agora ele está resolvendo nosso problema energético.


Quatro anos atrás a Rússia era a potência crescente da produção de energia global. No livro de 2008 sobre a Rússia, intitulado Petrostate: Putin, Power and the New Russia, Marshall I. Goodman explica que “a Rússia [...] encontra-se em uma nova posição assertiva, e até mesmo dominante, no cenário internacional. Sua emersão como uma nova superpotência energética acontece simultaneamente ao enfraquecimento dos Estados Unidos que desperdiçou nossos [...] recursos no Iraque”. Mas o setor energético russo sempre foi um gigante manipulado pelo estado com seus próprios problemas.

Alguns na Rússia estão preocupados com o declínio da produção russa e com o aumento da produção energética norte americana, que também cresce em eficiência. Em uma matéria no dia 21 de novembro do Moscow Times, intitulada “What the U.S. Oil Revolution Means for Russia” (NT: O que a revolução petrolífera dos EUA significa para a Rússia, tradução livre), Chris Weafer escreveu: “O crescimento esperado nos estoques americanos de petróleo e gás é a mais séria preocupação para a Rússia e outros líderes de exportação”. De acordo com Weafer, a demanda americana de petróleo importado está para cair, além de ser esperada uma queda de 10 milhões de barris por dia até o fim do próximo ano. Ele também faz referência a um relatório da Agência Internacional de Energia, o World Energy Outlook 2012 (NT: Perspectiva Energética Mundial para 2012, tradução livre).

Em uma recapitulação do relatório no site da Agência Internacional de Energia, podemos ler: “O mapa energético global está mudando dramaticamente...”. De acordo com a diretora executiva da AIE, Maria van der Hoeven, “A América do Norte encabeça uma vasta transformação na produção de petróleo e gás que afetará todas as regiões do mundo...” O relatório World Energy Outlook “constata que o extraordinário crescimento na produção de petróleo e gás nos Estados Unidos significará uma gigantesca mudança nos fluxos de energia global”.

Ainda de acordo com o relatório da AIE, os Estados Unidos tornar-se-ão “quase autossuficientes energeticamente” em 2020 de modo que passarão a ser um fluente exportador de gás natural. Ainda mais surpreendente, diz-se que a América do Norte irá emergir como um fluente exportador de petróleo, “acelerando uma mudança na direção do comércio internacional de petróleo, dado que quase 90% das exportações de petróleo do Oriente Médio estarão direcionadas para a Ásia em 2035.”

Uma dúvida pode ser levantada: essas projeções são parte de alguma fantasia bizarra? Damian Carrington do britânico Guardian recentemente disse que o relatório da AIE é um lembrete de que “a ideia de que estamos no auge do petróleo virou cinzas”. Em uma manchete do Financial Times, diz-se que “EUA será o maior produtor mundial de energia”. Em uma matéria do dia 13 novembro para a Forbes, Mark P. Mills escreveu que “A Agência Internacional de Energia entra em harmonia com os produtores americanos de petróleo” começando com o seguinte comentário: “Recebemos de braços aberto a AIE na comunidade dos experts ao perceber que o mundo energético mudou. Leva algum tempo para os analistas e especialistas entrarem em consonância com os produtores.”

Enquanto o boom do gás natural atraiu muita atenção no ano passado, o boom petrolífero “tem agora a atenção de todos” comentou Mills. “O prognóstico da AIE sobre os EUA tornarem-se os maiores produtores de petróleo antes de 2020 tem enormes implicações econômicas e geopolíticas para todos”. E de fato tem.

Certamente o grande papai governista poderia colocar um fim no glorioso futuro energético da América. Burocratas que temem “mudanças climáticas globais” podem facilmente evocar regras e regulamentos que podem matar nossas melhores esperanças econômicas dos próximos anos. Deveríamos lembrar que os milagres criativos do capitalismo dependem da liberdade econômica, e esta está seriamente ameaçada nos dias de hoje. Lembro do ácido vídeo “If I wanted America to Fail”. Os leitores deveriam visitar o siteFreeMarketAmerica.org e ver outros vídeos educacionais sobre o ataque à liberdade econômica e o “milagre do livre mercado”. POR JEFFREY NYQUIST Publicado no Financial Sense.

O BRASIL TEM DONO?

Como os carros, os sapatos e os cachorros, países também podem ter donos. As antigas aristocracias, feitas de reis, rainhas, papas, prín­cipes encantados, bispos e barões – esses aparen­tados dos deuses cujo sangue deveria ser azul -, eram donas de seus países. Quando um rei era bom, tudo ia bem; quando era mau, esperava-se sua morte. Tudo estava plenamente estabelecido e era impossível trocar de lugar. Você não virava rei, você nascia e morria nobre, lacaio ou escravo; e, se fosse muito azarado, negro.


O regime aristocrático foi rompido, na Ingla­terra, pelo republicanismo da Revolução Gloriosa (em 1688) e, com muito mais radicalismo, pela Francesa (em 1789). Mas um outro tipo de gover­no restritivo da liberdade e de igualdade foi esta­belecido na era moderna pelos nazifascismos de Franco, Salazar, Mussolini e Hitler, a oeste; e pelo coletivismo comunista de Lênin e Stálin, a leste. Depois de 1945, o comunismo foi dono de China e Coreia do Norte, onde continua mandando até hoje. A partir do início de 1960, fidelizou Cuba. No comunismo, o domínio não era mais exercido por dinastias ou casas, como acontecia nas antigas aristocracias, mas por um partido político com sua implacável lógica de decidir em assembleias algo que já estava resolvido por seu micro comité cen­tral- que, como estamos testemunhando no caso chinês, pode incluir famílias e amigos.

O antídoto contra esse tipo de mandonismo tem sido, como ensina pioneiramente Alexis de Tocqueville em seu clássico “A democracia na Amé­rica”, aquilo que mais o espantou quando ele, em 1831, chegou aos Estados Unidos: a igualdade de condições de seus habitantes. Nesse caso, o país não é propriedade de nenhuma classe, família, pessoa ou partido, mas de seus cidadãos, que se ordenam por meio da liberdade e da igualdade. A liberdade inventa o jornal e a opinião pública. A igualdade reinventa uma justiça voltada para todos.

Se fizermos um inquérito, meu palpite é que uma grande maioria dirá, sem hesitações, que o Brasil tem dono. Seu dono é o governo. O go­verno de Fulano ou Sicrano, pois todo mundo sabe que é o governo quem – como um patrão ou dono – manda, ordena, decide, faz, dá, vende, desmancha, desperdiça ou destrói. Se o mundo é uma bola, como diz o ditado, essa bola tem dono. Temos dificuldade de lidar com aquilo que, sendo público, é de todos.


Talvez essas entregas sejam resultado incons­ciente do abandono que o Brasil sofreu após sua “descoberta”, em 1500. Um abandono de quase 100 anos, só retomado depois de ter sido quase perdido pelos namoros um tanto violentos – há quem fale em estupro ou violação – com os ho­landeses, em Pernambuco, e os franceses, que conquistaram O Rio de Janeiro sem romantis­mo nem etiqueta. Finalmente assumido por Portugal, o Bra­sil teve seus primeiros patrões na forma de uma alta centra­lização personificada nos go­vernadores gerais.O Brasil sempre se viu como possuído por alguém de um modo pessoal, e até mesmo apaixonado e amoroso. JK amou o Brasil como um homem ama uma mulher. Jânio Quadros o rene­gou, divorciando-se dele sem motivos. A ditadu­ra personalista de Vargas é vista como um longo casamento, como foi o de Dom Pedro II, nosso último Imperador. Mesmo na ditadura militar e no mais recente péríodo democrático, alguns pre­sidentes são vistos como mais ou menos apaixo­nados e donos do país.

Nosso momento mais glorioso e feliz ocorreu em 1808, quando a Família Real e a Corte vieram para o Brasil. Tínhamos agora um Rei que dava, em pessoa, as bênçãos e a mão delicada e branca para os beijinhos e as genuflexões de puxa-saquis­mo que tanto apreciamos. Ríamos quando ele ria. Ficávamos tristes quando ele chorava. Latíamos e rosnávamos quando ele ficava enfezado. Uivá­vamos quando ele ficava deprimido ou sofria de acessos de fúria. O dono do Brasil era um ser humano como outro qualquer – mas, por ter um lado Divino, era o dono sacrossanto do Brasil. Como o Brasil é abençoado por Deus e Deus é brasileiro, esse patrão era a fonte de todo bem. Pois para nós, brasileiros, o Rei, o Dono e o Patrão – o Cara – não têm culpa de nada e sempre desejam nosso bem-estar. De tal modo que, quando algo mau acontece, não é sua culpa. Pois é inconcebível que ele, em sua bondade ou com sua imensa vontade de cuidar do Brasil, possa ter culpa ou responsa­bilidade por alguma falcatrua ou malandragem. O mandão, por pior e mais demagógico que possa ser, é, por definição, um inocente de tudo o que ocorre a seu redor. Ele é dono do mundo, mas nada tem a ver com o que dá errado nele.

Aos poucos, um modelo de democracia basea­do na competição eleitoral e na opinião se estabe­leceu entre nós. Aos poucos, ficamos intolerantes com partidos políticos donos da verdade que se­riam, por tabela, donos do Brasil. Nossa intolerância se estende a ministros e políticos que compravam seus pares com o objetivo de permanecer para sempre no poder. Hoje, está mais claro que todos devem se submeter à lei e que não se pode mais usar a desculpa da ficção biográfica para justificar crimes cometidos contra as instituições republicanas que são de todos. Na economia, a era FHC fixou um padrão, com o Plano Real, e o STF julgou o mensalão de­baixo do crivo impecável dessa igualdade.

O resultado é que a pergunta “O Brasil tem dono?” pode ter muitas respostas. Sim, seu dono é o governo. Sim, seu dono é o grande capitalis­mo global. Sim, seu dono é o agronegócio. Sim, seu dono é o partido do governo. Mas o Brasil é também seu e meu, leitor. Ele é também do povo, esse novo patrão que veio para ficar. Por: Roberto DaMatta Fonte: revista “Época”

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O MITO DA AUSTERIDADE EUROPEIA


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Vários políticos e comentaristas, como Paul Krugman, alegam que o problema atual da Europa é a austeridade. Mais especificamente, alegam que os gastos dos governos europeus estão insuficientes. 

O argumento padrão é o seguinte: em decorrência das reduções nos gastos governamentais, a demanda na economia torna-se insuficiente. Isso leva a um aumento no desemprego. O desemprego piora a situação porque gera uma queda ainda maior na demanda agregada, o que por sua vez provoca uma queda nas receitas governamentais e um consequente aumento em seus déficits orçamentários. Ato contínuo, os governos europeus, pressionados pela infatigável Alemanha, aprofundam seus cortes de gastos, reduzindo novamente a demanda agregada da economia ao demitir funcionários públicos e cortar gastos assistencialistas. Isso, por sua vez, reduz ainda mais a demanda agregada, gerando uma infindável espiral baixista de desemprego e miséria. 

O que pode ser feito para se sair desta espiral? A resposta dada pelos comentaristas é simplesmente a de acabar com a austeridade, turbinando os gastos governamentais para elevar a demanda agregada. Paul Krugman chegou até mesmo a argumentar em prol de uma organização planetária contra uma invasão de alienígenas, o que induziria os governos a gastarem mais. E por aí vão as bizarrices. Mas esse raciocínio procede?

Em primeiro lugar, será que há realmente alguma austeridade na zona do euro? Um indivíduo só pode ser considerado austero se ele poupa, isto é, se ele gasta menos do que ganha. E a realidade é que não existe absolutamente nenhum país na zona do euro que seja austero. Todos eles gastam mais do que arrecadam de receitas.

Com efeito, os déficits orçamentários dos governos da zona do euro estão extremamente altos, em níveis insustentáveis, como pode ser visto no gráfico abaixo, o qual retrata os déficits de cada governo em porcentagem de seu PIB. Note que os números para 2012 são aqueles desejados por cada governo.
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Os números absolutos para os déficits — em bilhões de euros — são ainda mais impressionantes.
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Outro bom retrato da austeridade é comparar os gastos dos governos às suas respectivas receitas (o quão maior é o gasto público em relação à receita, em termos percentuais).
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Imagine que um conhecido seu tenha gastado, em 2008, 12% a mais do ganhou; em 2009, 31% a mais; em 2010, 25% a mais; e, em 2011, 26% a mais. Você diria que essa pessoa é austera? Você diria que esse comportamento é sustentável? Pois é exatamente isso o que o governo da Espanha tem feito. E ele vem se mostrando incapaz de mudar de postura. Perversamente, os comentaristas da mídia estão dizendo que é justamente essa "austeridade" a responsável pelo encolhimento da economia espanhola e pelo seu alto desemprego.

Infelizmente, austeridade é uma condição necessária para a recuperação da Espanha, da zona do euro, e de qualquer outra economia em recessão. A redução dos gastos do governo faz com que recursos reais — que até então haviam sido absorvidos pelo estado — sejam liberados e consequentemente disponibilizados para o setor privado. A redução dos gastos do governo faz com que novos projetos de investimento se tornem lucrativos e impede os antigos de irem à falência.

Considere o seguinte exemplo. João quer abrir um restaurante. Ele faz alguns cálculos. Ele estima que as receitas do restaurante serão de $10.000 por mês. Já os custos estimados são os seguintes: $4.000 de aluguel do espaço; $1.000 de conta de luz, água, gás e telefone; $2.000 pela comida; e $4.000 para os salários. Com as receitas estimadas em $10.000 e os custos estimados em 11.000, João não irá começar seu empreendimento.

Agora, suponhamos que o governo se torne mais austero, ou seja, ele efetivamente reduza seus gastos. Suponhamos que o governo extinga algumas agências reguladoras e alguns ministérios, e venda os prédios dessas burocracias no mercado. Como consequência, haverá uma tendência de queda nos preços dos imóveis e dos alugueis. O mesmo ocorrerá com os salários. Os burocratas demitidos sairão à procura de empregos no setor privado, e essa maior oferta de mão-de-obra exercerá uma pressão baixista sobre os salários. Adicionalmente, as agências e os ministérios abolidos não mais estarão consumindo energia e demais serviços de utilidade pública, o que gerará uma tendência de queda no preço destes serviços. João poderá agora alugar um espaço para seu restaurante no local onde funcionava uma destas burocracias por $3.000, dado que os alugueis estão barateando. Suas contas de luz, água, telefone, gás etc. caem para $500, e os burocratas demitidos poderão ser contratados para lavar pratos e servir mesas por $3.000. Agora, com as receitas estimadas em $10.000 e os custos em $8.500, o lucro esperado será de $1.500, e João poderá iniciar seu empreendimento.

Dado que o governo reduziu seus gastos, ele poderá reduzir também seus impostos, medida essa que poderá elevar o lucro líquido final de João (que agora tem de pagar um imposto de renda menor). Graças à austeridade, o governo foi capaz também de reduzir seu déficit. Aquele dinheiro que até então era emprestado ao governo para financiar seu déficit poderá agora ser emprestado para João para que ele faça seu investimento inicial: transformar as antigas instalações burocráticas em um restaurante. Com efeito, um dos principais problemas de países como a Espanha é que a poupança real dos cidadãos está sendo utilizada pelo sistema bancário não para financiar empreendimentos privados, mas sim para financiar o governo. Empréstimos estão praticamente indisponíveis para empresas privadas porque os bancos utilizam seus fundos para comprar títulos do governo a fim de financiar o déficit público.

No final, tudo se resume à seguinte questão: quem deve determinar o que deve ser produzido e como? O governo, que usa recursos alheios para proveito próprio (como expandir a burocracia por meio de agências reguladoras, ministérios, programas assistencialistas, guerras etc.), ou empreendedores em um ambiente concorrencial, batalhando entre si para satisfazer os desejos dos consumidores com produtos cada vez melhores e mais baratos (como João, que agora utiliza em seu restaurante parte dos recursos anteriormente imobilizados no aparato estatal)?

Se você crê que a segunda opção é a melhor, então a austeridade é o caminho certo. Mais austeridade e menos gastos governamentais significam menos recursos para o setor público (menos burocracia, menos agências reguladoras, menos ministérios) e mais recursos para o setor privado, que os utiliza para satisfazer os desejos dos consumidores (mais restaurantes). Austeridade é a solução para os problemas da Europa e dos EUA, uma vez que ela estimula o crescimento sólido e reduz os déficits governamentais.

Um PIB menor?

Mas não seria verdade que, ao menos temporariamente, a austeridade reduz o PIB e joga a atividade econômica em uma espiral descendente?

Infelizmente, o PIB é um número bastante enganador. O PIB nada mais é do que o valor de mercado de todos os bens finais e serviços produzidos em um país dentro de um dado período. 

Há dois motivos por que um PIB menor nem sempre é um mau sinal.

O primeiro motivo está relacionado à questão dos gastos governamentais. Imagine um burocrata do governo que emite alvarás de funcionamento. Quando ele nega a autorização para um determinado empreendimento, quanta riqueza foi destruída? Como calcular? Seria por meio das receitas esperadas desse empreendimento ou por meio de seus lucros esperados? E se o burocrata involuntariamente tiver impedido o surgimento de uma inovação que poderia evitar o desperdício de inúmeros recursos escassos para a economia? É difícil dizer qual o tamanho da destruição de riqueza provocada pelo burocrata. Poderíamos simplesmente, e arbitrariamente, pegar seu salário anual de $120.000 e subtraí-lo da produção privada da economia. O PIB seria menor.

No entanto — está sentado? —, o exato oposto ocorre na prática. Os gastos governamentais contam positivamente para o PIB. O salário do burocrata — e sua atividade destruidora de riqueza — eleva o PIB em $120.000. Isso significa que, se a agência reguladora desse burocrata for fechada e ele for demitido, então o imediato efeito dessa austeridade será uma redução de $120.000 no PIB. No entanto, essa redução no PIB é um ótimo sinal para a produção privada e para a satisfação dos desejos dos consumidores.

Segundo, se a estrutura de produção se encontra distorcida após um período de crescimento econômico aditivado pela expansão artificial do crédito, a reestruturação da economia também irá gerar uma queda temporária no PIB. Com efeito, o PIB só poderia ser mantido se a estrutura de produção permanecesse inalterada. Mas a permanência dessa estrutura distorcida e artificial representaria um consumo de riqueza, e não uma produção.

Se a Espanha ou os EUA tivessem continuado utilizando a mesma estrutura de produção vigente durante seus anos de crescimento, eles teriam continuado construindo a quantidade de imóveis que construíram em 2007. Vários recursos escassos teriam sido desperdiçados nesses projetos, mais empresas estariam falidas no futuro e haveria menos capital disponível na economia. A reestruturação de uma economia que foi artificialmente distorcida pelo crédito farto e barato direcionado ao setor imobiliário requer justamente um período de encolhimento do setor imobiliário. Mais especificamente, tal setor terá de fazer um menor uso dos fatores de produção, liberando mão-de-obra e capital para outros setores. E estes fatores de produção devem ser transferidos para aqueles setores onde eles estão sendo demandados com mais urgência pelos consumidores. 

A reestruturação não é instantânea; ela é organizada e conduzida por empreendedores em um processo dinâmico e competitivo que é incômodo, fatigante e que leva tempo. Durante esse período de transição, quando os empregos naqueles setores artificialmente inchados da economia estão sendo destruídos, o PIB tende a cair. Essa queda no PIB é apenas um sinal de que a necessária reestruturação da economia já está ocorrendo. A alternativa seria continuar produzindo a mesma quantidade de imóveis produzida em 2007. Se o PIB não caísse acentuadamente, isso significaria que a expansão econômica destruidora de riqueza estaria continuando exatamente como estava nos anos 2005—2007.

Conclusão

A austeridade do governo é uma condição necessária para a prosperidade privada e para uma rápida recuperação econômica. O problema da Europa (e dos EUA) não é o excesso, mas sim a escassez de austeridade — ou melhor, a sua completa ausência. Uma queda no PIB pode ser um indicador de que a necessária e saudável reestruturação da economia já está ocorrendo.

Philipp Bagus 
é professor adjunto da Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.  É o autor do livro A Tragédia do Euro.  Veja seuwebsite.

Tradução de Leandro Roque

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O HUMANISTA QUE AMAVA STALIN

Oscar Niemeyer era quase uma unanimidade. A reação à sua morte comprova isso. Mas será que tanta reverência se deve somente às suas qualidades artísticas? Muitos consideram que Niemeyer foi um gênio. Não sou da área, não me cabe julgar. Ainda assim, não creio que tanta idolatria seja fruto apenas de suas curvas.
Tenho dificuldade de entender por que o responsável pelo caríssimo projeto da construção de Brasília, o oásis dos políticos corruptos afastados do escrutínio popular, mereceria um prêmio em vez de um castigo. Por acaso as pirâmides do Faraó eram boas para o povo? Mas divago.
Eis a questão: por que Niemeyer foi praticamente canonizado? Minha tese é que ele representava o ícone perfeito da CHEC (Comunistas Hipócritas da Esquerda Caviar). No Brasil, você pode ser podre de rico, viver no maior conforto de frente para o mar, mamar nas tetas do governo, desde que adote a retórica socialista.
Falar em “justiça social” enquanto enche o bolso de dinheiro público, isso merece aplausos por aqui. Já o empresário que defende o capitalismo, produz bens demandados pelo povo e não depende do governo é visto como o vilão. Os discursos sensacionalistas valem mais do que as ações concretas. Imagem é tudo!
As curvas traçadas pelo “poeta do concreto”, que considerava o dinheiro algo “sórdido”, custavam caro. Quase sempre eram pagas pelos nossos impostos. Foram dezenas de milhões de reais só do governo federal. Muito adequado o velório ter sido no Palácio do Planalto, o maior cliente do arquiteto. Licitação e concorrência? Isso é coisa de liberal chato.
Niemeyer virou um ícone contra o excesso de razão nas construções, mas acabou com extrema escassez de razão em suas ideias políticas. Sempre esteve do lado errado, alimentado por um antiamericanismo patológico. Defendeu os terroristas das Farc, os invasores do MST e o execrável regime comunista, mesmo depois de cem milhões de vidas inocentes sacrificadas no altar dessa ideologia.
Ele admirava os tiranos assassinos Fidel Castro e Stalin, e chegou a justificar seus fuzilamentos. Até o fim de sua longa vida, usou sua fama para disseminar essa utopia perversa, envenenando a cabeça de jovens enquanto desfrutava do conforto capitalista.
No meu Aurélio, há uma palavra boa para definir pessoas assim, que curiosamente vem antes de “craque” e depois de “crânio”. Talvez Niemeyer fosse as três coisas ao mesmo tempo.
Roberto Campos certa vez disse: “No meu dicionário, ‘socialista’ é o cara que alardeia intenções e dispensa resultados, adora ser generoso com o dinheiro alheio, e prega igualdade social, mas se considera mais igual que os outros.” Bingo!
Para quem ainda não está convencido de que toda essa comoção tem ligação com sua pregação política, pergunto: seria a mesma coisa se ele defendesse com tanta paixão Pinochet em vez de Fidel Castro? A tolerância seria a mesma se, em vez de Stalin, fosse Hitler o seu guru?
E não me venham dizer que são coisas diferentes! Tanto Stalin como Hitler eram monstros, da mesma forma que o comunismo e o nacional-socialismo são igualmente nefastos. Que grande humanista foi esse homem que defendeu até seu último suspiro algo tão desumano assim?
Acho compreensível o respeito pela obra de Niemeyer, ainda que gosto seja algo subjetivo e que a simbiose com o governo mereça críticas. Entendo o complexo de vira-lata que faz o povo babar com os poucos brasileiros famosos mundialmente. Mas acho inaceitável misturarem as coisas e o colocarem como um ícone do humanismo. Não faz o menor sentido.
Seu brilhantismo como artista não lhe dá um salvo-conduto para a defesa de atrocidades. É preciso saber separar as coisas, o gênio artístico do homem e suas ideias. E tenho certeza de que não é apenas sua arquitetura que gera essa idolatria toda. Basta ver a reação quando questionamos a pessoa, não o arquiteto.
Sua neta Ana Lúcia deixou clara a confusão: “As ideias que ele tentou passar de humanismo, justiça social, isso é tão importante quanto as obras dele. Acho que a gente tem que preservar e difundir o pensamento dele.” Como assim?
Aproveito para avisar que sou sensível ao sofrimento das vítimas do comunismo, mas sou imune à patrulha ideológica da CHEC. A afetação seletiva da turma “humanista” não me sensibiliza. É até cômico ser rotulado de radical por stalinistas.
Por fim, espero que Niemeyer chame logo seu camarada Fidel Castro para um bate-papo onde ele estiver, e que lá seja tão “paradisíaco” como Cuba é para os cubanos comuns. Talvez isso o faça finalmente mudar de ideologia...
Rodrigo Constantino, O GLOBO

A DERROTA DO SUPEREGO

"O Superego, que é gradualmente formado no "Ego", se comporta como um vigilante moral. Contém os valores morais e atua como juiz moral. Inconscientemente, o Superego faz a censura dos impulsos que a sociedade e a cultura proíbem ao Id, impedindo o indivíduo de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É o órgão da repressão, particularmente a repressão sexual. Manifesta-se na consciência indiretamente, sob a forma da moral, como um conjunto de interdições e de deveres." 

Sigmund Freud, em "O Ego e o Id" de 1923.

O que um texto tão antigo de psicologia tem a ver com a economia? Partindo do pressuposto que a economia é a soma das ações e desejos de indivíduos (nem sempre racionais), eu diria que tem tudo a ver.

Para entender melhor a profunda transformação que o mundo passa, é necessário analisar a profunda transformação (para pior) que os valores das sociedades ocidentais vêm sendo submetidos. Começando pelo sintoma em si, a dívida. O mundo ocidental vive hoje sob o peso de uma dívida impagável. Parte no setor privado, parte no setor público, ambas igualmente impagáveis. O que levou a este crescimento brutal do endividamento? Simples. O crescimento dos gastos de pessoas e governos ter sido bem superior ao incremento das receitas.

O gráfico ao lado, das despesas do governo americano (poderia ser de qualquer país ocidental) desde o pós-guerra, ilustra bem o crescimento contínuo ao longo dos anos das despesas públicas. O fato é que, nos últimos 60 anos, nos tornarmos cada vez mais mimados e gastões enquanto sociedade. Os valores tradicionais de poupança, sacrifício e estoicismo definitivamente não fazem parte do nosso repertório. O mantra dos dias atuais é: "o importante é ser feliz, deu vontade? Então faça". Vivemos a ausência do superego como um freio aos nossos impulsos. Deu vontade de comprar aquele carro novo? Que se danem as 72 parcelas com juros gordinhos. O verão está chegando e você não vai fazer aquele cruzeiro com o Rei Roberto Carlos? O cartão de crédito está aí para isso mesmo; depois se dá um jeito de pagar. Ou não.


Será que virei um “socialista chatinho”? Não! Tudo a favor do capitalismo, da inovação e do livre mercado, mas me parece que há algo errado nas longas filas de pessoas trocando o seu Iphone X (comprado há meses) pelo novíssimo Iphone X+1. Não vejo problema com o consumo, quem sou eu para julgar se é excessivo ou não? O problema está quando quem financia esse consumo é a dívida e não um eventual incremento de receita.

Esta geração de superego castrado parece não entender que a conta chega. Pode demorar, mas chega. Por hora, essa gente se enamorou do estado super provedor que está em alta por toda parte. Ou seja, a responsabilidade por gastar menos do que ganho não é minha. Quem equilibra as minhas contas no fim do dia é o estado babá. É bolsa disso, cota daquilo, subsídio aqui e financiamento barato acolá. Até nos Estados Unidos, o maior sucesso da liberal democracia mundial, parece que a demografia transformou essas pessoas estado-dependentes em maioria. 

Este declínio de valores está destruindo o mundo ocidental (que um dia teve valores judaico-cristãos). Em algum tempo, a China ultrapassará os Estados Unidos como a maior economia do mundo. Estudos apontam que a Rússia, por volta de 2020, passará a Alemanha. 

Receio que a hegemonia econômica acabará nas mãos de povos com valores muito distintos dos nossos. Pior do que perder uma partida disputada é entregar o jogo de bandeja. E através desta inversão, vamos assistindo o mundo ocidental abrir mão de seus valores e adotar valores estranhos em nome de conceitos absurdos como o multiculturalismo. 

Vejamos o caso europeu. O casal moderno mal tem um filho, que será educado e após ingressar no mercado de trabalho será taxado entre 50% e 70% de sua renda. Esses impostos irão sustentar os quatro (ou mais) filhos do casal muçulmano (que sabemos, mal irão trabalhar). Não há economia que resista a isso. A conta não fecha. Alguns moderninhos irão dizer que este pensamento é xenófobo. Se uma família de imigrantes paraguaios se instala na casa de um brasileiro e essa pessoa concorda em sustentá-los, é simplesmente burrice e não multiculturalismo, em minha opinião.

Está claro que o ocidente está descendo a ladeira, e não por conta da crise de 2008. Trata-se um longo processo em curso. E neste ambiente de desconstrução como ficam os nossos investimentos?

Começando pelas moedas, que são, ou deveriam ser, nossa reserva de valor. A supremacia de uma moeda não ocorre da noite para o dia e nem é fruto da vontade de alguém. Trata-se de um processo que reflete um domínio econômico, tecnológico e mercantil. Que por sua vez teve como base uma cultura e valores sólidos. O que está em curso é a redução da relevância do dólar e do euro. E notem que a recente desvalorização, por conta da impressão desenfreada de numerário, não é a causa e sim o sintoma de algo maior em curso. 

Sabemos quem está perdendo relevância, mas ainda não está claro quem ocupará esses espaços. A moeda chinesa é um candidato provável, mas é um processo muito longo e com muita volatilidade no meio do caminho. Nestes tempos de grandes mudanças nada melhor que um bom consultor de investimentos, que pode lhe ajudar até na escolha de ativos não financeiros. O que nos parece prudente é que o investidor, neste desarranjo de referências de reserva de valor, comece a considerar uma parcela cada vez maior de ativos reais em sua carteira. Afinal, em tempos de incerteza, para onde flui o dinheiro? Porém, deve-se notar que esse processo deve ser feito com sabedoria pois não faltam ativos reais caros por aí.

Quando se analisa os títulos governamentais de países como Estados Unidos, França e até mesmo Alemanha, causa espanto ver que investidores aceitem juros reais negativos para carregar papéis de países bem endividados. Já falamos aqui que essa conta será paga preferencialmente via uma maior inflação global. Quando isto ocorrer, os títulos de renda fixa (governamentais e corporativos) irão sofrer bastante em termos de preço para que se ajustem aos novos patamares de taxa de juros.

Alguns olham para a bolsa como ativo real. Embora eu ache as ações, como classe de ativo, mais atrativas que os títulos de renda fixa, devemos lembrar que uma ação nada mais é que um fluxo de caixa descontado a uma taxa. Tendo isso em mente, vemos um fluxo de caixa que tende a piorar, tanto pelo aumento de taxação pelo mundo (começando com o Obama), quanto pela menor atividade (lembre-se, o mundo ainda está desalavancando). E teremos também uma maior taxa de desconto, afinal os juros não ficarão no chão para sempre. Nesta classe de ativos a seleção também será importante.

Nesta carta falamos dos ativos e da economia em termos globais, deixaremos as desventuras de Dilma e seus meninos para depois. Por hora é bom saber que estamos no meio de uma complexa transformação que não deixará o mundo como nós o concebemos.

SANTOS E PECADORES

Jornalistas não são santos. Colunistas muito menos. De mim falo: teria uns 18 ou 19 anos quando respondi pela primeira vez em tribunal por abuso de liberdade de imprensa.


Nada de especial: escrevi um artigo; o visado não gostou de certas comparações, digamos, zoomórficas; e moveu-me um processo para limpar a sua honra e dignidade.

Pessoalmente, teria preferido um duelo. Mas defendi-me como pude --e ainda hoje recordo a cara do juiz, um homem com sessenta e poucos anos, estupefacto com a criança que tinha à frente e que, nas alegações finais, resolveu fazer uma longa dissertação sobre John Milton e o seu "Areopagitica", um notável panfleto de 1644 a favor da liberdade de expressão.

De nada valeu. Fui condenado. Justo? Injusto? Honestamente, isso interessa? Sei apenas que, olhando para as fotos desse tempo, tenho saudades: do rapaz que ali estava, tenro como um cordeirinho; e, claro, do meu advogado, já falecido, e que por acaso também era meu pai.

Passaram-se todos esses anos. Devo ter escrito umas duas mil colunas depois dessa. E, pelos vistos, os tribunais continuam a gostar de mim: agora mesmo, no momento em que bato essas linhas, creio que corre no Brasil uma queixa contra uma coluna minha neste site da Folha.

Estou pronto para o que der e vier. Qualquer pretexto é válido para voltar a São Paulo e, por essa ordem, almoçar no Dalva e Dito, jantar no Epice e beber com os meus amigos onde eles quiserem.

Repito: jornalistas não são santos. Colunistas muito menos. E a melhor forma de lidar com ambos --sim, faço uma distinção, porque jornalistas não gostam de colunistas, e vice-versa-- é pelos mecanismos normais de um Estado de Direito. Tribunais. Não através de comissões de "sábios", órgãos reguladores ou outras aberrações parajudiciais, ou extrajudiciais, que adquirem sempre um poder intolerável e potencialmente censório.

Ninguém está acima da lei. E não pode existir nenhuma lei especial que esteja acima da lei geral só para vigiar e punir uma classe profissional em particular.

Infelizmente, parece que o Reino Unido já esqueceu estas preciosas lições que garantiram a liberdade de imprensa no país desde a abolição da censura em finais do século 17.

E esqueceu porque entrou em pânico com o comportamento criminoso dos tabloides do país, em especial do defunto "News of the World", que grampeou telefones de celebridades, políticos e até vítimas de sequestro e homicídio. Sem falar de outros actos igualmente grotescos, como a chantagem e a corrupção de agentes policiais. Tudo em nome do "direito de informar".

Qualquer destes actos repugna uma pessoa civilizada. Mas nenhum deles precisa de legislação extraordinária. Muito menos de um novo órgão regulador respaldado pela lei, tal como proposto pelo juiz Brian Leveson no seu relatório apresentado na última semana.
Paul Hackett/Reuters
Brian Leveson, que sugeriu promulgação de nova lei para garantir a regulação eficaz da imprensa britânica


São quase duas mil páginas que, entre outras inovações perigosas, defendem a constituição de uma entidade autorreguladora composta por membros da imprensa e exteriores a ela, com poderes para supervisionar abusos e multar ou punir os jornalistas abusadores.

David Cameron, o premiê conservador, aplaudiu o esforço do relatório Leveson. Mas, com coragem e sensatez, não parece disposto a cruzar esse Rubicão (palavras dele), mesmo que tenha de enfrentar a revolta do seu parceiro de coalização, o "liberal" Nick Clegg.

Cameron tem razão: o problema do relatório não está na existência de um órgão autorregulador, que aliás já existe (a Comissão de Reclamações contra a Imprensa, que faz recomendações e defende vítimas de abusos jornalísticos).

O problema está na proposta de um novo órgão sujeito a pressões políticas e constituído por agentes políticos, que passaria a ter sobre o jornalismo um poder incontrolado e incontrolável.

John Milton, no seu "Areopagitica", embora desaprovasse as ideias blasfemas e sediosas, deixou um conselho que transcende o horizonte curto do seu tempo: numa sociedade livre, mesmo as más ideias têm direito a existir. Porque é pelo confronto com elas, e em contraste com elas, que chegaremos à verdade e ao bem - uma observação sábia sobre a qual John Stuart Mill, dois séculos depois, edificaria a sua igreja.

Espero que David Cameron se lembre desses ilustres antepassados. Respeitando a liberdade de expressão, sim. Mas respeitando também o papel dos tribunais, e apenas dos tribunais, para punir os seus abusos. Por: João Pereira Coutinho  Folha de SP

A HERANÇA MALDITA

A coisa mudou: quem for pego com a boca na botija será defenestrado sem choro nem vela


Não pertenço a nenhum partido político nem tenho compromisso com nenhum deles, quer apoiem ou se oponham ao governo. Por isso, quando opino acerca de fatos políticos e critico ações de decisões governamentais, faço-o na condição de cidadão que, há muitos anos, observa e reflete sobre a vida política nacional.

Nessas condições, seria quase impossível calar-me diante do que tem ocorrido no Brasil nestes últimos anos, como é o caso do mensalão, que se tornou um episódio dominante no cenário nacional. Tanto mais depois do julgamento do Supremo Tribunal Federal, que não deixou dúvidas quanto ao comprometimento dos processados nele envolvidos.

Esse julgamento, como nenhum outro, foi feito às claras, transmitido na íntegra pela televisão, sem nada esconder. Resultado: José Dirceu, José Genoino, Delúbio Soares e quase todos os demais foram condenados a penas cuja dosimetria os ministros discutiram acaloradamente. Não obstante, o PT e os sentenciados, sem qualquer pudor, passaram a afirmar que foram injustiçados por um julgamento político, e não jurídico. E decidiram promover uma campanha nacional para denunciar essa injustiça.

Isso certamente não ocorrerá, mesmo porque, no dia seguinte àquela manifestação do PT, um novo escândalo tomou conta do noticiário: a Polícia Federal acusou Rosemary Nóvoa de Noronha, chefe do escritório da Presidência da República em São Paulo, indiciada por corrupção ativa.

Rosemary foi nomeada para esse cargo pelo então presidente Lula e o acompanhava nas viagens que fazia. Bastante estranho, não? Antes, nos anos 1990, assessorava José Dirceu, que a apresentou a Lula.

No início do governo deste, em 2003, foi nomeada assessora especial do gabinete pessoal da Presidência da República, antes de ser alçada à direção do escritório presidencial em São Paulo.

A pedido de Lula, Dilma a manteve no cargo, e é nesse escritório que Lula e Dilma se encontram para acertar os ponteiros quando a situação política o exige.

Pois bem, naquela sexta-feira, a Polícia Federal prendeu seis pessoas e indiciou outras 12, acusadas de participar de um esquema que fraudava pareceres técnicos em agências reguladoras e órgãos federais. Entre os presos, estão os irmãos Paulo Rodrigues Vieira, diretor da Agência Nacional de Águas (ANA), Rubens Carlos Vieira, diretor de Infraestrutura Aeroportuária da Agência Nacional de Aviação (Anac) e Marcelo Rodrigues Vieira. Os irmãos Vieira foram indicados para aqueles cargos por Rosemary, que mantinha com eles estreita ligação no esquema de fraudes descoberto pela PF.

Além de Rosemary, foram indiciados 11 servidores, entre os quais o advogado-geral da União adjunto, José Weber Holanda, o segundo na Advocacia Geral da União (AGU), órgão diretamente ligado à Presidência da República.

Em face de tamanho escândalo, envolvendo ocupantes de importantes cargos de confiança do governo federal, a presidente Dilma Rousseff convocou uma reunião de emergência com o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e as ministras Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti, para avaliar a situação. Disso resultou a exoneração imediata de Rosemary e o afastamento dos irmãos Vieira de seus cargos. Dada a estreita ligação de Lula com Rosemary, foi a ele comunicada a sua exoneração, antes que se efetuasse.

Desta vez, Dilma agiu mais rápido do que quando demitiu os ministros corruptos que Lula lhe deixara como herança maldita. Naquela ocasião, ela chegou a defender alguns dos acusados e só os demitiu quando a situação se tornou insustentável. Agora, porém, em face do desgaste sofrido com o julgamento do mensalão e a condenação de dirigentes petistas, a coisa mudou: quem for pego com a boca na botija será defenestrado, de imediato, sem choro nem vela.

A verdade é que mais uma vez Dilma foi surpreendida por "malfeitos" envolvendo pessoas de sua equipe vinculadas ao ex-presidente Lula, que teria se queixado ao saber do novo escândalo: "Fui apunhalado pelas costas", expressão semelhante à que pronunciou por ocasião da descoberta do mensalão, em 2005. Por isso, não se surpreendam se, amanhã, ele vier a afirmar que tudo isso não passou de uma farsa, inventada pela imprensa.
Por: Ferreira Gullar     Folha de SP


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

MELANCOLIA E REVOLTA

Não sou propenso a queixas nem a desânimos. Entretanto, ao pensar sobre o que dizer neste artigo senti certa melancolia. Escrever outra vez sobre o "mensalão" e sobre o papel seminal do Supremo Tribunal Federal? Já tudo se sabe e foi dito. Entrar no novo escândalo, o do gabinete da Presidência da República em São Paulo? Não faz meu estilo, não tenho gosto por garimpar malfeitos e jogar mais pedras em quem, nessa matéria, já se desmoralizou bastante.


Tentei mudar de foco indo para o econômico. Mas de que vale repetir críticas aos equívocos da política petrolífera, que começaram com a redefinição das normas para a exploração do pré-sal? As novas regras criaram um sistema de partilha que se apresentou como inspirado no "modelo norueguês" - no qual os resultados da riqueza petrolífera ficam num fundo soberano, longe dos gastos locais, para assegurar bem-estar às gerações futuras -, quando, na verdade, se assemelha ao modelo adotado em países com regimes autoritários. Até aqui o novo modelo gerou apenas atrasos, custos excessivos e estagnação na produção de petróleo, além de uma briga inglória (e injusta para com os Estados produtores) a respeito de royalties que ainda não existem e que, quando existirem, serão uma torneira aberta para gastos correntes e pressões inflacionárias. A contenção do preço da gasolina já se tornou rotina, mesmo que afete a rentabilidade da Petrobrás e desorganize a produção de etanol. O objetivo é segurar a inflação por meio de artifícios e garantir a satisfação dos usuários. Calo sobre os efeitos da redução continuada do IPI para veículos e do combustível artificialmente barato. Os prefeitos que cuidem de aumentar ruas e avenidas para dar cabida a tanto bem-estar... E os moradores das grandes cidades que se munam de ainda maior paciência para enfrentar mais congestionamentos.

E que dizer da tentativa de cortar o custo da energia elétrica, que teve como resultado imediato a perda de valor das ações das empresas? E essa agora de altos funcionários desdizerem o anunciado e, sem qualquer segurança sobre como será ajustado o valor do patrimônio das empresas do setor elétrico, provocarem súbitas altas nas ações? O pior é que ninguém será responsabilizado por eventuais ganhos de especulação advindos da falta de compostura verbal. Valerá a pena insistir em que o trem-bala é um desvario na atual conjuntura, pois terminará sendo pago pelos contribuintes, como estão sendo pagas as usinas mal licitadas? Para a construção destas, pelas condições estabelecidas pelo próprio governo, praticamente só acorrem empresas estatais financiadas pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) com dinheiro transferido do Tesouro, quer dizer, seu, meu, nosso. E as rodovias e os aeroportos? Uma novela que já vai longe, numa trama desencontrada. Tomara ainda tenhamos final feliz...

Olhando em retrocesso, nos anos da grande ilusão, lá pelos finais de 1970 e meados dos 1980, os "projetos-impacto", como a Transamazônica, a Ferrovia do Aço e outros tantos, feitos a partir de decisões tecnocráticas nos gabinetes ministeriais, nos estarreciam. Clamávamos também contra indícios de corrupção. Não poderíamos imaginar que, depois das greves de São Bernardo do Campo e das Diretas-Já, as mesmas distorções seriam praticadas por alguns que então as combatiam. Criticava-se tanto o nepotismo e o compadrio, a falta de profissionalismo na administração e de transparência nas decisões, e se imaginava com tanta fé que o Congresso Nacional livre daria cobro aos desmandos, que é difícil esconder a desilusão. As proezas de cinismo e leniência praticadas por alguns dos personagens que apareciam como heróis-salvadores são chocantes. Dá lástima ver hoje uns e outros confundidos na coorte de dúbios personagens que alegam nada saber dos malfeitos.

O que entristece, porém, não é somente a conduta de algumas pessoas. É o silêncio das instituições democráticas. A mídia fala e cumpre o seu papel. Cumpre-o tão bem que é confundida pelos que sustentam os malfeitos como se fosse ela, e não a polícia, quem descobre os desatinos ou como se servisse à oposição interessada em desgastar o governo. Recentemente, algumas instituições de Estado começaram a agir responsavelmente: o Ministério Público pouco a pouco perdeu o ranço ideológico para se concentrar no que lhe é devido, a defesa da lei em nome da sociedade. Os tribunais, especialmente depois de o Conselho Nacional de Justiça ser organizado, começam a sacudir a poeira e a julgar, dando-lhes igual o réu ser potentado ou pobretão. Mas o Congresso e os partidos estão longe de corresponder aos anseios dos que escrevemos a Constituição de 1988.

O Congresso, que na Carta de 88, por sua inspiração inicial parlamentarista, ficou com responsabilidades enormes de fiscalização, prefere calar e se submeter docilmente ao Executivo. Voltamos aos tempos da República Velha, com eleições a bico de pena e as Comissões de Verificação dos Poderes, que cassavam os oposicionistas. Só que agora somos "modernos": não se frauda o voto, asseguram-se maiorias pelos balcões ministeriais ricos em contratos e por emendas parlamentares distorcidas. Com maiorias de 80% parece até injusto pedir que a oposição atue. Como?

De qualquer maneira, é preciso bradar e mostrar indignação e revolta, ainda que pouco se consiga de prático, mesmo sem esperança de vitória ou retribuição imediata, como se fazia no tempo do autoritarismo. Não há bem que sempre dure nem mal que não acabe. Chegará o momento, como chegou nos anos 1980, em que, com toda a aparência de poder, o sistema fará água. Entre as centenas, talvez milhares de pessoas que se beneficiam da máquina do poder e os milhões de pessoas "emergentes" ávidas por melhorar sua condição de vida por este Brasil afora, há espaço para novas pregações? Novas ilusões? Quem sabe... Mas, sem elas, é a rotina do já visto, das malfeitorias e dos "não sei, não vi, não me comprometo".
Por: Fernando Henrique Cardoso  O Estado de S.Paulo - 02/12

CONTRIBUINTE PAGA VIDA SEXUAL DO GARANHÃO DE GARANHUNS

Mês passado, Lula voltou de um périplo pela África e Ásia, em busca de apoio oficial para disputar o prêmio Nobel da Paz. Faz sentido. A África é um continente adequado para expor sua genialidade. Um leitor de Veja se irrita. “Se instituíssem o Prêmio Nobel da Corrupção, com certeza ele estaria entre os primeiros colocados”.


O leitor talvez nem tenha idéia da verdade que está afirmando. O prêmio da Paz é o que mais acolhe vigaristas e corruptos. Vamos lá: Luther King, Madre Teresa de Calcutá, Arafat. Lula quer sentir-se entre seus pares, quando for receber o galardão em Oslo. Quem quer que conheça a lista dos laureados com o Nobel da Paz sabe que Lula tem boas chances.

Mas Lula está ocupando a primeira página dos jornais da semana não por suas nobres tentativas de oferecer ao Brasil seu primeiro Nobel, mas por questões mais bem prosaicas. E bem previsíveis. Um homem que não tem escrúpulos em comprar um Congresso, obviamente tampouco teria escrúpulos em comprar mais uma mulher para seu uso. Neste sentido, deve estar se espelhando em estadistas de escol, como Kennedy, Mitterrand, Clinton. Descobriu-se o que há muito muitos políticos e jornalistas estavam sabendo: que o homem dividia seu leito com mais uma dessas prostitutazinhas de palácio.

Não serei eu a condená-lo por essa humana pretensão. Logo eu, que tanto curti as profissionais, e que jamais prometi fidelidade a mulher nenhuma. Sei que há casais que se satisfazem um com o outro. São raros, mas existem. Pessoalmente, nunca tive temperamento para a monogomia. Isso é coisa de cristãos e sou ateu. Mas há abissais diferenças entre mim e o Sumo Analfabeto. Por um lado, não sou analfabeto nem presidente da República. Por outro, abomino a mentira e particularmente a mentira conjugal.

Anônimo cidadão, posso me permitir tantas relações quantas quiser e comportar-me como bem entender, desde que não infrinja lei nenhuma. Este espaço é muito grande. Talvez eu tenha ferido a ética de muita gente, mas ferir ética não é crime. Se alguém um dia me surpreendesse num bordel, tanto faz como tanto fez. Aliás, os bordéis fizeram parte de minha vida. Pena que não existam mais.

Já com um presidente da República é diferente, e esta é uma das razões pelas quais eu jamais desejaria estar na pele de um deles. Há uma coisa que se chama liturgia do cargo. Supõe-se que o primeiro mandatário de uma nação seja um símbolo dessa nação, e símbolos não podem andar galinhando por aí a torto e a direito. Tivesse eu a desgraça de ser presidente da República, me manteria fiel - mais ou menos fiel, digamos – durante meu mandato. E provavelmente sóbrio. Não se permite que um presidente ande tomando porres pelos botecos da vida. Até Jânio Quadros era discreto neste sentido.

Quisesse eu curtir os prazeres de uma prostituta, acho que colocaria o SNI a investigar sua vida pregressa pelo menos até a primeira comunhão. Um homem de Estado não pode dividir sua cama com qualquer piguancha. É uma questão até mesmo de segurança nacional. Uma vez na condição de ex-presidente, eu voltaria serenamente a cair na gandaia. Isto é, se ainda tivesse ganas. A idade nos torna mais seletivos.

Mais ainda. Fosse eu presidente, por mais avançadinha que fosse minha mulher, ela também teria de entrar em recesso, pelo menos por quatro anos. Não fica bem a um presidente ser cornificado. Um presidente resiste à pecha de corrupto, ditatorial, desonesto. Mas não há mandato que perdure para um corno. Depois do mandato, tudo bem. Quatro anos passam rápido. Ainda sobra juventude para folgar.

Os jornais estão insistindo na infidelidade conjugal de Lula e parecem querer intrigá-lo com Dona Marisa Letícia. Vã tentativa. Dona Marisa já provou das delícias do Planalto e não será besta em mandar para a panela a galinha de ovos de ouro. Certamente seguirá o sábio exemplo da senadora Hillary Clinton. Relevará, e ainda passará por moderninha, mantendo seus privilégios na planície.

Ao ser infiel à sua galega – como Lula a chamava – o futuro Nobel da Paz está no fundo encarnando uma vocação nacional, a de trair a própria mulher. As mulheres em geral sabem disso, mas não querem incomodar-se. Desde que não seja em seus círculos de amizade, os maridos que pulem a cerca à vontade. 

Não, o problema não reside na infidelidade. O problema é que Lula aliou-se a uma mulher com ambições de mando e de dinheiro. E sem nenhum escrúpulo. Com a mesma nonchalance com que o PT comprou parlamentares, Dona Rose comprou favores para maridos e amigos, utilizando o poder que a intimidade com Lula lhe conferia. No fundo, não bastasse o contribuinte estar pagando o Aerolula e seus lençóis egípcios, a compra de parlamentares e o êxito profissional de seu filho, está também pagando a vida sexual do garanhão de Garanhuns.

Em Napoleão e as Mulheres, Guy Bretton conta um episódio da vida do imperador. Napoleão, para aliviar-se das tensões da guerra, mandou buscar a um acampamento uma de suas favoritas. A moça chegou e fez-se anunciar. Com a objetividade de um general em campanha, Napoleão enviou-lhe uma ordem:

- Que se vá despindo.

O tempo transcorria e o general não se fazia presente ao bivouac da moça. Com frio, ela pediu ao ordenança de Napoleão que o lembrasse de sua presença. Napoleão, imerso em seu prazer predileto, a guerra, deu nova ordem:

- Que se vá deitando.

E nada do general comparecer ao encontro. Angustiada, a moça pediu novamente que o ordenança o lembrasse de sua presença. Napoleão, qual estratego em batalha, foi curto e grosso:

- Que vá embora.

As leitoras que me perdoem, mas a meu ver este deveria ser o comportamento de um presidente ante seus biscates. Frieza e distância. Não se pode misturar vontade de poder com meros desejos sexuais. Em algum momento, vai dar confusão. Ainda há pouco, dois generais nos Estados Unidos perderam seus galões por confundir as duas vontades. Já que falei em Jânio, volto a lembrá-lo. Certa vez, uma jornalista perguntou-lhe:

- Olá, Jânio. Que é que há de novo? 

Jânio, que podia ser acusado de tudo, menos de lerdo de pensamento, reagiu de bate-pronto:

- Esta nossa intimidade. Intimidade gera filhos e aborrecimentos, duas coisas que não quero ter com você.

Se a intimidade com a Presidência não gerou filhos, dos aborrecimentos o nobelizável não escapou. Quem nunca comeu melado, quando come se lambuza. Estranho no ninho, Lula esqueceu de tomar as providências necessárias para preservar intacta sua máscara de honestidade.

Abomino a mentira conjugal, escrevi lá atrás. Obviamente, Lula escondia a Outra da Perpétua. Tanto que as duas jamais viajavam juntas em seus turismos ao Exterior. Nisto reside outro erro seu. Provavelmente, o episódio terá desdobramentos que não ocorreriam se Dona Marisa Letícia estivesse ciente das escapadelas do marido.

Mais ainda: Brasília é um prostíbulo a céu aberto. Freqüentado não por pobres meninas que giram bolsinha nas ruas. Mas por ancas soberbas que ondulam nos corredores da Câmara e do Senado. É óbvio que o garanhão de Garanhuns, dotado de tanto poder que se permitia até mesmo comprar parlamentares, não terá sido insensível a tais tentações. 

Ninguém se surpreenda se outras Roses surgirem.
Por:  Janer Cristaldo

A LIMITAÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE, AS EXTERNALIDADES E AS OBRAS ESTATAIS


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Os direitos de propriedade, tais como limitados pelas leis e protegidos pelo poder judicial e pela polícia, são o resultado de um longo período de evolução. A história de todo esse tempo é o registro dos violentos esforços feitos com o objetivo de abolir a propriedade privada. Seguidamente, déspotas e movimentos populares têm tentado restringir os direitos de propriedade privada ou aboli-los inteiramente. Essas tentativas falharam, é verdade. Mas deixaram traços nas ideias que influenciaram a forma legal e a definição de propriedade. Os conceitos legais de propriedade não levam na devida conta a função social da propriedade privada. Existem certas deficiências e incongruências que perturbam o desenvolvimento dos fenômenos do mercado.

O direito de propriedade, considerado de forma consistente, deveria, por um lado, conferir ao proprietário o direito de usufruir todas as vantagens que o bem possuído pode gerar, e deveria, por outro lado, onerá-lo com todos os inconvenientes resultantes de seu emprego. Assim sendo, as consequências seriam de exclusiva responsabilidade do proprietário, que, ao lidar com sua propriedade, levaria em conta todos os resultados esperados de sua ação, tanto os favoráveis como os desfavoráveis. Mas, se alguns dos benefícios de sua ação não podem ser auferidos e alguns dos inconvenientes não lhe são debitados, o proprietário, ao elaborar os seus planos, não se preocupará com todos os feitos de sua ação. Não considerará os benefícios que não aumentam a sua própria satisfação, nem os custos que não o oneram. Sua conduta se afastará da linha que teria seguido se as leis refletissem melhor os objetivos econômicos da propriedade privada. Realizará certos projetos só porque as leis o desobrigam da responsabilidade de alguns dos custos incorridos. Ele deixará de realizar outros projetos simplesmente porque as leis o impedem de colher todas as vantagens decorrentes dos mesmos.

As leis relativas à responsabilidade e à indenização por danos causados eram e ainda são deficientes sob muitos aspectos. De um modo geral, aceita-se como um princípio o fato de que cada um é responsável pelos danos que suas ações infringirem a outras pessoas. Mas esse princípio sempre teve suas brechas, suas exceções legais. Em alguns casos, esse privilégio foi concedido intencionalmente àqueles que se dedicavam a atividades que as autoridades desejavam impulsionar. Quando, no passado, em muitos países, os proprietários das fábricas e das estradas de ferro não foram responsabilizados pelos danos que suas empresas infringiam à propriedade e à saúde de seus vizinhos, clientes, empregados e outras pessoas (através de fumaça, fuligem, barulho, poluição da água e acidentes causados por equipamento inadequado ou defeituoso), a ideia subjacente era a de que não se deveria enfraquecer o progresso da industrialização e o desenvolvimento dos meios de transporte.

As mesmas doutrinas que inspiraram e ainda continuam inspirando muitos governos a incentivarem investimentos em fábricas e estradas de ferro por meio de subsídios, isenção de impostos, tarifas e crédito barato, contribuíram para o surgimento de uma situação jurídica na qual a responsabilidade dessas empresas foi prática ou formalmente aliviada. Mais tarde, começou a prevalecer a tendência oposta, e a responsabilidade dos industriais e das estradas de ferro passou a ser tratada com maior severidade do que a dos demais cidadãos e firmas. Também, nesses casos, os objetivos são políticos. Os legisladores desejavam proteger os pobres, os assalariados, os camponeses, contra os ricos capitalistas e empresários.

Que o fato de desobrigar o proprietário de algumas das desvantagens que resultam da maneira como ele conduz o seu negócio seja fruto de uma política deliberada adotada pelos governos e pelos legisladores — ou seja, um efeito não intencional da redação tradicional das leis — é, de qualquer forma, um dado que precisa ser levado em conta. Estamos diante do problema dos denominados custos externos. Esta situação faz com que algumas pessoas escolham certas maneiras de satisfazer suas necessidades simplesmente em função do fato de que uma parte dos custos incorridos não lhes é debitada, mas recai sobre outras pessoas.

O exemplo extremo nos é proporcionado pelo caso das terras sem dono. Se a terra não tem dono, embora o formalismo jurídico possa qualificá-la de propriedade pública, as pessoas utilizam-na sem se importar com os inconvenientes de uma exploração predatória. Quem tiver condições de usufruir de suas vantagens — a madeira e a caça dos bosques, os peixes das extensões aquáticas e os depósitos minerais do subsolo — não se preocupará com os efeitos posteriores decorrentes do modo de exploração. Para essas pessoas, a erosão do solo, o esgotamento dos recursos exauríveis e qualquer outra redução da possibilidade de utilização futura são custos externos, não considerados nos cálculos pessoais de receita e despesa. Cortarão as árvores sem qualquer consideração para com as que ainda estão verdes ou para com o reflorestamento. Ao caçar e pescar não hesitarão em empregar métodos contrários à preservação das reservas de caça e pesca. 

Nos primórdios da civilização, quando ainda havia abundância de terras de qualidade não inferior à já utilizada, o uso de métodos predatórios era corrente. Quando a produtividade diminuía, o lavrador abandonava sua terra e se mudava para outro lugar. Só mais tarde, à medida que a população crescia e não havia mais disponibilidade de terra virgem de primeira classe, as pessoas começaram a considerar tais métodos predatórios um desperdício. Consolidava-se assim a instituição da propriedade privada da terra; a princípio, nas terras aráveis, e depois, passo a passo, estendendo-se aos pastos, às florestas, aos pesqueiros. As novas colônias de ultramar, especialmente os vastos espaços dos Estados Unidos, cujas fantásticas potencialidades agrícolas estavam praticamente intactas, quando lá chegaram os primeiros colonizadores, passaram pelos mesmos estágios. Até as últimas décadas do século XIX havia sempre uma zona geográfica aberta aos recém-chegados: a fronteira. Nem a existência dessas regiões inexploradas, nem o seu desaparecimento são peculiares à América. O que caracteriza as condições americanas é o fato de que, ao esgotarem-se as terras inexploradas, fatores institucionais e ideológicos impediram que os métodos de utilização da terra se ajustassem à nova circunstância.

Nas áreas centrais e ocidentais da Europa continental, onde a instituição da propriedade privada já estava firmemente estabelecida há muitos séculos, as coisas foram diferentes. Não houve erosão de solos já cultivados. Não houve devastação de florestas, apesar do fato de as florestas particulares terem sido, durante gerações, a única fonte de madeira para construção e mineração, e de combustível para as fundições e os fornos, para as cerâmicas e para as fábricas de vidro. Os proprietários dessas florestas foram impelidos a conservá-las movidos pelos seus próprios interesses egoístas. Nas áreas mais densamente habitadas e industrializadas, até alguns anos atrás, entre um quinto e um terço da superfície era ocupado por florestas de primeira classe administradas segundo os melhores métodos da tecnologia florestal.[1]

O cálculo econômico torna-se ilusório e os seus resultados enganadores sempre que uma parte considerável dos custos incorridos sejam custos externos. Mas isto não é uma consequência das alegadas deficiências inerentes ao sistema de propriedade privada dos meios de produção. É, ao contrário, uma consequência das brechas deixadas no sistema. Poderiam ser eliminadas por meio de uma reforma das leis relativas à responsabilidade por danos infringidos e pelo cancelamento das barreiras institucionais que impedem o pleno funcionamento do sistema de propriedade privada.

O caso dos benefícios externos não é simplesmente uma inversão do caso dos custos externos. Ele possui características e campo de aplicação próprios.

Quando os resultados de uma ação não beneficiam apenas o agente atuante, mas também outras pessoas, existem duas alternativas:

1 — O ator considera as vantagens que espera auferir para si mesmo tão importantes que está disposto a arcar com todos os custos. O fato de sua ação também beneficiar outras pessoas não o impedirá de realizar aquilo que promoverá o seu próprio bem-estar. Quando uma companhia de estrada de ferro constrói um dique para proteger a sua linha férrea de deslizamentos ou avalanches, também está protegendo as casas nos terrenos adjacentes. Mas esse benefício auferido pelos vizinhos não impedirá a companhia de realizar um investimento que considera vantajoso.

2 — Os custos necessários à realização de um projeto são tão grandes que nenhum dos possíveis beneficiários está disposto a suportá-los inteiramente. O projeto só poderá ser realizado se um número suficiente de interessados compartilhar os seus custos.

Não seria necessário dizer mais nada sobre benefícios externos, se não fosse o fato de esse fenômeno ser inteiramente deturpado na literatura pseudoeconômica corrente.

Um projeto P não será lucrativo se os consumidores preferirem a satisfação derivada de outro projeto à satisfação prevista com a realização de P. A execução de P desviaria capital e trabalho de algum outro projeto, considerado mais urgente pelos consumidores. O leigo e o pseudoeconomista não chegam a perceber esse fato. Teimosamente se recusam a reconhecer a escassez dos fatores de produção. No seu entendimento, P poderia ser realizado sem qualquer inconveniente, isto é, sem renúncia a qualquer outra satisfação; seria apenas a insensibilidade do sistema de lucro que estaria a impedir que a nação desfrutasse graciosamente os benefícios de P.

Ora — continuam esses críticos de visão curta e mentalidade estreita —, o absurdo do sistema de lucro torna-se especialmente ultrajante se a não lucratividade de P se dever ao fato de o empresário não considerar nos seus cálculos as vantagens de P que para ele são benefícios externos. Do ponto de vista da sociedade como um todo, dizem esses críticos, tais vantagens não são externas; beneficiam pelo menos alguns membros da sociedade e aumentam o "bem-estar total". A não realização de P seria portanto uma perda para a sociedade. Por isso, quando a iniciativa privada, egoisticamente, se recusa a realizar tais projetos não lucrativos, o dever do governo é preencher esse vazio.

O governo deveria ou realizá-los por meio de empresas públicas ou subsidiá-los para torná-los atrativos ao empresário privado e ao investidor. Os subsídios poderiam ser concedidos seja diretamente em dinheiro, à custa do erário público, seja por meio de tarifas cuja incidência recairia sobre os compradores dos produtos. Os que assim argumentam não percebem que os meios que o governo utiliza para fazer funcionar uma empresa deficitária ou para subsidiar um projeto não rentável terão de ser retirados da capacidade de gastar e investir dos contribuintes ou terão de ser obtidos de modo inflacionário. 

Nem o governo nem qualquer indivíduo têm a possibilidade de criar algo do nada. Maiores gastos do governo representam menores gastos do público. As obras públicas não são realizadas pelo poder milagroso de uma varinha de condão; são pagas com recursos tomados dos cidadãos. Se o governo não houvesse interferido, os cidadãos os teriam empregado em projetos lucrativos, os quais agora não mais serão realizados porque os meios correspondentes lhes foram subtraídos. Para cada projeto não rentável realizado com a ajuda do governo, há um outro que deixa de ser realizado em virtude da intervenção governamental. Com uma diferença: o projeto não realizado teria sido lucrativo, isto é, teria empregado os escassos meios de produção de maneira a atender às necessidades mais urgentes dos consumidores. Do ponto de vista dos consumidores, o emprego desses meios de produção para realização de um projeto não lucrativo é um desperdício. Priva-os daquelas satisfações que preferem, dando-lhes em troca aquelas que o projeto estatal pode lhes oferecer.

As massas crédulas incapazes de ver além do que a vista alcança se entusiasmam com as realizações maravilhosas de seus governantes. Não chegam a perceber que são elas, as massas, que pagam a conta e que, consequentemente, têm que renunciar a muitas satisfações de que teriam usufruído se o governo tivesse gasto menos com projetos não rentáveis. Não têm imaginação suficiente para sequer vislumbrar as possibilidades que o governo não permitiu que viessem a existir.

Esses entusiastas da intervenção estatal ficam ainda mais extasiados quando a ação governamental possibilita que produtores submarginais continuem produzindo, competindo com usinas, lojas ou fazendas mais eficientes. Nesses casos, dizem eles, é óbvio que a produção total aumentou e que alguma coisa — que se não fosse a ajuda das autoridades não teria sido produzida — foi acrescentada à riqueza geral. O que ocorre, na realidade, é exatamente o oposto; o montante da produção total e da riqueza total diminui. Instalações que produzem por custos maiores entram em funcionamento, enquanto outras instalações que produzem por custos menores são forçadas a diminuir ou a paralisar a sua produção. Os consumidores não estão obtendo mais, e sim, menos.

Uma ideia que habitualmente tem muita aceitação é a de que o governo deve promover o desenvolvimento agrícola daquelas regiões do país maldotadas pela natureza. Nessas regiões, os custos de produção são maiores do que em outras áreas; é precisamente este fato que torna o seu solo submarginal. Se não forem ajudados por recursos públicos, diz o senso comum, os agricultores que trabalham essas terras não conseguiriam suportar a competição das fazendas mais férteis. A agricultura desapareceria ou não se desenvolveria e a região se tornaria uma parte atrasada do país. Com pleno conhecimento dessa realidade, as empresas que visam ao lucro evitam investir na construção de estradas de ferro que liguem essas regiões inóspitas aos centros de consumo.

A situação difícil dos agricultores não é causada pela falta de meios de transporte. A causalidade é no sentido inverso: como as empresas percebem que as perspectivas agrícolas da região não são favoráveis, abstêm-se de investir em estradas de ferro que provavelmente não serão lucrativas, porque há falta de uma quantidade suficiente de bens a serem transportados. 

Se o governo, cedendo aos grupos de pressão interessados, constrói a estrada de ferro e a opera com déficit, certamente estará beneficiando os proprietários de terras dessas regiões pobres. Podem então esses agricultores, uma vez que uma parte dos custos de transporte é absorvida pelo erário público, competir com os que cultivam terras melhores e que não recebem ajuda oficial. Mas quem paga os favores concedidos a esses agricultores privilegiados são os contribuintes, que terão de prover os fundos necessários para cobrir o déficit. Tal liberalidade não afeta o preço nem a quantidade total disponível de produtos agrícolas. Simplesmente torna rentável a operação de fazendas que até então eram submarginais, e marginaliza outras fazendas cuja operação era até então lucrativa. Desloca a produção das terras, que poderiam produzir por custos menores, para terras cujos custos de produção são maiores. Em vez de aumentar, diminui a riqueza e a disponibilidade total de mercadorias, uma vez que as quantidades adicionais de capital e trabalho, necessárias ao cultivo de campos que exigem custos de produção maiores, são retiradas de outros empregos que tornariam possível a produção de outros bens de consumo. O governo consegue beneficiar algumas regiões do país, dando-lhes o que lhes falta, mas em detrimento de outros setores e gerando custos que excedem os ganhos deste pequeno grupo privilegiado.


[1] No final do século XVIII, os governos europeus começaram a promulgar leis visando à conservação de florestas.  Entretanto, seria um grave erro atribuir a essas leis qualquer importância na conservação das florestas.  Na segunda metade do século XIX, ainda não havia uma estrutura administrativa capaz de fazer com que essas leis fossem cumpridas.  Além disso, os governos da Áustria e da Prússia, para não mencionar os estados alemães menores, não tinham suficiente poder para obrigar a aristocracia a respeitá-los.  Nenhum funcionário público antes de 1914 teria tido a audácia de causar irritação a um magnata da Boêmia ou da Silésia, ou a um Standesherr alemão (aquele cujo feudo tivesse sido anexado a uma dos estados soberanos do império).  Esses príncipes e condes cuidavam espontaneamente de suas florestas porque estavam seguros quanto à posse de seus domínios e porque procuravam preservar a fonte de suas rendas e o valor venal de suas terras.

Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".