quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

CAVEAT EMPTOR




“Mais regras e mais letras miúdas não farão muito para impedir o próximo Bernie Madoff”, diz Henriques. O mundo das regulamentações é um mundo de ilusões – a promessa de proteção sem a realidade.


No livro The Wizard of Lies: Bernie Madoff and the Death of Trust escrito por Diana K. Henriques, conhecemos a história de um corretor de ações e conselheiro financeiro que cometeu a maior fraude financeira na história dos EUA. Próximo ao fim do livro de Henriques, na página 341, ela escreve: “Com a habilidade de desbaratar até os mais sofisticados investidores institucionais, Bernie Madoff revelou o quão diabolicamente difícil as coisas são para as regras protegerem o público no século XXI.”

O sistema de mercado é baseado na confiança. Como tal, sempre será vulnerável ao abuso dessa mesma confiança. Não se pode ter mercado, não se pode ter investimento – não se pode ter capitalismo – sem confiança. Na verdade, não se pode ter confiança sem o inevitável abuso dela. Não se engane. O mundo é um lugar perigoso e há pessoas ruins nele. Não importa o quão cuidadosamente protejamos nossas apostas, no final sempre se dependerá da confiança.

Uma das ilusões criadas pela regulamentação governamental é a de que as regras podem, de algum modo, “tornar” os investimentos mais confiáveis. “Se a história de Madoff não prova nada mais,” escreve Henriques, “ela prova que as regras estão no mundo dos sonhos, um mundo que é muito diferente do mundo dos sonhos em que vivem os investidores.”

Segundo Henriques, as boas regulamentações “acreditam no ceticismo” enquanto “a maioria dos investidores almeja simplicidade”. As boas regulamentações acreditam nas “letras miúdas do contrato” enquanto os investidores “jamais leem as letras miúdas – jamais”. De acordo com Henriques, em Washington todos estão se concentrando nas regulamentações e nas letras miúdas. No mundo real, ou o investidor confia no investimento ou ele não confia. Todas as letras miúdas do mundo e todas as regras do rei não podem te proteger.

O regime de divulgação integral do investimento gerou muitas letras miúdas e muitas regulamentações. Diz Henriques que as regras de proteção não valem a pena porque elas não “refletem o modo pelo qual os investidores atuais tomam suas decisões”. Década após década os americanos desfrutaram de proteção e prosperidade. Esse desfrute esteve estabelecido há tanto tempo que a proteção parecia assegurada. Supomos que nossos investimentos estão seguros, que nosso fundo de pensão está seguro, que o governo assegura tudo e que aqueles que aplicam as regras têm poderes sobre-humanos. 

Nossas suposições estão erradas e são baseadas na duradoura prosperidade americana. Estivemos seguros por décadas e os investimentos foram lucrativos. Não é sempre essa a regra na história. Como explicou o economista Vilfredo Pareto, uma moeda romana investida a 4% ao ano por volta da época de Cristo valeria hoje mais do que o peso da Terra em ouro. Portanto, como qualquer um pode ver, a história não foi segura para os investidores. Para impedir que essa moeda romana se elevasse a um absurdo valor, houve muita pirataria e muitos saques ao longo dos séculos. O número de pessoas confiáveis é contrabalanceado por trapaceiros e criminosos. O erro no caso de Madoff, segundo Henriques, foi o erro dos investidores “até pedirem letras miúdas, mas não lê-las”. 

O senso comum não nos diz para não colocar seu dinheiro em algo que você não pode entender? Uma alta taxa de retorno não significa alto risco? E quanto a colocar todos os seus ovos em uma cesta? Conforme Henriques explica:“ eles não perceberam que ninguém deveria ter em mãos todo o dinheiro das pessoas simplesmente porque eles confiavam nele ou porque alguém que eles admiravam confiava nele.” E mesmo assim, completa Henriques, “no entanto, isso é o que milhões de pessoas fazem. Não consultamos as letras miúdas para decidir se podemos confiar em alguém. Consultamos nossos amigos, parentes e colegas de trabalho... e, em última análise, nossos instintos.

Mas qual é o QI dos seus instintos?

“Mais regras e mais letras miúdas não farão muito para impedir o próximo Bernie Madoff”, diz Henriques. O mundo das regulamentações é um mundo de ilusões – a promessa de proteção sem a realidade. Pois na realidade, todos somos responsáveis por nós mesmos, pois não há substitutos para ler para nós, pensar ou fazer análises cuidadosas em nosso favor. A questão da confiança está aí para que cada investidor lide com ela. É uma questão que requer inteligência, sabedoria, esforço e juízo. POR JEFFREY NYQUIS

Nota do tradutor:
O título faz referência a uma expressão latina cuja tradução é “cuidado, comprador”. Nesse termo fica implícito que a responsabilidade é do comprador – e não do vendedor – de descobrir se há algo de errado com o que ele está comprando.

Tradução: Leonildo Trombela Júnior


quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

MISES E A FAMÍLIA


O escritor, poeta e filósofo G.K. Chesterton dizia que a família era uma instituição anarquista. Com isso, ele queria dizer que não é necessário nenhum decreto do estado para que ela venha a existir. Sua existência flui naturalmente de realidades constantes na natureza do homem, sua forma sendo aperfeiçoada pelo desenvolvimento de normas sexuais e pelo avanço da civilização.

Essa observação é consistente com a brilhante discussão sobre a família feita por Ludwig von Mises em sua magistral obraSocialism, publicada em 1922. Por que Mises abordou a família e o casamento em um livro de economia que refutava o socialismo? Ele entendeu — ao contrário de muitos economistas de hoje — que os oponentes da sociedade livre e voluntária têm um projeto amplo que geralmente começa com um ataque a essa instituição que é a mais crucial de qualquer sociedade.

"Propostas para transformar as relações entre os sexos há muito vêm de mãos dadas com planos para a socialização dos meios de produção", observa Mises. "O casamento deve desaparecer junto com a propriedade privada... O socialismo promete não apenas o bem-estar — riqueza para todos —, mas também a felicidade universal no amor."

Mises observou que o livro de August Bebel (alemão fundador do Partido da Social Democracia Alemã), Woman Under Socialism, um canto de glória ao amor livre publicado em 1892, foi o tratado esquerdista mais lido de sua época. Esse elo entre socialismo e promiscuidade tinha uma proposta tática. Se você não acreditasse no engodo de uma terra prometida onde a prosperidade surgiria magicamente, então você ao menos podia ter a esperança de que haveria uma libertação da maturidade e da responsabilidade sexual.

Os socialistas propunham um mundo no qual não haveria impedimentos sociais ao ilimitado prazer pessoal, com a família e a monogamia sendo os primeiros obstáculos a serem derrubados. Esse plano funcionaria? Sem chance, disse Mises: o programa socialista para o amor livre é tão impossível quanto o programa para a economia. Ambos vão contra as restrições inerentes ao mundo real.

A família, assim como a estrutura da economia de mercado, não é um produto de políticas; é um produto da associação voluntária, tornada necessária por realidades biológicas e sociais. O capitalismo reforçou o casamento e a família porque é um arranjo que depende do consentimento e do voluntarismo em todas as relações sociais.

Assim, tanto a família quanto o capitalismo compartilham as mesmas fundações institucionais e éticas. Ao tentar abolir essas fundações, os socialistas iriam substituir uma sociedade baseada nos contratos por uma baseada na violência. O resultado seria o total colapso social.

Quando os social-democratas Sidney e Beatrice Webb viajaram para a União Soviética, uma década após o lançamento do livro de Mises, eles relataram uma realidade diferente. Eles encontraram mulheres liberadas do jugo da família e do casamento, vivendo vidas felizes e realizadas. Era uma fantasia tão grande — na realidade, uma fantasia sangrenta — quanto suas alegações de que a sociedade soviética estava se tornando a mais próspera da história.

Atualmente, nenhum intelectual mentalmente são defende o total socialismo econômico; mas uma versão diluída do programa socialista para a família é a força-motriz de várias das políticas sociais mais afamadas mundo afora. Essa agenda anda de mãos dadas com a restrição da economia de mercado em outras áreas.

Não é coincidência alguma que a ascensão do amor livre tenha acompanhado a ascensão e o completo desenvolvimento do estado assistencialista. A ideia da emancipação da necessidade de trabalhar (e de poupar e de investir) e da emancipação de nossa natureza sexual tem origem em um mesmo impulso ideológico: superar as realidades estabelecidas da natureza. Como resultado, a família sofreu — exatamente como Mises previu que aconteceria.

Embora os defensores da família e os proponentes do capitalismo devessem estar unidos em um único programa político visando a esmagar o estado intervencionista, eles tipicamente não estão. Os defensores da família, mesmo os conservadores, frequentemente condenam o capitalismo financeiro como uma força alienadora, e defendem políticas irrefletidas como tarifas, monopólios sindicais e programas de renda mínima para pessoas casadas.

Ao mesmo tempo, os adeptos da livre iniciativa demonstram pouco interesse em relação às genuínas preocupações dos defensores da família. E ambos não parecem interessados nos ataques radicais à liberdade e à família que políticas governamentais como leis do trabalho infantil, escola pública, seguridade social, altos impostos e medicina socializada representam. Na visão de Mises, essa cisão é deletéria.

"Não é nenhum acidente que a proposta de se tratar homens e mulheres como sendo radicalmente iguais, de ter o estado regulando as relações sexuais, de colocar crianças em creches públicas e garantir que filhos e pais permaneçam quase que desconhecidos uns para os outros tenha se originado com Platão", que em nada se importava com a liberdade.

Também não é nenhum acidente que essas mesmas propostas hoje em dia sejam defendidas por pessoas que não têm a mínima consideração pela família e pelas leis econômicas.

Lew Rockwell é o presidente do Ludwig von Mises Institute, em Auburn, Alabama, editor do website LewRockwell.com, e autor dos livros Speaking of Liberty e The Left, the Right, and the State
Tradução de Leandro Roque

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

O QUE DEU ERRADO NO BRASIL EM 2012 E O QUE ESTÁ POR VIR

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O artigo a seguir foi extraído do um boletim informativo mensal escrito para a empresa VOGA.

De acordo com as mais recentes estimativas, a economia brasileira deve apresentar um crescimento do PIB de não mais do que 1% em 2012. Os números recentemente divulgados para o terceiro trimestre surpreenderam negativamente o governo, o qual, segundo as palavras do próprio ministro Guido Mantega, havia previsto um crescimento anualizado de 2% — e tudo isso apenas três dias antes de o IBGE divulgar seus dados. 

Com efeito, o pavoroso histórico de Mantega em prognosticar os números da economia solapou sua credibilidade a tal ponto, que a revista britânica The Economist abandonou seu notório entusiasmo em relação ao Brasil e sugeriu a Dilma que demitisse Mantega de seu cargo na Fazenda.

Dado que os prognósticos para o PIB de 2013 também foram revisados para baixo, é de se pensar: o que houve com a famosa "decolagem" da economia brasileira celebrada pela própria The Economist na capa de sua edição de 12 de novembro de 2009? Por que a economia brasileira teve um ano tão ruim?
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Alguns argumentam que a culpada de tudo é a crise financeira mundial. Mas, se é assim, então como é que outras economias emergentes estão crescendo muito mais rápido que o Brasil? Similarmente, poderíamos argumentar que o acentuado crescimento da economia brasileira em 2010 deveu-se a uma pujante economia global, certo? Seria a atual situação culpa da China e seu mais vagaroso crescimento? Muito difícil e ilógico, pois o superávit comercial do Brasil em relação à China é de apenas 0,6% do PIB. Logo, ao contrário do que se imagina, as dificuldades brasileiras não devem ser procuradas no exterior. Os problemas brasileiros são domésticos. E Brasília está no epicentro desta situação aflitiva.

A julgar a quantidade e a frequência de novas medidas anunciadas pelo governo em 2012, um estrangeiro imaginaria que o Brasil está enfrentando uma severa crise. O governo concedeu vários incentivos fiscais para seus setores favoritos, os impostos sobre empréstimos estrangeiros foram meticulosamente manipulados, o Banco Central interveio seguidamente no mercado de câmbio, a taxa oficial de inflação — o IPCA — foi manipulada por meio de alterações nas alíquotas de impostos que incidem sobre vários produtos, os preços vigentes em vários setores sofreram interferência estatal, a dívida e o déficit público foram "controlados" por meio de criativos mecanismos contábeis, os bancos públicos foram obrigados a expandir o crédito para satisfazer interesses políticos, as importações foram restringidas, as exportações foram subsidiadas, empresas estatais e privadas operaram sob ordens diretas da Fazenda (Petrobras e Vale, para ficar nas principais), e, finalmente, as tarifas de energia elétrica foram reduzidas por decreto. Todas essas medidas representam apenas um vislumbre da hiperatividade exercida pelo atual governo brasileiro sobre a economia.

Uma das principais consequências de toda esta interferência estatal na economia é a incerteza que ela gera. Investir nesse cenário requer não apenas uma ótima dose de julgamento empreendedorial, mas também de percepção política, de modo que um empreendedor deve estar plenamente apto a adivinhar o que o governo fará a seguir. Não deveria ser nenhuma surpresa, portanto, a estagnação da economia, uma vez que o investimento é uma das principais variáveis que derrubou o PIB do terceiro trimestre. 

A persistente inflação de preços

No artigo de maio, havíamos dito que havia uma grande chance de o Banco Central conseguir atingir a meta do IPCA (4,50%) ao final deste ano. Hoje está claro que essa previsão foi incorreta. 

O problema é que subestimamos completamente a capacidade do Banco Central de inflacionar a oferta monetária. Embora a expansão do crédito esteja arrefecendo, a impressora sob o comando do senhor Alexandre Tombini está operando em alta rotação. Literalmente. Desde maio de 2012, a quantidade de papel-moeda em poder do público vem crescendo firmemente a uma taxa anual superior a 10%. Nos últimos 15 anos, a média de crescimento desta variável foi de 15%. Poucos bancos centrais no mundo conseguem igualar este recorde.

E o que os números oficiais nos dizem? Uma semana após o IBGE ter publicado os desanimadores números do PIB, o IPCA de novembro foi divulgado: 0,60%, o que totalizou um aumento de 5,53% nos últimos 12 meses. Outra grande frustração para o governo.

Talvez o maior perigo em potencial trazido pela atual tendência inflacionária esteja na chamada Lei de Goodhart — assim nomeada em homenagem a Charles Goodhart, ex-assessor do Banco Central da Inglaterra —, a qual diz que uma vez que um indicador social ou econômico adquire status de meta de política econômica, ele perde o conteúdo informativo que outrora o qualificara a servir como meta. Em outras palavras, tão logo um indicador é escolhido para mensurar a eficácia de políticas sociais e econômicas, ele irá perder todas as informações significativas que ele fornece, pois o governo irá manipulá-lo como mais lhe aprouver.

Boa parte das reduções de impostos adotadas este ano afeta diretamente o IPCA. O mesmo vale para o preço da eletricidade, que possui um peso considerável no índice de inflação oficial. Adicionalmente, e nada surpreendentemente, o senhor Mantega já começou a questionar o IBGE a respeito de seus números para o PIB. De fato, parece que Charles Goodhart tinha razão.

Com a taxa SELIC permanecendo em 7,25% por um bom período de tempo, e com os agregados monetários (base monetária e M1) crescendo aproximadamente 10% ao ano, será necessária muita engenhosidade para trazer o IPCA para mais perto de sua meta de 4,50% em 2013.

Taxa de juros, crédito e bancos públicos

Sei que a questão do crédito bancário já foi abordada extensivamente em outros artigos, mas como o governo simplesmente não consegue deixar se intrometer neste setor, é impossível evitar comentar o quão equivocada é esta política e o quão perigosa ela pode ser para a saúda da economia, pública e privada. Em abril, chamamos atenção para a reestatização do crédito que estava sendo implementada. Desde então, tal tendência não foi revertida. Muito pelo contrário: dada a perseverança do governo em pressionar os bancos estatais a oferecerem empréstimos baratos e abundantes, a quantidade de crédito sob controle estatal será rapidamente a metade do crédito total no país. Adeus "economia de mercado".

O Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal estão adquirindo novas fatias de mercado, especialmente no ramo de empréstimos ao consumidor, ao passo que os bancos privados seguem relutantes em se curvar às exigências do governo e reduzir ainda mais seus spreads. Enquanto os empréstimos dos bancos privados para os consumidores cresceram 6% em 12 meses, os bancos estatais aumentaram seus empréstimos em quase 30% durante este mesmo período.

Ainda em meados do ano passado, antecipamos que o BB e a CEF necessitariam, mais cedo do que os analistas imaginavam, de uma injeção de capital do governo, caso contrário sua alavancagem e seu índice de Basileia piorariam. Em setembro, o Tesouro anunciou que ambas as instituições ganhariam R$8 e R$13 bilhões respectivamente, em capital híbrido cujos termos "seriam decididos pelo Ministro da Fazenda em uma data posterior".

Não obstante, mesmo com todas estas medidas extraordinárias para aumentar os empréstimos e reduzir os spreads, esta fonte de (insustentável) crescimento está atualmente exaurida. As famílias brasileiras estão fortemente endividadas. Graças aos pequenos prazos concedidos aos empréstimos e às altas taxas de juros cobradas, os brasileiros comprometem mais de 20% de sua renda disponível para o serviço de suas dívidas, praticamente o dobro da média americana. Isso explica parcialmente por que o crédito vem crescendo a um ritmo mais moderado, não obstante todos os esforços do governo; a demanda por empréstimos não pode ser estimulada magicamente. Portanto, do lado da demanda, o governo parece incapaz de reativar o PIB.

E quanto ao lado da oferta? Pode o investimento fazer o PIB crescer, como fez em 2010? Sim, isso é possível, mas à custa de uma alocação de capital totalmente errônea e insustentável, descolada da genuína demanda — mais especificamente, à custa de investimentos ruins. Vamos explicar.

Durante a última década, houve três momentos em que a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF) cresceu a uma taxa muito mais alta do que a de sua média de 5,4% ao longo dessa mesma década: em 2007, quando chegou ao seu até então pico de 13,9%; em 2008, quando foi de 13,6%; e finalmente em 2010, quando chegou a incríveis 21,3%. Esta foi a primeira vez desde a introdução do real em que a FBCF aumentou mais de 20% — resultado direto das taxas de juros historicamente baixas e da generosa caridade do BNDES para com as grandes empresas. Em outras palavras, uma precificação errada do capital estimulou uma profusão de investimentos no Brasil.

Na maioria dos países, as taxas de concessão de crédito tendem a andar em simultâneo com o crescimento nominal do PIB. "A maneira de entender isso", escreveu Jim Walker, fundador e presidente da Asianomics Ltd., "é que a taxa de crescimento do PIB (renda) deve ser suficiente para sustentar o serviço da dívida. Ela é também um sinal para os produtores: o capital não é gratuito".

Gillem Tulloch, analista da Forensic Asia, empresa irmã da Asianomics, explica que "uma taxa de juros livre de risco é geralmente similar à taxa de crescimento nominal do PIB, o qual é um bom substituto para a taxa de crescimento dos lucros". Assim, em economias em que "há menos repressão financeira", conclui Tulloch, "o crescimento nominal do PIB e a taxa de juros livre de risco geralmente são similares".

No Brasil, um bom mensurador para o custo do capital é a taxa do CDI (Certificados de Depósito Interbancário — taxa de juros para empréstimos interbancários, os quais são lastreados por títulos do Tesouro). Durante a maior parte da década, as taxas do CDI se mantiveram bem acima do crescimento nominal do PIB (gráfico 1), o que implicava um alto custo para o capital. O pequeno prazo de maturação da dívida pública (gráfico 2) e as altas expectativas inflacionárias certamente contribuíram para este fenômeno.

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Gráfico 1

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Gráfico 2


O que os anos de 2007, 2008 e 2010 têm em comum é que, durante a maior parte deste período, as taxas do CDI foram menores que a taxa de crescimento nominal do PIB (gráfico 1), o que sugere que o capital estava precificado abaixo do seu real valor de mercado. O pequeno boom econômico daqueles anos produziu a consequente estagnação de 2011 e 2012.

Portanto, considerando-se a tépida atividade econômica, pergunta-se: como exatamente o governo está tentando fazer o investimento voltar à sua trajetória de crescimento? Exato, você acertou. Estimulando novas rodadas de crédito abundante e barato. Precificar o capital a um valor abaixo do de mercado é a política oficial do governo. 

O grande elefante na loja de porcelana

Já mencionamos a injeção de capital no BB e na CEF. Agora temos de abordar o grande elefante na loja de porcelana: o BNDES. Desde 2009, como parte do anticíclico Programa para a Sustentação do Investimento (PSI), o Tesouro transferiu quantias colossais de dinheiro para o banco de desenvolvimento. De início, tudo seria apenas temporário. No entanto, a cada ano, o programa foi sendo prolongado. Em 2013, já é esperado que o BNDES irá receber mais R$100 bilhões do governo. Isso não é mixaria. Atualmente, os empréstimos concedidos pelo BNDES representam um quinto do crédito total no país. E o que é ainda mais perturbador é o fato de que o Tesouro Nacional tem sido a principal fonte de financiamento para o BNDES, e suas concessões de crédito têm sido direcionadas majoritariamente para as indústrias favoritas do governo, empresas grandes que não teriam dificuldades para obter crédito no mercado.

Para intensificar os problemas, o capital está sendo precificado a valores cada vez menores. Em 2013, a taxa de juros para os empréstimos subsidiados estará entre 3 e 5%, em termos nominais. Isso significa taxas de juros reais negativas. Ou seja, o governo está basicamente pagando as grandes empresas para que elas peguem dinheiro emprestado. Outros programas federais constitucionalmente obrigatórios estão oferecendo empréstimos a uma inacreditável taxa de 2,5%. Em suma, o capital é realmente gratuito — quando concedido pelo governo, é claro.

Voltando à nossa pergunta sobre o PIB, pode o investimento fazer com que ele cresça a uma taxa maior em 2013? É claro que pode. Mas com o capital sendo concedido a custo quase zero, investimentos errôneos e insustentáveis serão a consequência natural. Algumas empresas serão claramente beneficiadas, talvez setores inteiros; mas isso não pode fazer com que toda a economia fique mais rica. Portanto, embora o investimento privado possa aumentar em 2013, isso ocorrerá à custa de menores investimentos em conjunto com a liquidação de investimentos ruins em um período posterior. É impossível precificar erroneamente o capital e ao mesmo tempo evitar as necessárias correções na estrutura de produção da economia. 

Infelizmente, as consequências de longo prazo destas políticas não serão limitadas ao setor privado: as finanças públicas do Brasil dificilmente passarão incólumes.

A situação fiscal do governo, ao contrário das alegações, não está nada em ordem

A tendência é bastante clara: a dívida líquida do Brasil em relação ao PIB tem estado em declínio ao longo dos anos. Guido Mantega e sua equipe não se cansam de ostentar os números (gráfico 3). Mas o que eles nunca mencionam são os créditos concedidos pelo Tesouro ao BNDES e a outros bancos estatais, que chegam a quase R$400 bilhões, praticamente 25% do total da dívida líquida. Quando se leva estes números em consideração, a dívida líquida em relação ao PIB sobe de 35,2% para 44,1%.
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Gráfico 3


No entanto, alguns podem argumentar que, dado que tais empréstimos são um ativo do governo, seria perfeitamente justificável levá-los em consideração no cálculo. Certo? 

Errado.

Além do custo fiscal trazido pelas taxas caridosamente subsidiadas pelo Tesouro, o BNDES pega dinheiro emprestado do governo (o Tesouro emite títulos para conseguir este dinheiro) a um período médio de amortização de mais de 30 anos. Não, não houve nenhum erro de digitação aí. São realmente trinta longos anos. Paralelamente, a dívida pública possui um prazo médio de duração de quatro anos. Consequentemente, o governo tem de refinanciar esses R$400 bilhões a cada quatro anos para poder dar continuidade às extravagâncias do BNDES, e ele tem de repetir este processo mais sete vezes antes de o banco de desenvolvimento começar a devolver ao Tesouro seus primeiros centavos.

O BNDES certamente já deixou sua marca na história do sistema bancário mundial. Ele alcançou o nirvana almejado por qualquer banqueiro: toma empréstimos a prazos extremamente longos, concede empréstimos de maturação bastante curta, e, em todo este processo, aufere altos lucros oriundos de um spread positivo.

Do lado do Tesouro, embora a dívida líquida apresente trajetória declinante, a dívida bruta segue crescente, e já chegou aos 60% do PIB. Mas ninguém do governo se incomoda com este coeficiente. Tudo o que importa é que a dívida líquida está visivelmente em um caminho cintilante. Para entender melhor a absurdidade desta métrica, considere isso: caso o Tesouro transferisse R$1,5 trilhão para o BNDES, a dívida líquida do Brasil em relação ao PIB iria instantaneamente cair para zero. Esperemos que o senhor Mantega jamais leve este exemplo hipotético a sério.

Por outro lado, há um quesito que ele poderia levar bastante a sério: a meta do superávit primário (gráfico 4), o qual, diga-se de passagem, também vem apresentando um declínio contínuo. Só que, neste caso, isso não é um bom sinal. Desde a introdução do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), o governo astutamente aprovou uma legislação que o permite "descontar" os investimentos do PAC do cálculo do superávit primário sempre que se tornar claro que a meta não será alcançada. Em 2012, mesmo após ter recorrido a este subterfúgio, o Tesouro dificilmente irá alcançar a meta de 3% de superávit primário em relação ao PIB. Por sorte, a acentuada redução da taxa SELIC está aliviando o custo dos juros sobre a dívida pública, fazendo com que o déficit nominal em relação ao PIB se mantenha relativamente estável em 3%.
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Gráfico 4


No entanto, o verdadeiro déficit jamais é mencionado. Quando levamos em conta a necessidade de se refinanciar a dívida, isto é, a dívida que deve ser rolada em um dado período, o déficit real sobe para estonteantes 18,2% do PIB, um nível apenas ligeiramente menor do que aquele que levou os PIIGS ao seu calvário (para mais detalhes sobre este processo, ver este artigo). Ao contrário destes problemáticos países europeus, o Brasil já paga uma alta taxa de juros sobre sua dívida, o que o permite rolar com mais facilidade suas obrigações vincendas. Pelo menos por ora.

Mas como os atuais incentivos fiscais irão impactar as finanças do governo nos anos vindouros? Nem mesmo o governo se arrisca a dizer. Não nos entenda mal, somos sempre a favor de uma redução na carga tributária. No entanto, não da maneira improvisada como ela foi feita neste ano. Ademais, reduzir as receitas do Tesouro sem uma concomitante redução nos gastos é uma política extremamente perigosa.

O que ainda está por vir

Há uma outra tendência preocupante que poucos economistas estão abordando: a acumulação de empréstimos feitos por bancos estatais para entidades federais e estaduais, bem como para governos estaduais.

Uma fonte fundamental para a inflação monetária dos anos 1980 e 1990, os hoje extintos bancos estaduais regionais tinham de ser constantemente socorridos pelo Banco Central em decorrência de seus temerários empréstimos para os governos estaduais e para suas respectivas estatais, operação esta que equivalia a criar dinheiro e desperdiçá-lo. Com enorme frequência, tal operação significava emprestar para seu próprio acionista — os respectivos estados.

Com as reformas estruturais dos anos 1990, estes bancos foram ou liquidados ou privatizados, e a quantidade de empréstimos que podiam ser tomados por governos estaduais foi limitada pela Lei de Responsabilidade Fiscal, reduzindo essa questionável prática a um mínimo. Mas isso já mudou. Tendo crescido a uma taxa de 50% em relação ao ano passado, já há um total R$100 bilhões concedidos via empréstimos ao setor público. Há algum banco privado bancando este risco? Duvidoso. Para ser mais exato, bancos estatais são responsáveis por nada menos que 98% do dinheiro emprestado ao setor público.

E tem mais. Guido Mantega recentemente aprovou um aumento da tolerância fiscal para a maioria dos estados, permitindo que eles pegassem mais empréstimos e aumentassem o investimento público. Trata-se de uma clara violação da Lei de Responsabilidade Fiscal. Consegue ouvir os passos do elefante? Consegue ouvir as porcelanas sendo destroçadas? Não há mais necessidades de os estados recorrerem ao setor privado; o BNDES irá financiar a farra creditícia.

Podemos agora finalmente responder à pergunta sobre se o investimento irá elevar o PIB do próximo ano. Francamente, cremos que sim. Tanto o investimento privado quanto o público tende a crescer. O primeiro devido à sub-precificação do capital; o último em decorrência da nova e confortável relação com os bancos estatais. No entanto, a qualidade destes investimentos é uma questão totalmente à parte.

Para onde estamos indo

A menos que ocorra uma súbita e acentuada alteração de rota, a economia brasileira não está indo para um caminho de desenvolvimento sólido. Falando mais claramente, o governo está se intrometendo em tudo. As reformas macroeconômicas feitas com a introdução do Plano Real foram as mínimas necessárias para permitir algum desenvolvimento econômico. Agora já voltou a ficar claro que existem muitos gargalos. O custo Brasil não pode ser resolvido por meio de microgerenciamentos da economia. Adicionalmente, ao suprimir o mecanismo de preços em vários setores, desde eletricidade até petróleo, passando por telecomunicações, o governo está apenas provocando escassez quando tudo o que ele mais quer é abundância.

Certamente não é nossa crença que a estabilidade macroeconômica e o crescimento do PIB brasileiros observados ao longo dos últimos 15 anos se devem majoritariamente a um boom no setor de commodities, liderado pela China. Para surfar a onda gerada por um boom nas commodities, nossa prancha de surfe tem de estar em bom estado. Foram precisamente as reformas estruturais feitas nos anos 1990 e no início da década de 2000 que garantiram um sólido fundamento para a estabilidade, a qual, no final, permitiu que o país se beneficiasse de uma economia global em franco crescimento.

No entanto, desde o advento da presidência de Lula, nenhuma reforma estrutural foi feita. E não há nenhuma reforma estrutural na agenda do atual governo. Com o risco de soarmos repetitivos, insistimos que as reformas macro — legislação trabalhista, tributária, previdenciária etc. — são essenciais para garantir um crescimento econômico sólido e sustentável.

Considerando a visão de mundo de Dilma e de seu partido, em conjunto com suas aparamente altas taxas de aprovação, é de se temer que Guido Mantega e sua equipe econômica continuem insistindo nestas políticas fracassadas. Lentamente, porém resolutamente, o PT está solapando os fundamentos da estabilidade econômica implementados durante o governo FHC.

Não obstante, o Ministro da Fazenda prometeu manter sua postura keynesiana, e dar continuidade à política de fornecer mais estímulos à economia. O que ele parece não entender é que tudo o que a economia mais precisa é da remoção dos desincentivos ao investimento, e não de mais intervenções para tentar remediar as fracassadas intervenções passadas.

Se seu investimento só é viável com empréstimos concedidos a juros de 2,5%, e sob generosas condições, então seu investimento não é viável em termos normais. E se ele não é viável, é porque ou não há demanda para seus produtos ou a carga tributária faz com que ele não seja lucrativo. Se a carga tributária é a culpada, então está claro por que o investimento não é tão alto quanto o governo gostaria que fosse. Tornar empreendedores viciados em crédito barato e farto não irá curar essa indisposição. Tampouco seria uma solução racional fazer o governo empreender faustosos investimentos públicos. Tal medida representaria apenas o desperdício de recursos escassos e a alocação errônea e insustentável de capital. Falando nisso, a um ano e meio do início da Copa do Mundo de 2014 e com várias obras de infraestrutura ainda com considerável atraso, 2013 promete ser um ano repleto de devassidão com o dinheiro dos pagadores de impostos.

Muitos podem dizer que esta visão é "pessimista". Mas não é. Se o governo alega que irá reduzir as tarifas de eletricidade e ao mesmo tempo fazer com que a energia seja abundante por meio da imposição de controle de preços, deveríamos nos ajoelhar e rezar pedindo para que "desta vez funcione"? Ou você entende as consequências das políticas públicas e passa a agir correspondentemente, ou você ingenuamente se entrega à esperança de que, por algum motivo inaudito, o resultado desta vez será diferente.

Mas ainda é possível permanecer otimista em relação a qualquer setor que ainda não tenha sido tocado pelo governo. O desafio, no entanto, é descobrir qual seria esse oásis econômico no Brasil.

Fernando Ulrich formado em administração de empresas pela PUC-RS, concluiu em julho de 2010 o programa de mestrado em economia austríaca comandado por Jesús Huerta de Soto em Madri, Espanha.  Atualmente trabalha no mercado financeiro. 

SEJAMOS PRAGMÁTICOS

Tão logo surgiram as primeiras notícias do mais recente massacre de crianças nos Estados Unidos, começaram as pressões para a revisão da lei de controle de armas. O presidente Obama, por exemplo, em discurso emocionado, disse que algo precisava ser feito com urgência para evitar futuros episódios semelhantes e conclamou o Congresso a discutir a questão “sem ideologias”. Portanto, sejamos pragmáticos. 

Quem quer que pretenda analisar os fatos e as possíveis soluções de forma racional e objetiva precisa, antes de mais nada, colocá-los em perspectiva. Muito embora massacres como aquele sejam cruéis e chocantes, é necessário relativizá-los para saber até que ponto uma ação política restritiva das liberdades individuais, francamente conflitante com alguns princípios constitucionais fundamentais da nação americana, seria realmente necessária, urgente e efetiva. 

Vejamos então alguns dados empíricos relevantes. No livro "Risco: a Ciência e a Política do Medo", o jornalista canadense Dan Gardner calculou que a probabilidade de um estudante americano ser assassinado na escola era praticamente irrisória - menos de 1 em 1,5 milhão. Muitos sequer imaginam, mas nos últimos 30 anos morreram, em média, três vezes mais pessoas atingidas por raios nos EUA do que vítimas de atiradores possessos – 51 a 18 por ano. 

Diante desses números, a pergunta lógica é: vale à pena fazer alguma coisa para tentar reduzir ainda mais as chances desses massacres, tendo em vista os eventuais efeitos colaterais indesejáveis dessas medidas? Em outras palavras, será que o tratamento não seria pior que a doença? Calcula-se que existam na América 310 milhões de armas não militares nas mãos dos cidadãos (mais de uma arma por cabeça), enquanto o índice de homicídios praticados por tais armas é de cerca de 4 para cada 100.000 pessoas, com tendência fortemente declinante nas últimas décadas. Não se sabe quantos crimes são evitados, todos os dias, por conta do farto arsenal mantido pela população ordeira, mas a lógica nos induz a pensar que tirar do cidadão a prerrogativa de legítima defesa só dará mais vantagem e confiança aos bandidos. Senão, vejamos: 

No Brasil, o acesso a uma arma, pelo menos legalmente, é muito difícil, quase impossível. Apesar disso, o índice de homicídios por armas de fogo está na casa dos 20 para cada 100.000 habitantes ou 5 vezes o padrão americano. Chacinas por aqui também não faltam, vide São Paulo nos últimos meses. A experiência brasileira demonstra, portanto, que dificultar a aquisição legal de armas não é sinônimo de segurança, muito pelo contrário. 

Sejamos pragmáticos: alterar a constituição de um país, em vigor de forma eficaz há mais de 2 séculos, por conta de alguns casos isolados, ainda que chocantes, não é uma decisão sensata. Políticas públicas não devem ser ditadas no calor das emoções, simplesmente para apaziguar os ânimos mais exaltados, até porque boa parte das pessoas não conhece as estatísticas ou vislumbra os possíveis efeitos colaterais de certas políticas. O clamor público, quase sempre irracional ou manipulado ideologicamente, nunca foi bom conselheiro. 
Por: João Luiz Mauad, O GLOBO 

segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A ECONOMIA BRASILEIRA - UM RESUMO DE FINAL DE ANO

O frenesi intervencionista

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O ano de 2012 certamente já tem seu lugar garantido na história econômica brasileira: foi o ano em que o governo mais exacerbou suas intervenções na economia.

Sim, é verdade que a economia brasileira da década de 1980 e da primeira metade da década de 1990, com seus congelamentos de preços, monopólios estatais e hiperinflação, era muito mais estatizada e bem menos livre que a atual. Porém, mesmo naquela época, havia uma tendência de adoção de medidas de desestatização. Se, de um lado, o governo congelava preços e hiperinflacionava a moeda, de outro, ele reduzia tarifas de importação, extinguia reservas de mercado e privatizava estatais deficitárias. Se o governo se intrometia demais em alguns campos, em outros ele dava sinais de que iria se retirar.

Em 2012, só houve notícias ruins. O estado se agigantou em todos os setores da economia. Mesmo a única notícia aparentemente positiva — a redução do IPI dos automóveis — veio acompanhada 1) de um aumento sanguinário das tarifas de importação e do IPI para automóveis estrangeiros, fazendo com que seu a carga tributária total sobre eles chegue a soviéticos 340%; 2) da imposição dequotas para a importação de automóveis do México, 3) da proibição de demissões por parte das montadoras, e finalmente 4) da ideia ainda não descartada de que o governo iria supervisionar os balancetes das montadoras, estipulando um teto para suas margens de lucro.

Qual foi a consequência de tamanho protecionismo e intervencionismo no setor automotivo? Com a palavra, a própria beneficiada: "a ANFAVEA (Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores) calcula uma queda de 1,5% na produção neste ano ante 2011. Esta será a primeira queda na produção desde 2002."

Ou seja, ocorreu exatamente o oposto do intencionado pelo governo, que era aumentar a produção e o emprego. 

Com efeito, o mesmo fenômeno pôde ser observado em todo o setor industrial. Incontáveis medidas intervencionistas e protecionistas foram colocadas em prática, como os seguidos recordes de apreensão de bagagens em aeroportos, o aumento do PIS/COFINS sobre produtos importados, os sucessivos recordes de arrecadação com o imposto de importação contra 'o importado barato', os desembolsos recordes do BNDES para as grandes empresas, a exigência de uma enorme fatia de conteúdo nacional para as produções industriais de todos os tipos, a proteção explícita aos setores têxtil, de calçados, de brinquedos, de artefatos de madeira, de palha, de cortiça, de vime e material trançado e transformados de plástico, além do aumento da taxa de importação sobre lâmpadas e sapatos chineses, pneus, batata, tijolos, vidros, vários tipos de máquinas, reatores para lâmpadas ou tubos de descarga, vagões de carga, disjuntores, cordas e cabos, móveis, triciclos, patinetes, bonecos, trens elétricos, quebra-cabeças, produtos lácteos (leite integral, leite parcialmente desnatado e queijo muçarela) e pêssegos (sério!). 

Adicionalmente, o câmbio em 2012 foi substancialmente desvalorizado em relação a 2011 (de R$1,60/US$ para R$2,10/US$).
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Gráfico 1: taxa de câmbio real/dólar; Fonte: Banco Central


Pela lógica dos intervencionistas, tamanha desvalorização cambial em conjunto com toda aquela cornucópia de medidas protecionistas deveria ter colocado a indústria em estado de extrema pujança. E o que houve? Tanto aprodução industrial quanto o emprego na indústria caíram em relação ao ano passado.

Óbvio: desvalorizar a moeda e encarecer importações serve apenas para reduzir o poder de compra da população, que agora terá de gastar mais dinheiro com produtos de menor qualidade, e consequentemente terá menos dinheiro para gastar em outros bens e serviços. Isso é um ataque direto ao padrão de vida. Uma população com menos poder de compra não ativa indústria nenhuma.


O que vimos em 2012 foi mais um exemplo da arrogância fatal de burocratas e planejadores que juram saber exatamente como os indivíduos irão reagir em decorrência de suas intervenções no mercado. Para eles, empreendedores e consumidores padecem do condicionamento clássico do cão de Pavlov: estão sempre prontos a agir estritamente de acordo com estímulos recebidos do governo. Porém, quando o plano dá errado e tudo sai exatamente ao contrário do planejado, em vez de humildemente reconhecerem o erro e reverterem suas intervenções, eles simplesmente dizem, com toda a arrogância, que o que fizeram foi certo mas insuficiente, de modo que mais estímulos se fazem necessários.

Curiosamente, nas últimas recessões brasileiras, em 2003 e em 2009, o governo não saiu baixando pacotes e nem recorreu a medidas intervencionistas mais proeminentes. Em 2003, ele seguiu a cartilha clássica: elevou juros e congelou os gastos. Adicionalmente, não tentou controlar preços e nem privilegiar nenhuma indústria. Também não recorreu ao protecionismo. Por não ter atrapalhado e nem ter gerado incertezas, a economia se recuperou em um ano. Em 2009, embora tenha havido um pouco mais intervenção do que em 2003, o governo não interveio no câmbio e nem recorreu a políticas protecionistas. Principalmente, ele permitiu que preços e salários se ajustassem para baixo. Isso, novamente, permitiu uma rápida recuperação.

O atual governo Dilma, o qual reinstituiu a figura do czar da economia — Guido Mantega é, ao mesmo tempo, Ministro da Fazenda, presidente do Banco Central, ministro do Planejamento e ministro do Desenvolvimento — já é, sem rivais, o mais intervencionista desde a criação do real. Ela conseguiu a façanha de fazer seu antecessor parecer um moderado.

E não há muitos indícios de que isso será revertido no curto prazo. Uma das possíveis próximas tragédias desse intervencionismo já está se desenhando no setor elétrico. Aguardemos.

A estagnação econômica

A principal debilidade da economia brasileira é que ela não se baseia em poupança e nem em investimento, mas sim no fomento ao consumismo puro e simples. Para o iluminado que comanda a Fazenda, se você estourar o seu cartão de crédito e depois pedir empréstimo no banco para cobrir o rombo em sua fatura e voltar a consumir ainda mais, você está estimulando a economia.

Todo o modelo de crescimento se baseia na expansão do crédito. E tal modelo possui óbvias limitações. A mais visível delas é o aumento do endividamento. Se o governo estimula as pessoas a se endividarem para consumir, não é de se espantar que cheguemos a um momento em que tanto o nível de endividamento quanto os gastos das famílias com o serviço de suas dívidas (pagar juros e amortização) seja intolerável. De acordo com as últimas estatísticas, o endividamento das famílias (linha azul) é de quase 45% da renda nacional, e os gastos das famílias para cumprirem o serviço de suas dívidas (linha vermelha) é de 22,5% de sua renda.
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Gráfico 2: endividamento das famílias e gastos com serviço da dívida; Fonte: Banco Central


A título de comparação, como é possível ver no gráfico deste artigo, esta mesma variável (linha vermelha) para os americanos é de 11%.

Em um cenário destes, resta óbvio que adicionais estímulos ao consumo não apenas são ineficazes em termos de crescimento econômico, como também são extremamente perigosos.

E esse endividamento explica boa parte da atual estagnação econômica.

Explicando a mecânica da estagnação

Para entender a estagnação, é necessário analisar o que está acontecendo com aquela variável que representa a metade de toda e qualquer transação econômica: o dinheiro. Dado que o dinheiro é o elo entre todas as atividades econômicas, qualquer alteração na quantidade de dinheiro — e, principalmente, na taxa de crescimento da quantidade de dinheiro — irá inevitavelmente provocar movimentos generalizados em uma economia. Todo e qualquer ciclo econômico é causado por variações na quantidade de dinheiro na economia.

Portanto, para entender os ciclos de expansão e recessão de uma economia, para entender por que há períodos de crescimento econômico seguidos de períodos de estagnação/recessão, é necessário estudarmos as variações no meio geral de troca, que é o dinheiro.

No atual sistema monetário e bancário, o Banco Central controla a base monetária do país. Porém, a quantidade de dinheiro produzida pelo Banco Central é insignificante se comparada à quantidade de dinheiro eletrônico que o sistema bancário cria por meio da expansão do crédito através de seu sistema de reservas fracionadas. Sempre que uma empresa ou um indivíduo qualquer vão a um banco e pedem um empréstimo, o banco cria do nada dinheiro eletrônico na conta-corrente deste tomador de empréstimo. O dinheiro não foi retirado de nenhuma outra conta. Ele simplesmente foi criado ex nihilo. O bancário apertou algumas teclas no computador e dígitos eletrônicos surgiram na conta-corrente do mutuário. É assim que o dinheiro entra na economia no sistema monetário atual e é assim que a quantidade de dinheiro em uma economia aumenta. (Todo este processo foi explicado em detalhes neste artigo, de modo que, pelo bem da brevidade, ele não será repetido aqui).

Embora toda a concessão de crédito represente criação de dinheiro, existe também a operação inversa, que é a destruição deste dinheiro que entrou na economia. Por exemplo, quando um banco quer aumentar seu capital, ele vende um papel. A pessoa ou empresa que comprar este papel irá transferir dinheiro da sua conta-corrente para este banco. O banco pegará este dinheiro (totalmente eletrônico) e irá contabilizá-lo como 'reservas bancárias', que é um ativo em seu balancete. Ao final do processo, houve uma redução da quantidade de dinheiro na economia e um aumento das reservas bancárias, que é um dinheiro que não está na economia. Exatamente o mesmo procedimento ocorre quando um banco vende dólares em sua carteira para algum cliente ou mesmo quando ele toma empréstimos junto a corretoras, distribuidoras, sociedades de arrendamento mercantil e fundos de investimento financeiro.

Fiz essa digressão técnica apenas para explicar por que a quantidade de dinheiro na economia não é idêntica à quantidade de crédito criada pelo setor bancário. Embora bancos criem dinheiro concedendo crédito, eles também destroem dinheiro quando vendem algum papel para se recapitalizar.

Entendido isso, o gráfico a seguir mostra a evolução da quantidade total de dinheiro na economia. Trata-se de papel-moeda em posse de indivíduos e empresas, mais o total de dinheiro eletrônico em conta-corrente, em poupança, em depósitos a prazo e em outros depósitos no sistema bancário. Em suma, o gráfico mostra todo o dinheiro que foi criado via concessão de crédito, e já descontado de todo o dinheiro que foi retirado da economia. Trata-se de um bom indicador para saber se o ritmo da concessão de crédito está maior, igual ou menor do que o ritmo da retirada de dinheiro da economia, o que, por sua vez, indicaria uma maior cautela dos bancos.

(Infelizmente as duas variáveis não são fornecidas já somadas, de modo que tal operação aritmética será feita no segundo gráfico).
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Gráfico 3: papel-moeda em poder do público mais depósitos em conta-corrente (moeda) mais depósitos em poupança, depósitos a prazo e outros depósitos em bancos (quase-moeda); Fonte: Banco Central
Abaixo, a soma das duas variáveis acima, desde janeiro de 2009, ano da última recessão. Observe que a partir de meados de 2009, começa a haver uma aceleração do crescimento da quantidade de moeda na economia. Tal aceleração se intensifica em 2010. Essa foi a época do crescimento econômico forte, porém artificial. Em 2011, começa a haver uma desaceleração. Em 2012, o crescimento monetário praticamente se estanca no segundo semestre.
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Gráfico 4: crescimento da quantidade total de moeda na economia; Fonte: Banco Central


No Brasil, desde 2009, os indivíduos intensificaram seu endividamento (ver gráfico 2) para poder consumir, na crença de que a expansão do crédito continuaria farta e que sua renda futura continuaria aumentando, o que facilitaria a quitação destas dívidas. Já as empresas embarcaram em investimentos de longo prazo levadas tanto pela redução artificial dos juros criada pela expansão monetária do Banco Central (o que fez com que os investimentos se tornassem mais financeiramente viáveis) quanto pela expectativa de que o aumento futuro da renda possibilitaria o consumo dos produtos criados pelos seus investimentos. 

No entanto, tão logo o endividamento foi aumentando, a demanda por mais empréstimos foi se arrefecendo e o modelo de expansão do crédito foi se esgotando. Consequentemente, a taxa de crescimento da quantidade de dinheiro na economia brasileira começou a desacelerar. Isso fez com que os projetos das empresas, das indústrias e dos indivíduos se comprovassem irrealizáveis. No caso dos indivíduos, esta redução na taxa de crescimento da oferta monetária fez com que suas rendas não aumentassem como haviam previsto ainda no ápice do boom econômico, o que tornou suas dívidas difíceis de serem quitadas. No caso das empresas, tal redução faz com que suas receitas futuras não fossem as previstas (vide o caso das indústrias e, mais recentemente, da Gol e de empresas do setor imobiliário), ao mesmo tempo em que seus custos (com mão-de-obra e bens de capital) seguiram crescendo em decorrência da inflação passada.

Vale ressaltar que não são reduções forçadas nos juros que irão resolver esse problema. Reduções nos juros estimulam consumismo, mas não estimulam mais poupança, que é justamente do que endividados necessitam. 

Caso não haja reversão da tendência acima, o ano de 2013 promete dificuldades. 


Para mais detalhes e mais dados sobre o mecanismo de expansão do crédito no Brasil e seu efeito direito sobre vários indicadores da economia brasileira, sugere-se este artigo.

O maior problema do Brasil para o longo prazo

Enquanto a imprensa se ocupa em alardear os previsíveis e desimportantes números do PIB (para entender por que o PIB nada diz de concreto ver aqui, aqui, aqui e aqui), fatores realmente importantes e decisivos estão sendo ignorados. 

Por exemplo, a destruição do poder de compra da moeda em conjunto com as proibitivas tarifas de importação. Temos hoje uma moeda continuamente inflacionada e desvalorizada em relação às outras moedas, o que encarece sobremaneira as importações de bens de capital e bens de consumo. Além de a unidade monetária comprar cada vez menos, o governo ainda impõe tarifas de importação para encarecer ainda mais as compras do exterior. Ou seja, ao mesmo tempo em que encarece as coisas aqui dentro, o governo proíbe a população de comprar barato do exterior.

A consequência desse fechamento das fronteiras? Coube ao Financial Times nos mostrar. O gráfico abaixo ilustra a produtividade de alguns países em relação aos EUA.
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Gráfico 5: produtividade da mão-de-obra em de vários países em relação à mão-de-obra americana


Observe que a produtividade dos trabalhadores brasileiros não apenas está em queda livre, como é a única que vem caindo década após década. Um trabalhador brasileiro médio tem apenas 20% da produtividade de um americano. No ano de 1980 (atenção, ano; e não década), ele tinha 30% da produtividade. (Deve-se levar em conta que toda a década de 1970 foi de estagflação para os EUA, sendo aquela a sua década perdida; daí o salto brasileiro observado entre 1970 e 1980. Já em 1990, após a década perdida de 1980 para o Brasil, as coisas voltaram a ser como antes).

Por que essa queda contínua? Meu palpite: porque além de termos uma mão-de-obra pouco instruída, as tarifas protecionistas impostas pelo governo encareceram ainda mais a importação de bens de capital, justamente o que poderia aumentar nossa produtividade no curto prazo. Alexandre Schwartsman comentou isso recentemente:

Desde o terceiro trimestre de 2011 os preços em dólares dos bens de capital importados recuaram 1%, mas a depreciação da moeda, 24% no período, implicou uma elevação de 23% no preço em reais destes bens (19% descontada a inflação).

Esta não é, provavelmente, a única causa da queda do investimento, mas é difícil comprar a ideia que um aumento desta magnitude no preço dos bens de capital não representa um impacto negativo na decisão de investir...

Com uma mão-de-obra mal instruída e pouco produtiva, dificultar o acesso a bens de capital seria a última coisa que qualquer ser racional defenderia. Mas estamos falando do governo, que opera em outra dimensão de inteligência.

O padrão de vida de um país é determinado pela abundância de bens e serviços. Quanto maior a quantidade de bens e serviços ofertados, e quanto maior a diversidade dessa oferta, maior será o padrão de vida da população. Por exemplo, quanto maior a oferta de alimentos, quanto maior a variedade de restaurantes e de supermercados, de serviços de saúde e de educação, de bens como vestuário, materiais de construção, eletroeletrônicos e livros, de pontos comerciais, de shoppings, de cinemas etc., maior tende a ser a qualidade de vida da população. 

Porém, a quantidade e a diversidade não bastam. A facilidade de acesso a estes bens e serviços — no caso, quão caros eles são — também é essencial. Por isso, é de suprema importância termos uma moeda forte.
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No Brasil, além de a qualidade dos serviços no geral ser ruim, a quantidade e a variedade de bens de consumo é muito baixa, pois além de o governo dificultar ao máximo as importações, nossa desvalorizada moeda não tem poder de compra em relação às principais moedas do mundo. E não bastasse a pouca oferta e a pequena variedade de bens e serviços, o acesso a eles é caro, justamente porque o governo destrói continuamente o poder de compra da moeda.

Portanto, eis a realidade atual do Brasil: qualidade da mão-de-obra em queda livre, quantidade e variedade de bens e serviços bastante insatisfatória, e acesso a eles cada vez mais caro. Em vez de facilitar a aquisição de bens de capital, o que poderia remediar a questão da baixa produtividade e da qualidade dos bens e serviços, o governo dificulta o acesso, tanto por meio de tarifas quanto por desvalorizações cambiais. E, para piorar, não há absolutamente nenhuma tendência de melhora na qualidade da mão-de-obra. Esse é o nosso padrão de vida

Mais ainda: a julgar pelas políticas adotadas pelo atual governo no que tange a protecionismo, câmbio e inflação, não há nenhuma indicação de que isso irá mudar no futuro próximo. 

Isso sim será definitivo para o futuro do país — e não o acréscimo de meros dígitos artificiais no PIB.

Leandro Roque é o editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.

domingo, 30 de dezembro de 2012

RECORDAÇÕES DE UM BRASIL SOCIALISTA


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Obs: O artigo a seguir foi escrito em agosto de 2002. Circunstâncias recentes ocorridas no Brasil fizeram com que ele se tornasse ainda mais atual do que quando fora escrito.

Pouca gente sabe, ou se deu conta na época, mas o Brasil já viveu um regime socialista. E foi um sucesso... por pouco tempo.

Em 28 de fevereiro de 1986 o presidente Sarney, acossado pela hiperinflação que grassava no país e tendo a legitimidade de seu mandato questionada, decretou o congelamento geral de preços e salários. Em sessão solene transmitida pela TV, ele declarou guerra à inflação e convocou todo o povo para o bom combate, imputando aos especuladores e empresários gananciosos a carestia que castigava a nação. O presidente obteve aprovação quase unânime da população. Mais de 95% do povo apoiava o Plano Cruzado (essa a nova denominação da moeda nacional) sem reservas. 

[A imagem está ruim, mas o vídeo abaixo vale muito a pena para relembrar a época em que a ignorância econômica nacional atingiu seu ápice]

De um dia para o outro, todas as transações privadas caíram sob estrito controle estatal. A propriedade privada e a liberdade econômica foram suprimidas de um só golpe, uma vez que o poder de disposição (vender, alugar etc.), sem o qual o direito de propriedade é privado de sua substância, foi abolido. Somente se podia celebrar contratos bilaterais onerosos pelo preço decretado e controlado pelo estado. Dito de outra forma, o Brasil aboliu a economia de mercado e adotou o socialismo.

A imprensa aderiu imediatamente fomentando um clima de histeria geral. A TV Globo criou uma vinheta sugestiva: "tem que dar certo". Tinha que dar certo à força, é claro.
Logo empresários e gerentes de loja eram presos e humilhados sob a acusação de aumentar preços ilegalmente. Estabelecimentos comerciais foram depredados por turbas enfurecidas. Todos os cidadãos foram informalmente nomeados "fiscais do Sarney" e nenhum comerciante se sentia seguro. Choviam delações anônimas, ao que se seguiam espalhafatosas razzias da SUNAB nas lojas, elevada à condição de KGB nacional.


A adesão da intelectualidade foi, naturalmente, total. Os mesmos que ainda ontem criticavam o uso do decreto-lei (antepassado das medidas provisórias) e as arbitrariedades dos militares agora as aprovavam efusivamente. O ministro da fazenda Dilson Funaro, que secretamente sofria de um câncer quase terminal, fez-se um verdadeiro messias do cruzado. Os economistas que perpetraram o plano, João Sayad, Luiz Gonzaga Belluzo, Persio Arida, Francisco Lopes e outros viraram celebridades instantâneas. A mentora de todos eles, a economista lusa Maria da Conceição Tavares, passou a ser considerada a sumidade suprema da ciência econômica, e a mídia a retratava como a "guerreira do cruzado". Os partidos políticos que recentemente atacavam Sarney aderiram em massa ao presidente. A esquerda, inclusive o nascente PT, perdeu o discurso e ficou na dela. Como pregar o socialismo se o próprio governo o adotara? Sarney e seu bigode eram adorados e adulados pelas massas, tal qual um Stalin tupiniquim.

Poucas vozes ousaram discordar. O sempre corajoso jurista Ives Gandra foi um dos poucos a proclamar para quem quisesse ouvir que o pacote era inconstitucional de cabo a rabo, e olha que a constituição vigente era aquela outorgada pelos militares em seu período mais duro. Mas ninguém queria ouvir, muito menos o Judiciário. A oposição mais cerrada, coerente e de primeira hora veio da revista semanal Visão, onde pontificava o editor Henry Maksoud. Inflação não é aumento geral de preços, escrevia ele. Essa é a consequência. A causa é a expansão desenfreada dos meios de pagamento pelo governo para financiar seus monumentais déficits. O único culpado pela inflação é o governo e só ele pode acabar com ela. Abolir o mecanismo de preços equivale a destruir a economia de mercado. 

Controle de preços nunca resolveu o problema, e a sucessão de fracassos nesse campo foi enumerada começando por um famoso e malogrado decreto do imperador romano Diocleciano, em 301 DC, que parecia uma "tabela da Sunab". Não demorou para que o filho de Maksoud fosse preso e ele próprio recebesse ameaçadoras "visitas" da Sunab. Maksoud foi "banido" dos programas de TV que discutiam o plano. Jornais recusavam-se a reproduzir seus artigos. A revista Visão recebia uma enxurrada de cartas de leitores furiosos, contendo os piores insultos. Maksoud as publicava e replicava pacientemente. O governo garantia que o déficit e a emissão de moeda estavam "sob controle total". Como?, retrucava a Visão, se nenhum funcionário público foi demitido (ao contrário, a época era de contratações e "trens da alegria" a rodo), nenhuma estatal foi privatizada, nenhum gasto foi suprimido, os vastos subsídios não foram cortados e a carga tributária não foi aumentada? Os números das contas públicas sumiram, deixaram de ser publicados, coisa que nem os militares fizeram.

Aos poucos, contudo, a euforia foi passando e os efeitos previstos por Maksoud começaram a se fazer sentir. As mercadorias principiaram a escassear e a sumir. Mercados paralelos floresceram e só pagando "ágio" era possível comprar as coisas. O Brasil foi tomando a feição bem conhecida nos países comunistas. Filas nas lojas e nada para comprar, salvo no mercado negro. O ministro Funaro expôs-se ao ridículo de mandar a Polícia Federal caçar bois nos pastos, já que a carne desaparecera do mercado.

Ficou evidente que o déficit público e a expansão monetária não haviam sido controlados coisa nenhuma. Nada mudara. A economia entrou em colapso, mas o "plano" foi mantido até as eleições, por exigência do PMDB, o "partido do cruzado". Logo depois das eleições, que resultou em esmagadora vitória do PMDB, o governo traiu os que tolamente acreditaram que o cruzado era sério. Os preços foram descongelados e a inflação reprimida os chutou para o alto. Haveria novos "planos" e novos congelamentos, inclusive o mais violento dos "choques heterodoxos" que foi o Plano Collor I. Mas o encanto se esgotara. Ninguém mais levava a sério o socialismo.

É claro que Sarney, o clássico "coroné" patrimonialista nordestino, não era um socialista marxista. Ele apenas utilizou o truque do congelamento para se tornar popular e se manter no "pudê". Quando o "plano" fracassou, Sarney não deu o passo seguinte na direção do socialismo totalitário, que teria sido a estatização de todos os meios de produção (inclusive a força de trabalho de cada um). Voltamos, pois, à velha e péssima "economia mista" de praxe. Um governo Lula ou assemelhado, porém, teria seguido adiante, e pior, contaria com amplo e majoritário apoio popular!

É uma pena que o povo brasileiro não tenha consciência de que aquilo é o verdadeiro socialismo, daí para pior. Logro, arbítrio, violência, escassez, caos, manipulação. Pois ao que parece a história vai se repetir, pois os "economistas" do PT são os mesmos do cruzado. Como é que pode esses caras ainda terem influência no país? Por muito, muito, menos médicos e engenheiros perdem a licença profissional. Mas essas figuras macabras continuam dando as cartas nos meios acadêmicos e políticos. É nisso que dá deixar a ciência econômica aos cuidados dos seguidores de Marx e Keynes. Toda a sociedade paga a conta.

Alceu Garcia é o pseudônimo de um cidadão que, cercado de esquerdistas por todos os lados, e já conhecendo o tratamento que eles dão a quem ouse contrariá-los no local de trabalho, tem bons motivos para desejar permanecer incógnito

ESSE EU CONHEÇO

A reta, como diria o Oscar Niemeyer, é o real. Mas o ideal é a curva, o arredondado sedutor da montanha onde morre o Sol; ou o suave declive da fonte que jorra por entre as suas frestas e mata a nossa infindável sede como viram, cada qual a seu tempo e à sua maneira, Ary Barroso e Schopenhauer.


Platão, inventor da oposição entre real e ideal, afirma que como tudo neste mundo está sempre se fazendo, as coisas reais não conferem nenhum conhecimento definitivo, pois são relativas e variáveis. Sujeitas, como revela sem cessar o nosso frustrante dia a dia, a redefinições. O ideal é único porque as ideias não morrem. O resto, como disseram Shakespeare e Erico Verissimo, é silêncio...

Estou, como o mundo inteiro, chocado com esse novo massacre ocorrido em Newtown, Estados Unidos. Penso nos pais forçados por um louco a entrar nesse triste clube ao qual eu, infelizmente, pertenço: a sociedade dos que perderam filhos. Empresto a todos eles a minha humilde solidariedade. Aprendi como as palavras, que deixam ver, por um instante, o todo no qual vivemos como inocentes, são importantes nesses momentos.

Estive no Estado de Connecticut umas duas ou três vezes e fiz palestras na sua universidade, no famoso Connecticut College (fundado em 1911 quando o Brasil fazia, como as máquinas, múltiplas revoluções) e na sua admirável Universidade Yale (fundada em 1701 quando, para muitos, o Brasil ainda não era Brasil), onde jaz um pedaço da alma do querido e saudoso Richard Morse, o americano mais brasileiro que conheci em toda a minha vida. Como explicar o massacre de crianças num lugar tão "adiantado" e "rico" sem uma lógica bíblica ou messiânica - sem um sistema de espoliação dos miseráveis e sem um Herodes agora armado, ele próprio, de pistolas automáticas, perguntou-me um jovem jornalista?

Inocente, pois não tenho a menor ideia do meu futuro nem da minha vida, a qual eu tento cuidar e honrar com o devido egoísmo por ela determinado, só posso falar de uma importante contradição. Nós odiamos a violência, mas a admitimos em certas circunstâncias. Na guerra, por exemplo. Sobretudo, nas guerras santas que jamais saíram de moda. Ou na luta ideológica contra a famosa "direita", hoje propositalmente confundida no Brasil com o "direito": o ético, o meritório e o correto.

No caso dessa tragédia americana, há uma contradição trivial. O real manda, no mínimo, discutir, como disse o presidente Obama, a venda de armas. Mas o ideal que tende a virar tabu trata a aquisição de armas como um direito.

No Brasil, criminalizamos o jogo, mas a Caixa Econômica Federal banca pelos menos sete ou oito jogos de azar. Ademais, condenamos o jogo e todo tipo de patifaria, mas compreendemos o canalha. Sobretudo quando ele é amigo. "Esse não! Esse eu conheço! Com ele eu não admito, ouviu? Não admito que sua reputação e sua figura à qual o país tanto deve sejam postas em questão!!!"

Somos todos contra a jogatina, mas entendemos quando o primo faz uma "fezinha na borboleta" ou no "burro" - esse totem de um Brasil que tenta sem sucesso livrar-se das asnices de uma visão de mundo na qual a lei teria a virtude de corrigir o mundo por reação e não por prevenção. "Mas isso é crime capitulado no artigo tal da lei X! Não há mais o que discutir." Exceto, é claro, se o capitulado for meu amigo!

O problema é o que fazer com os criminosos depois de devidamente classificados como culpados. No nosso caso, a penalidade não é apenas uma decorrência do crime, é uma ciência e eu até diria, com todo o respeito, uma nobre arte. Afinal, como ouvi muitas vezes nesses meses afora, "são vidas humanas em jogo".

Condenamos também a droga, mas tomamos o nosso vinhozinho, a nossa cervejinha e a nossa cachacinha com os amigos sem problema. Aceitamos até que um conhecido goste de uma "fileirinha", no seu caso, inocente, porque: "Esse eu conheço e sei que é boa pessoa! Não é um indivíduo qualquer a ser espancado pela polícia e depois exposto e escrachado na mídia!!!"

Batemos de frente com as contradições entre o real e o ideal, a menos que ela comprometa o patrão, o amigo e o correligionário a quem devemos carreiras, favores e cargos. "Esse não! De modo algum! Esse eu conheço!" Gritamos com obrigatória veemência.

Uma ética de condescendência - esse pouco discutido valor brasileiro de muitos quilates - nos leva a relativizar o ideal. Como não é fácil equilibrá-los, pois o concreto sempre desafia o ideal, personalizamos e, com isso, impedir que X, Y ou Z sejam apreciados em suas faltas e velhacarias. E como "roupa suja só se lava em casa", ferimos o ideal (e a ética) dando um golpe personalista. "Esse não pode!", falamos, tirando do âmbito do crime ou da patifaria o amigo dileto ou o personagem poderoso.

Mas quem inventa os fatos?

Como esse bárbaro massacre ocorrido nos Estados Unidos; como esse inacreditável mensalão; como os vínculos de terna intimidade entre o ex-presidente e uma alta funcionária que representava a Presidência em São Paulo e lá montou uma quadrilha? Quem inventou um partido como o PT, que iria exterminar os ratos da corrupção nacional - como bolou o publicitário do grupo, o sr. Duda Mendonça - e acabaram metidos no maior escândalo da República? É o jornal que forma a quadrilha ou é a quadrilha que faz o jornal?
Por: ROBERTO DaMATTA O Estado de S.Paulo - 19/12