quarta-feira, 25 de abril de 2012

Manifesto da baixaria


Um fantasma ronda o Brasil: o fantasma da falta de educação e da baixaria. Juízes do Supremo, parlamentares, ministros, altos empresários e governadores perderam o senso luso-brasileiro e ameaçam um bate-boca generalizado. Alguns tentam conjurar essas brigas antiaristocráticas que pegam mal porque revelam muito do que não pode ser mostrado.
Aqui se faz um apelo aos leitores. Sejam sinceros e tirem a honestidade da zona cinzenta dos pecados e dos malfeitos. Façam o contrário dos diplomatas e dos populistas: proclamem o que pensam e sentem. Seremos todos acusados de intrigantes e boquirrotos pela direita (a dona da bola e, por isso mesmo, corrompida), pela esquerda (revolucionária, é claro, mas no poder e com vastos limites) e pelo centro que sempre foi o berço do nosso moralismo que diz que vai, mas não vai antes de saber pra onde a coisa está indo e, por isso mesmo, emudece porque a sinceridade que iguala é o maior pecado de um sistema desigual.
- I -
Critique abertamente e não se esconda no anonimato. Seja grosso com os pulhas que roubam o nosso dinheiro e discorde. Não escolha a pusilanimidade dominante.
- II -
Contrariando frontalmente a visão geral do escândalo que cobre o nosso País de egrégios gregos gregários - de Deltas a Demóstenes -, envolvendo governantes e governados, eu afirmo que quando o bate-boca ocorre nas altas esferas temos um sinal de lucidez, de democracia e de progresso. No contexto da hipocrisia nacional, uma discussão entre ministros do Supremo é algo revolucionário.
Todo tribunal é feito de conflitos, denúncias e busca da verdade. Exceto no Brasil, onde ainda se tem o direito de mentir e se é obrigado a engolir choro. São os conflitos verbais que deixam surgir a Verdade com sua nudez transparente e escandalosa.
Chega de botar a poeira debaixo do tapete em nome de uma ética aristocrática. Vivemos um momento no qual o igualitarismo rompe nossas portas e, como um hóspede imprevisto e não convidado, demanda - acima de tudo - um mínimo de sinceridade. E a sinceridade só surge quando nos entregamos a forças maiores do que nós. Como foi o caso do ministro do Supremo que, criticado pelo colega, reagiu numa veemente e histórica entrevista.
Este manifesto discorda da opinião segundo qual o Supremo fica menor quando seus membros discordam. Pois o seu autor está absolutamente seguro ao dizer que quanto mais os agentes públicos ficarem putos uns com os outros, mais democracia igualitária cairá, como chuva de verão, sobre todos nós.
O imprevisto é o centro da vida democrática. E o imprevisto maior do Brasil no qual vivemos é a descoberta do papel do Estado não como fulcro de igualdade de oportunidades, mas como uma fonte de aristocracia e de enriquecimento ilícito. Só a baixaria pode liquidar a perversão de combinar até mesmo as discórdias. Temos de reformar a nossa boa educação de senhores de engenho que leva à mentira e ao agrado do governante para pegar o contrato sem discutir mérito ou eficiência. Mesmo - pasmem - quando isso pode existir. O bate-boca no Supremo não diminui a Corte magistral. Muito pelo contrário, ele torna essa corte mais honrada e democrática. O Brasil precisa ser desmascarado e posto a nu para si mesmo. É hora de ver o fantasma.
- III -
Democracia é partejada por igualdade (todos podem falar, mesmo errado) e individualismo (todos têm o direito de querer) - esses valores que produzem conflito. O conflito revela o lado vivo do Supremo Tribunal Federal. Ele mostra que os nossos supermagistrados são humanos e suscetíveis de raiva, ressentimento e vingança. Por isso a discussão não é só mais do que bem-vinda: ela é fundamental.
- IV -
Sem opinião não há sinceridade. A medida da honestidade jaz no que realmente pensamos de algum assunto ou pessoa. É, pois, imperioso acabar com as luvas de pelica. Discutir não é ser mal-educado, é afirmar que - finalmente! - podemos concordar em discordar. O Brasil precisa ver as suas meias furadas.
- V -
Acabemos com a frescura dos lenços de seda - sejamos igualitários. Olhemos os fatos que estão nas manchetes e enxerguemos o que dizem. O bom-mocismo nacional é uma simpatia e uma gracinha, como dizem os grã-finos, mas é também o modo de obter altos faturamentos não só em obras, mas em projetos do governo. Essa coisa personalizada e com dono mas sempre isenta, sempre ausente, sempre vendo o debate como uma baixaria e, por isso, sempre inocente porque não se mete ou é responsável por coisa alguma!
Irrompamos respeitosamente com dona mamãe. Ela diz: seja paciente com o tio Fulano ou com o Dr. Sicrano. Eu vos digo: sejam mal-educados e profiram o que pensam. O Brasil precisa de bate-boca - esse cerne da oposição! Mande o professor às favas, denuncie o prefeito, o senador, o empresário, o chefe e o presidente - caso eles sejam mentirosos, incompetentes e desonestos.
- VI -
Desvende o Brasil. Seja um mal-educado dizendo o que pensa. Só assim realizaremos a nossa tão atrasada revolução igualitária, obrigando esta CPI a promover um desmascaramento geral. Rezemos para que todos botem a boca no mundo e sejam sinceros. Se isso ocorrer, faremos o inusitado: não vamos certamente acabar com a corrupção, mas iremos ferir de morte esta república que aristocratiza seus altos funcionários e torna milionários os seus sócios. Mal-educados do mundo, uni-vos! Por: Roberto DaMatta - O Estado de S.Paulo

O pântano político



Merval Pereira
Em tempos de CPI e às vésperas do julgamento do mensalão, o clima político em Brasília, como não poderia deixar de ser, é efervescente, e as posses dos ministros Ayres Britto, como presidente do Supremo Tribunal Federal, e Cármen Lúcia, a primeira mulher a presidir o Tribunal Superior Eleitoral, serviram de pano de fundo para manifestações de cunho político nos discursos, mas, sobretudo, para conversas de bastidores.
Depois desses dois dias de conversas, fiquei com a sensação de que o processo do mensalão deve entrar mesmo em pauta ainda no primeiro semestre, e que a CPI do Cachoeira ainda está causando perplexidade na classe política, especialmente em setores petistas que não estão envolvidos diretamente na disputa congressual.
Os governadores petistas, por exemplo, não entendem o que está acontecendo. O de Sergipe, Marcelo Déda, analisa a questão do ponto de vista político, sem entrar no mérito das acusações: “CPI é um instrumento da oposição, da minoria. Nenhum governo gosta de CPI pelo simples fato de que o ambiente político fica descontrolado e o Congresso paralisado”.
O governador da Bahia, Jaques Wagner, que já foi ministro das Relações Institucionais no governo Lula, me disse que não compreendia a estratégia de provocar uma CPI: “Se tivessem me consultado eu diria que não é uma boa estratégia. Governo precisa de calmaria”.
Com relação ao mensalão, tudo parece caminhar para que o processo entre em pauta ainda no primeiro semestre, como quer o novo presidente do STF.
O ministro revisor, Ricardo Lewandowsky, já está trabalhando no seu voto, agora liberado das tarefas do TSE que presidia, e segundo relato de familiares tem varado a noite consultando o processo e o Código Penal.
Os demais ministros também já estão trabalhando em cima do processo que foi disponibilizado depois que o presidente anterior, Cezar Peluso, deu ordens para apressar os procedimentos.
Nos discursos dos dois novos presidentes, o papel da liberdade de informação para fortalecer a democracia foi enfatizado.
O ministro Ayres Britto salientou que “o mais refinado toque de sapiência da nossa última Assembleia Constituinte” foi eleger a democracia como a sua maior força. “Democracia que mantém com a liberdade de informação jornalística uma relação de unha e carne, olho e pálpebra, veias e sangue”.
Na noite anterior, a ministra Cármen Lúcia, ao assumir a presidência do TSE, mandou um recado direto aos meios de comunicação, pedindo sua colaboração: “A imprensa livre é inseparável da democracia. É parceira do Judiciário na concretização da Justiça”.
Essa presença é ainda maior na Justiça Eleitoral, disse ela, para quem “os jornalistas não só acompanham os feitos. Participam do processo, ajudando a promover o interesse público na divulgação dos fatos, na fiscalização permanente do processo e da atuação da Justiça Eleitoral”.
Para a nova presidente do TSE, “não há eleições seguras e honestas sem a ação livre, presente e vigilante da imprensa, a cumprir papel determinante em benefício do poder político”.
Cármen Lúcia pediu, ressaltando “o respeito absoluto à liberdade de opinião”, que a imprensa livre “ajude este Tribunal a exercer plenamente a sua missão. Afirmo-lhes que ele será transparente em seus atos, pelo que rogo aos profissionais de comunicação que sejam atentos a tudo que possa causar dano ao processo eleitoral, informando, com clareza, à opinião pública os fatos a serem conhecidos”.
Viveu-se nesses dias em Brasília um ambiente no Judiciário claramente favorável ao reforço da moralidade e da impessoalidade no serviço público
O novo presidente do STF não fez referências, nem mesmo indiretas, ao processo do mensalão, que ele já classificou em entrevistas como o mais importante processo político a ser julgado. Mas deixou claro que, na sua visão, os juízes devem promover “a abertura da janela dos autos para o mundo circundante, a fim de conhecer a realidade dos jurisdicionados e a expectativa social sobre a decisão”.
Ayres Britto, que abusou no seu discurso da veia poética e de imagens de retórica – ele é autor de vários livros de poesia -, disse que “Juiz não é traça de processo, não é ácaro de gabinete, por isso, sem fugir dos autos nem se tornar refém da opinião pública, tem que levar ao cumprimento das leis e conciliar a macrofunção de combinar o direito com a vida”.
Quem tratou diretamente da questão foi o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, que falou sobre o processo do mensalão em seu discurso.
Referindo-se ao período de sete meses que Ayres Britto terá na presidência, pois se aposenta em novembro por atingir a idade limite de 70 anos, afirmou: “O tempo não será curto para levar adiante processos sobre casos de corrupção que marcaram a nossa História recente. E digo ao novo presidente da Suprema Corte brasileira que a sociedade espera que esse tema não seja mais postergado, e que haja a punição exemplar dos culpados pelos crimes que cometeram contra o patrimônio público”.
Para ele, somente eliminando qualquer ideia de impunidade “podemos combater a corrupção, uma das maiores mazelas do nosso país”.
Referindo-se ao mais recente escândalo envolvendo as relações promíscuas do bicheiro Carlinhos Cachoeira com políticos e empresários, Ophir Cavalcante disse que é digno de reflexão o fato de que “na origem de todos os casos de corrupção, está o modelo de financiamento privado da política, que permite o caixa 2, ou entre outras palavras, o relacionamento promíscuo entre os interesses privados e a coisa pública”.
Para definir os estragos que essa relação espúria provoca na política brasileira, Cavalcante descreveu: “quando um cai, arrasta junto de si bicheiros, falsificadores, policiais, governadores, parlamentares, projetos, obras e, o que é pior, a própria credibilidade das instituições”.
Viveu-se nesses dias em Brasília um ambiente no Judiciário claramente favorável ao reforço da moralidade e da impessoalidade no serviço público, e uma clara rejeição ao patrimonialismo que ainda impera nas nossas relações políticas, enquanto no Congresso as escaramuças partidárias continuavam dentro dos mesmos parâmetros que nos levaram ao “pântano”, como definiu o presidente da OAB nosso ambiente político.Por: Merval pereira Fonte: O Globo, 20/04/2012

Já está na hora de o STF tomar jeito


O encerramento do mandato de Cezar Peluso à frente do Supremo Tribunal Federal pode significar uma mudança positiva no rumo daquela Corte?


É difícil supor que subitamente o STF passe a agir de forma republicana, cumprindo suas funções constitucionais. O clima interno é de beligerância. A cerimônia de posse do presidente Ayres Britto sinalizou que o provincianismo continua em voga. Foi, no mínimo,

Mas pior, muito pior, foi o momento em que a cantora recitou um poema do presidente recém empossado, já chamado de ministro pirilampo: “Não sou como camaleão que busca lençóis em plena luz do dia. Sou como pirilampo que, na mais densa noite, se anuncia”. 

Mas como tudo o que é ruim pode piorar, o discurso de posse foi recheado de metáforas. Numa delas disse algo difícil de supor que seria pronunciado naquele recinto (e mais ainda por um presidente): “A silhueta da verdade só assenta em vestidos transparentes.”

O clima circense (os mais otimistas dirão: descontraído) da posse é uma mostra de como as instituições republicanas estão desmoralizadas. Teremos uma curta presidência de Ayres Britto. Logo o ministro vai se aposentar. Pouco antes, Cezar Peluso também vai seguir o mesmo caminho. A presidente Dilma Rousseff dificilmente vai nomear dois ministros para preencher as vagas. Assim, teremos um STF com nove membros, paralisado, com milhares de processos para julgar. E, para dar mais emoção, tendo na presidência Joaquim Barbosa. Ah, teremos um segundo semestre inesquecível naquela Corte.

Peluso saiu da presidência atirando. Foi sincero. Demonstrou o que é: autoritário, provinciano, conservador, corporativista e com uma questionável formação jurídica. Fez Direito na Faculdade Católica de Santos. Depois teve na USP como orientador Alfredo Buzaid, ministro da Justiça do presidente Médici. Não viu nada de anormal. Devia comungar das ideias de Buzaid. Afinal, a tese foi feita quando ele era ministro do governo mais repressivo da ditadura. Com a redemocratização, Peluso buscou outras companhias. Acabou se aproximando dos chamados setores progressistas. O poder tinha se deslocado e ele, também.

Na entrevista ao saite Consultor Jurídico, disse que organizava reuniões domésticas com os teólogos Leonardo Boff e Gustavo Gutierrez. Relatou que ficou impressionado quando Gutierrez alertou sobre a importância do ato de comer na Bíblia.

Sim, leitor, o que chamou a atenção de Peluso, na Bíblia, foi a comida. Sem nenhum pudor, disse que uma carta do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns foi determinante para sua escolha para o STF pelo ex-presidente Lula. Como se um assunto de Estado fosse da esfera da religião, esquecendo que a Constituição (e desde a primeira Carta republicana, a de 1891) separou a Igreja do Estado.

Atacou frontalmente a ministra Eliana Calmon, corregedora do CNJ. Afirmou que sua atuação estava pautada pela mídia e pelo desejo de fazer carreira política. E, mais, que não obteve nenhum resultado prático da sua ação. Fugiu à verdade. Se não fosse a corajosa atuação da corregedora, por exemplo, não ficaríamos sabendo dos fabulosos “ganhos eventuais” dos desembargadores paulistas (Peluso incluso - teria recebido 700 mil reais).

Peluso foi descortês com os colegas do STF. Na votação sobre as atribuições do CNJ, fez de tudo para ganhar a votação. Interrompeu votos, falou diversas vezes defendendo seu ponto de vista e mesmo assim perdeu. Imputou a derrota à ministra Rosa Weber, que teria dado o voto decisivo. Deixou no ar que ela votou sem ter conhecimento pleno do processo.

Nos ataques aos colegas, não poupou o ministro Joaquim Barbosa. Insinuou que ele não gostava de trabalhar. Era inseguro. Que frequentava bares. E que não tinha nenhuma doença nas costas. O estereótipo sobre Barbosa é tão vil como aqueles produzidos logo após 13 de maio de 1888.

Apontei em três artigos no Globo alguns problemas do STF (“Um poder de costas para o país”, “Triste Judiciário” e “Resta, leitor, rir”). O mau funcionamento daquela Corte não deve ser atribuído somente aos bate-bocas de botequim ou a alguma questão conjuntural. O STF padece de problemas estruturais. Deveria ser um tribunal constitucional, mas não é. Virou um tribunal de última instância. É lento, pesado. Tem de melhorar o desempenho administrativo. E o problema, certamente, não é a escassez de funcionários. São 3 mil. Os ministros tiram muitas licenças. Tudo é motivo para a suspensão dos trabalhos. E não é de hoje. A demora para a indicação de vagas abertas no tribunal também é um complicador.

Tudo indica que a questão central para o bom funcionamento do STF é a forma de como são designados os ministros. De acordo com a Constituição, a iniciativa é do Executivo. O nome é encaminhado, também segundo o rito constitucional, para o Senado. E lá deveria - deveria -  ser sabatinado pelos senadores.

São dois problemas. Um é a escolha presidencial. Não tem se mostrado o melhor método. Os nomes são questionáveis, as vinculações pessoais e partidárias são evidentes. E o selecionado geralmente está muito abaixo do que seria aceitável para uma Corte superior. Já a sabatina realizada pelos senadores não passa de uma farsa.

A última, da ministra Rosa Weber, foi, no mínimo, constrangedora. A ministra mal conseguia articular uma frase com ponto final. Disse que estava muito nervosa. Foi dado um intervalo para café. No retorno, infelizmente para nós brasileiros, o desempenho da senhora Weber continuou o mesmo. Já passou da hora de o STF toma Por: Marco Antonio Villa

terça-feira, 24 de abril de 2012

Nenhum imposto é neutro;qualquer imposto sempre afetará os mais pobres



Em praticamente todos os países do mundo há um constante apelo para se tributar mais a renda dos mais ricos e utilizar essa receita adicional para fazer a "justiça social", promovendo uma ampla "distribuição de renda". O problema de se tributar os ricos, bem como todas as consequências econômicas negativas deste fato, já foram muito bem explicitadas neste artigo, de modo que o objetivo aqui será outro. O objetivo será explicar por que qualquer tipo de imposto, mesmo aquele voltado exclusivamente para as rendas mais altas, sempre acabará inevitavelmente sendo repassado aos mais pobres, de um jeito ou de outro. Em todo o debate ideológico acerca do capitalismo, há duas visões opostas que curiosamente partem do mesmo princípio: tanto os detratores do capitalismo quanto seus defensores dizem se tratar de um sistema puramente individualista, em que cada um age por conta própria, pensando exclusivamente no seu bem. Seus detratores condenam essa exortação à independência; já os defensores glorificam-na. Porém, nenhum dessas posições parece apreciar a verdadeira natureza do capitalismo, e o problema é que ambas essas concepções erradas estão hoje bastante difundidas. Há de fato um aspecto em que as pessoas realmente tentam ser as mais independentes possíveis: elas querem evitar pagar impostos. Todas as discussões a respeito de carga tributária e a respeito de quem — isto é, qual classe social — deve arcar com a maior parte do fardo tributário demonstram um total desconhecimento sobre como o mercado funciona. A esquerda sempre defendeu que os ricos sejam mais tributados, para que eles deem sua "contribuição justa" à sociedade. Já a direita costuma reagir dizendo que os mais ricos — tanto os indivíduos quanto as empresas — já respondem pela maior parte da receita tributária do governo, que a camada mais rica da população paga o mesmo volume de impostos que todo o restante da população combinada, e que boa parte da população não paga nada de imposto de renda. A esquerda então reage dizendo que a desigualdade permanece constante ou, em alguns casos, segue aumentando. Os ricos estão ficando mais ricos, e isso supostamente é ruim, pois precisamos de maior igualdade para atingir a justiça social. E por aí vai. Não irei aqui entrar na (i)moralidade de se defender a espoliação da propriedade alheia; o enfoque será puramente econômico. O problema em todo esse debate popular sobre impostos é que ele não leva em conta que os esforços para se evitar o pagamento de impostos vão muito além dessa pendenga sobre quais seriam as alíquotas de impostos "justas" e sobre quem deve pagar mais. Os esforços para se evitar o pagamento de impostos se estendem para todo o mercado. Se, por exemplo, a alíquota do imposto de renda que incide sobre as rendas mais altas fosse elevada em 20%, os trabalhadores de renda mais alta reagiriam a isso negociando um aumento salarial. (Dado que a esquerda quer muita gente pagando mais imposto, então creio ser correto dizer que ela defende maior imposto justamente sobre pessoas mais produtivas; caso contrário, seria na prática impossível elevar impostos permanentemente. Logo, por se tratar de pessoas produtivas, não é incorreto dizer que elas têm poder de barganha junto a seus empregadores). Se essas pessoas conseguirem um aumento salarial de, por exemplo, 10%, isso significa que praticamente metade do aumento de 20% da carga tributária foi repassada aos seus empregadores. Essa maior alíquota do imposto de renda reduziu os salários líquidos; o consequente aumento nos salários elevou os salários brutos. Neste ponto, a exata divisão do fardo tributário entre empregados e empregadores vai depender do relativo poder de barganha entre eles no mercado de trabalho. O que interessa é que os empregados de maior renda irão repassar uma parte, se não a maior parte, de qualquer aumento em seu imposto de renda para seus empregadores. Consequentemente, estes empregadores irão contratar menos empregados — ou tentarão contratar oferecendo salários bem menores, algo difícil —, e irão tentar repassar esse aumento havido nos custos trabalhistas para os consumidores, na forma de preços maiores. Esse aumento, no entanto, vai depender do relativo poder de barganha entre o vendedor e seus clientes, bem como do nível de concorrência no mercado. Os empresários irão repassar estes maiores custos aos consumidores até o ponto em que possam elevar preços sem sofrer uma relativamente grande perda no volume de vendas. Desta forma, os consumidores que ainda continuarem comprando a estes preços maiores estarão pagando parte do aumento na carga tributária que supostamente deveria afetar apenas os "ricos". Logo, vê-se que a direita está errada ao alegar que os mais pobres não pagam imposto de renda. Além de absolutamente toda a população pagar os impostos indiretos que estão embutidos nos preços dos bens e serviços, a classe média e os pobres também acabam pagando parte daquele aumento do imposto de renda que visava a atacar apenas os ricos. A esquerda, por sua vez, também está errada ao crer que todo o fardo de uma elevação de impostos pode ser confinada exclusivamente aos "ricos". A classe média e os pobres sempre acabarão pagando por um aumento de impostos sobre os ricos através dos maiores preços dos bens e serviços. Qualquer aumento no imposto de renda da camada mais rica da população — seja o 1% mais rico ou os 5% mais ricos — irá acabar por elevar os impostos que toda a população paga indiretamente. É possível contra-argumentar dizendo que o repasse para os preços desse aumento no imposto de renda seria muito pequeno. Talvez apenas uma pequena porcentagem da elevação do imposto de renda, o qual foi repassado aos empregadores, seria repassada aos consumidores na forma de preços maiores. No entanto, caso isso ocorra, o efeito de longo prazo será ainda pior. Se os empregadores tiverem de arcar com uma elevação marginal dos custos trabalhistas sem uma correspondente elevação marginal de sua receita, suas margens de lucro diminuirão. Redução nos lucros significa menos investimentos. E menos investimentos inibem um maior crescimento econômico. Um menor crescimento econômico significa menores aumentos nos salários e na renda de toda a população. Os efeitos dos impostos sobre o crescimento econômico, portanto, são bem mais indiretos do que se imagina. Economias de mercado são sistemas complexos nos quais os interesses de todos os indivíduos estão entrelaçados. Qualquer esforço para alterar os resultados gerados pela livre concorrência no mercado irá gerar consequências inesperadas e indesejadas. O conceito de justiça social é, por si só, algo indefinido e arbitrário. No entanto, mesmo se todos nós de alguma forma concordássemos com uma ideia de redistribuição "socialmente justa", simplesmente não haveria como estruturar a carga tributária (ou os gastos do governo) de maneira a alcançar este objetivo. A imposição de novos impostos altera preços e salários de maneiras impossíveis de serem previstas e difíceis de serem mensuradas mesmo após o fato já consumado. Esquerda e direita parecem ter definitivamente abraçado o mito de que o estado é perfeitamente capaz de restringir os efeitos da tributação a apenas uma determinada classe de pessoas. Embora não seja possível mensurar qual é realmente a verdadeira carga tributária que incide sobre cada pessoa, é perfeitamente possível entender que a real carga tributária é significativamente distinta daquela que havia sido planejada. Pessoas de alta renda não pagam tanto quanto as alíquotas oficiais sugerem. O mercado difunde o fardo tributário de uma maneira bem mais equitativa do que as pessoas imaginam. Tentativas de "fazer os ricos pagarem sua fatia justa" irá apenas aumentar o fardo tributário mutuamente compartilhado por todos, por meio de uma maior tributação indireta e oculta. Por outro lado, os benefícios de reduções de impostos são também mais amplamente compartilhados do que as pessoas imaginam. Há duas lições a serem tiradas disso tudo. A primeira é que nenhum de nós é realmente "independente" e está genuinamente "por conta própria", pois a economia de mercado é um sistema social. A segunda é que políticos não são capazes de utilizar impostos para alcançar objetivos específicos como uma "renda justa", pois a economia de mercado é extraordinariamente complexa e ajustável. E os políticos são qualquer coisa, menos oniscientes. Uma autoridade onisciente e onipotente até poderia impor alguma noção de justiça social; no entanto, a nossa realidade é que a justiça social é algo arbitrário e não exequível na prática. Estas duas lições possuem implicações profundas e extremamente importantes. Felizmente, há uma solução fácil para o problema da carga tributária. Dado que os benefícios do corte de impostos são também difundidos entre todos, qualquer corte no orçamento do governo que possibilite redução de impostos já seria um enorme "avanço social". Todos nós pagamos impostos desnecessariamente altos. Todos nós podemos pagar muito menos. Leia também: A carga tributária brasileira e os impostos sobre os mais pobres D.W. MacKenzie é professor assistente no Carroll College, em Montana, EUA. Tradução de Leandro Roque

A utilidade marginal decrescente é uma lei

Por que os diamantes, que são quase que meras bugigangas decorativas, são muito mais valiosos do que a água, uma substância sem a qual todos nós morreríamos? A resposta para esta pergunta milenar é que o valor de um bem é determinado na margem. Isto significa que não valoramos a categoria "diamantes" em relação à categoria "água"; não fazemos uma comparação direta entre ambos os produtos, que são distintos não apenas em sua composição, como também em suas finalidades. O que realmente fazemos é valorar uma unidade a mais de diamante em relação a uma unidade a mais de água. Este é o conceito de margem. A água é um bem superabundante. Diamantes não. Este é um dos motivos por que um diamante é tão caro, ao passo que a água é financeiramente acessível a todos. Isso também ilustra um importante ponto acerca de tomadas de decisões: em vez de "estabelecer prioridades" e enxergar as coisas como se fossem decisões do tipo 'tudo ou nada', devemos analisar as opções e estabelecer prioridades. Um dos mais importantes princípios da economia é o de que as decisões são feitas na margem, e um dos principais problemas da economia clássica envolvia a origem do valor. A lei da utilidade marginal decrescente é um dogma fundamental da economia, além de ser uma lei tão científica quanto a lei da gravidade (talvez seja até mais científica do que a lei da gravidade, pois ela pode ser deduzida de um axioma — o homem age — que é autoevidente e verdadeiro). A utilidade marginal não é decrescente só porque assumimos ser; a lei da utilidade marginal é uma implicação do axioma da ação, e não meramente uma suposição ad hoc. A "utilidade" que uma pessoa obtém ao consumir um bem ou ao incorrer em uma determinada atividade é mais bem entendida quando se imagina um conjunto de desejos que podem ser satisfeitos ao se empregar determinados meios. (Utilidade não é um resultado matemático de uma função de consumo representada por um conjunto de números reais.) Seguindo esta definição, a "utilidade marginal" de se empregar uma unidade adicional de uma oferta homogênea de bens ou serviços deve ser entendida como o desejo adicional que pode ser satisfeito ao se empregar esta unidade marginal. Do axioma fundamental da praxeologia — que diz que a ação humana é o uso de meios para se chegar aos fins desejados — podemos ver que a utilidade marginal de se empregar a unidade n é preferível à utilidade marginal de se empregar a unidade n+1. Na linguagem da economia convencional, a utilidade marginal deve ser decrescente. Assim, imagine um indivíduo, João, que tem uma esposa, uma filha, um cachorro e a seguinte escala de valores: Alimentar sua família com um bolo Alimentar sua filha com um ovo Alimentar sua esposa com um ovo Alimentar a si próprio com um ovo Alimentar seu cachorro com um ovo Suponha que ele necessite de quatro ovos para fazer um bolo. Com seu primeiro ovo, ele irá alimentar sua filha, pois ele prefere isto a todos os outros conjuntos de desejos que podem ser satisfeitos com apenas um ovo. Com seu segundo ovo ele irá alimentar sua esposa, e com seu terceiro ovo ele irá alimentar a si próprio. Agora, suponha que João compre um quarto ovo. Isso nos leva a um possível falso juízo: o leitor mais desatento pode se sentir tentado a olhar para esta situação e exclamar, "Ahá! Com o quarto ovo, João pode alimentar toda a sua família com o bolo, arranjo este que ele claramente prefere a alimentá-la apenas com ovos mexidos! Portanto, é óbvio que a utilidade marginal do quarto ovo é maior que a utilidade marginal do terceiro ovo. Logo, a utilidade marginal está aumentando!" Mas esta linha de raciocínio ignora um ponto crucial: o quarto ovo só pode ser utilizado para fazer um bolo junto com os três primeiros ovos. Dado que a "utilidade marginal" é um conceito que pode ser aplicado somente a unidades homogêneas de uma dada oferta, "um ovo" deixa de ser a unidade relevante da análise. A homogeneidade das unidades é determinada pelo conjunto de desejos que podem ser satisfeitos com uma unidade de um bem; neste caso, a unidade relevante para a análise é "1 unidade = um arranjo de quatro ovos". Assim, a escala de valores de João passa a ser Alimentar sua família com um bolo Alimentar sua família com ovos mexidos Ele obviamente irá escolher alimentar sua família com um bolo. E, caso ele obtenha um segundo conjunto de quatro ovos, fará os ovos mexidos. O leitor astuto irá notar que a escala de valores listada acima foi elaborada de acordo com os desejos satisfeitos pela unidade marginal de um determinado bem, e não pelo bem em si. Nosso herói João não preferia intrinsecamente o primeiro ovo ao segundo; ele preferia alimentar sua filha a alimentar sua esposa. Se houvesse apenas um ovo disponível, ele teria de escolher entre fins concorrentes, e o fim que mais o satisfaz é alimentar sua filha. Já deve estar evidente que a lei da utilidade marginal é merecedora deste exato status epistemológico: uma lei. Como demonstrou Carl Menger, este teorema, que pode ser deduzido do axioma da ação, é mais do que apenas empiricamente demonstrável: ele é irrefutavelmente verdadeiro. Por: Art Carden, professor-assistente de economia e finanças no Rhode Island College em Memphis, Tenessee, além de ser membro adjunto do Independent Institute, localizado em Oakland, Califórnia. Seus papers podem ser encontrados na sua página no Social Science Research Network. Ele também escreve regularmente nos blogs Division of Labour e The Beacon.

Viagem aos Estados Unidos, de Alexis de Tocqueville

As notas de Tocqueville estariam fadadas ao esquecimento se não tivessem produzido A democracia na América. Alexis Charles Henri Clérel de Tocqueville pertence ao grupo de talentosos historiadores franceses – formado por François Guizot, Jacques Nicolas Augustin Thierry e Jules Michelet – que alcançou a maturidade intelectual no período da Revolução de 1830. O reinado que então teve início, depois de os liberais forçarem Carlos X a abdicar, durou até 1848, mas foi caracterizado por medidas contrárias às ideias que o novo rei, Luís Filipe de Orléans, ex-membro do Clube dos Jacobinos, dizia defender. Não bastou trocar, demagogicamente, a bandeira branca dos Bourbons pela tricolor da Revolução de 1789: sem conseguir a união de legitimistas, bonapartistas e liberais, Luís Felipe logo restringiria a liberdade para silenciar a oposição. Tocqueville, cuja família apoiava os Bourbons, aderiu ao novo governo “sem hesitação, mas sem ímpeto”, segundo seu amigo, Gustave de Beaumont, pois, apesar de jovem – tinha 25 anos –, já possuía “a faculdade [...] de ver mais rápido e mais longe do que os outros” e a sábia capacidade de manter distância dos acontecimentos políticos: “Essa exaltação moral que excita um grande movimento popular, o entusiasmo, o júbilo, as vivas esperanças que saúdam de hábito um novo regime, nada disso o tocava”. Magistrado desde 1827, Tocqueville parte, em 1831, com Gustave de Beaumont, para uma viagem oficial, a fim de estudar o sistema penitenciário dos EUA, desculpa utilizada para alcançar seu verdadeiro propósito: conhecer as experiências democráticas de um país nascente, afastar-se do direito, que o entediava, e dedicar-se ao estudo da política, sua paixão. Sabemos desses detalhes graças ao próprio Beaumont, autor da introdução do Viagem aos Estados Unidos, livrinho que reúne as anotações de Tocqueville, alguns lampejos, trechos de entrevistas – com políticos, diplomatas, juristas, religiosos, militares etc. – e parte diminuta das análises que serviriam à elaboração de um dos maiores clássicos da ciência política: A democracia na América. É também graças a Beaumont que conhecemos os lances heroicos da viagem, quando, nas proximidades de Pittsburg, os dois exploradores, que pretendiam “descer o Ohio e o Mississipi num barco a vapor até Nova Orleans”, são pegos desprevenidos pelo inverno, adiantado cerca de um mês. Sob o frio rigoroso e crescente, a dupla sofre grandes dificuldades – e Tocqueville chega a cair enfermo. O jovem, contudo, supera seus próprios limites e mostra ter uma personalidade obstinada, movida por “uma febre”, afirma seu amigo, que o “devorava sem trégua” – e o fazia tomar notas, de maneira incansável, em pequenas cadernetas, a fim de preservar suas primeiras impressões. Entre a decepção e a euforia Na introdução ao seu A democracia na América, Tocqueville afirma: “Na América, quis mais do que a América; busquei uma imagem da própria democracia, de suas tendências, de seu caráter, de seus preconceitos, de suas paixões; quis conhecê-la, nem que fosse para saber ao menos o que devemos dela esperar ou temer”. E parece ter alcançado seu objetivo, pois escreve, em sua anotações, o melhor elogio que a nação ainda jovem, ávida por superar a Europa, recebeu de um observador imparcial: [...] O mesmo homem pôde dar seu nome a um deserto que ninguém havia atravessado antes dele; ele pôde ver tombar a primeira árvore da floresta, construir no meio da solidão a casa do agricultor, em torno da qual se formou de início um povoado, e hoje transformado em vasta cidade. No curto intervalo que separa a morte do nascimento, assistiu a todas essas mudanças. Em sua juventude, habitou entre nações que já não existem; em sua vida, rios mudaram ou diminuíram seu curso; o próprio clima é outro em relação ao que viu outrora, e tudo isso não é em seu pensamento senão um primeiro passo numa carreira sem limites. Por mais poderoso e impetuoso que seja aqui o curso do tempo, a imaginação precede-o: o quadro não é assaz grande para ela; ela já se apodera de um novo universo. É um movimento intelectual que não pode se comparar àquele que fez nascer a descoberta do Novo Mundo há três séculos; e, com efeito, pode-se dizer que a América é descoberta uma segunda vez. E que não se creia que tais pensamentos só germinam na cabeça do filósofo; eles estão tão presentes no artesão quanto no especulador; no camponês bem como habitante das cidades. Incorporam-se em todos os objetos; fazem parte de todas as sensações; são palpáveis, visíveis, sentidos de certa forma. Nascido sob um outro céu, introduzido no meio de um quadro sempre movente, ele próprio movido pela torrente irresistível que arrasta tudo o que o avizinha, o americano não tem tempo para apegar-se a nada; ele só se acostuma à mudança, e acaba por vê-la como o estado natural do homem; sente a necessidade dela; bem mais, ama-a: pois a instabilidade, em vez de produzir-se para ele por desastres, parece engendrar em torno dele só prodígios... Mas suas primeiras notas, em 29 de maio de 1831, ainda em Nova York, deixam transparecer certa decepção: “Até agora, tudo o que vejo não me entusiasma em absoluto, porque estou mais agradecido à natureza das coisas do que à vontade do homem”. E completa: “Aqui a liberdade humana age em toda a plenitude de seu poder [...]; mas até o momento, esta febre parece só aumentar as forças sem alterar a razão”. Tudo vai bem, o país se desenvolve, mas “a agitação política parece-me muito acessória”. Ainda assim, percebe aquele que talvez tenha sido o principal motivo para o desenvolvimento dos EUA: “O fato é que essa sociedade caminha sozinha; e tem boa chance de não encontrar qualquer obstáculo: o governo parece-me aqui na infância da arte”. Característica, infelizmente, jamais encontrada no Brasil. Nosso viajante é absorvido por um povo “devorado pelo desejo de fazer fortuna”, mas não deixa de observar, com indignação, os índios que mendigam, derrotados: “[...] Belos homens; eles dançam diante de nós a war dance (dança de guerra), para ganhar um pouco de dinheiro; espetáculo horrível! Nós lhes damos um shilling...”. O surgimento de uma cultura não significa, contudo, a necessária destruição de outra. No dia seguinte ao desse espetáculo humilhante, 6 de agosto de 1831, ele nos descreve o encontro solene com um personagem que não se entregou à degradação: “Pequena aldeia indígena. Vestimenta do chefe: calças vermelhas, um cobertor; cabelos enrolados para cima da cabeça com duas penas enfiadas. Pergunto o que são essas penas: responde-me com um sorriso de orgulho que matou dois sioux [...]. Peço-lhe uma dessas penas dizendo-lhe que eu a levarei ao país dos grandes guerreiros, e que ela será admirada. Ele a retira de seus cabelos e entrega-me, em seguida, estende sua mão e cerra a minha”. Apesar do estilo telegráfico, compreensível no caso de alguém que viaja submetido à premência de tudo anotar, Tocqueville consegue ser lírico: “Ao pôr do sol, entramos num canal muito estreito. Vista admirável; instante delicioso. As águas do rio imóveis e transparentes; uma floresta extraordinária que se reflete nas águas. Ao longe, montanhas azuis e iluminadas pelos últimos raios do sol. Fogo dos indígenas que brilha por entre as árvores. Nosso barco avança majestosamente em meio a essa solidão, ao rumor dos cantos guerreiros que o eco dos bosques propaga de todos os lados”. Dias depois, num vilarejo iroquês, age como um explorador que é, ao mesmo tempo, um menino: “Vou caçar. Rio atravessado a nado. Ervas no fundo do rio. Perco-me por um momento na floresta. Retorno ao mesmo lugar sem perceber”. No Canadá, em Montreal, reclama da dominação inglesa e augura um tempo em que os franceses tenham “sozinhos um belo império no Novo Mundo”. Ao visitar Quebec, defende a sublevação dos franceses contra os ingleses – “Aquele que deve agitar a população francesa e levantá-la contra os ingleses ainda não nasceu” – e constata, movido pela repulsa à aparente submissão dos seus conterrâneos: “Nunca estive mais convicto [...] que a maior e mais irremediável infelicidade para um povo é ser conquistado”. Em Boston, constata a riqueza da cidade, faz elogios à vida cultural (em 1831, os bostonianos dispunham de, ao menos, quatro bibliotecas) e escreve, a 22 de setembro, uma inevitável comparação: ...O que mais nos incomoda na Europa são os homens que, nascidos numa condição social inferior, receberam uma educação que lhes dá vontade de sair dela sem fornecer-lhes os meios para isso. Na América, esse inconveniente da educação é quase insensível. A instrução fornece sempre os meios naturais para enriquecer-se, e não cria qualquer mal-estar social. Como defender a democracia? Na cidade de Baltimore, encontra-se com Charles Carroll, último sobrevivente dos signatários da Declaração da Independência, que lhe diz, sem meias palavras: “A mere democracy is but a mob” (“Uma democracia pura não é outra coisa senão um populacho”). Se, a princípio, Tocqueville mantém-se dúbio diante dessa afirmativa, ela certamente o instigou, contribuindo para as geniais conclusões de A democracia na América, entre elas, a de que governos centralizadores e democracias radicais, que oprimem as minorias discordantes, causam o mesmo tipo de mal: Não há [...] na terra autoridade tão respeitável por si mesma nem revestida de um direito tão sagrado que eu desejasse deixar agir sem controle e dominar sem obstáculos. Quando, portanto, vejo dar o direito e a faculdade de fazer tudo a uma potência qualquer, quer se chame povo ou rei, democracia ou aristocracia, quer se exerça numa monarquia, quer numa república, então digo: aí está o germe da tirania, e procuro ir viver sob outras leis. Apesar de fascinantes, por revelarem um país onde tudo podia ser experimentado, no qual a vida possui, até hoje, uma dinâmica inesgotável, as notas de Tocqueville estariam fadadas ao esquecimento se não tivessem produzido A democracia na América, principalmente os Capítulos 6 (“O despotismo nas nações democráticas”) e 7 (“De que maneira defender a liberdade ameaçada”) da Quarta Parte do Livro II, centrais em sua defesa da liberdade, primorosos ao apresentar as contradições que encontrou: “O que mais me repugna na América não é a extrema liberdade reinante; é o pouco de garantia aí encontrado contra a tirania”. Uma preocupação inexistente nos países em que a sociedade, governada por demagogos e populistas, se comporta de maneira servil ou apática. Publicado no site da revista Sibila. Rodrigo Gurgel é escritor, editor e crítico literário.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Como a democracia destrói riqueza e liberdade

Descrição: Assine o RSS de Artigos da Mises.org.br
A democracia cria uma discórdia que não existiria em uma sociedade livre.  Indivíduos não se importam se o sujeito que lhes vende uma xícara de café em uma padaria é judeu, católico, protestante, muçulmano, ateu, branco, preto, solteiro, casado, gay, hétero, velho, jovem, nativo, imigrante, alcoólatra, abstêmio ou qualquer outra coisa.  Nada disso importa no curso de sua interatividade diária com as pessoas.  Por meio do comércio e da cooperação, cada pessoa ajuda as outras a alcançar suas aspirações.  Se alguém diferente de você se muda para a sua vizinhança, você fará o seu melhor para lidar bem com ele.  Seja na igreja, no shopping, na academia ou até mesmo casualmente nas ruas, nós sempre nos esforçamos para encontrar maneiras de sermos civis e prestativos.
Agora, coloque estas mesmas pessoas na arena política e elas imediatamente se tornam inimigas.  Por quê?  A política não é cooperativa, como o mercado; ela é exploradora.  O sistema é configurado para ameaçar a identidade e as opções dos outros.  Todo mundo deve batalhar para impor as suas preferências.  Consequentemente, coalizões se formam, bem como alianças espúrias e momentâneas, que constantemente se alteram.  Este é o mundo imoral em que o estado — por meio da máquina eleitoral — nos joga.  Nele, torcemos para que o nosso cara vença e desejamos a morte política do oponente.
O jogo democrático confunde as pessoas em relação ao real inimigo.  O estado é a instituição que gera e vive à custa destas divisões.  No entanto, as pessoas são distraídas deste fato por causa do endeusamento do sistema.  Os negros culpam os brancos, os homens culpam as mulheres, os héteros culpam os gays, os pobres culpam os ricos e assim vai, em um infinito número de combinações possíveis.
Embora quase todos os países democráticos sofram com governos inchados, excesso de regulamentação, altos impostos e uma enorme dívida pública, poucas pessoas consegeum vislumbrar a relação causal entre estes problemas e o próprio sistema democrático.  Para a maioria, a solução para estes problemas é mais democracia, e não menos.
Muitos ainda acreditam que democracia corresponde a prosperidade, igualdade, justiça, união e liberdade. Mas não há nenhuma evidência de nada disso. A democracia se apóia em três princípios fundamentais: você tem o direito de votar, você tem o direito de concorrer a um cargo público, e a maioria decide.  E só.  Em nenhum lugar está escrito, por exemplo, que a democracia garante o direito à liberdade de expressão, um direito que muitas pessoas associam à democracia.  Nem há qualquer explicação lógica que mostre por que a democracia tende a gerar prosperidade.
As pessoas simplesmente aceitam como verdade absoluta o senso comum que diz que a democracia gera todas estas benesses.  A verdade, no entanto, é exatamente oposta a este senso comum.  Os próprios princípios da democracia dão origem a processos que conduzem a sociedade para o oposto da liberdade e da prosperidade.
Os processos mais importantes são os seguintes.
1) Comportamento imediatista
Como Hans-Hermann Hoppe explicou em seu livro Democracia, o deus que falhou — a democracia inevitavelmente gera uma preferência temporal alta — isto é, leva a um comportamento imediatista, míope, visando apenas ao curto prazo — tanto entre os governantes como entre os cidadãos.  Dado que os políticos democraticamente eleitos ficarão apenas temporariamente no cargo, e eles não são os proprietários dos recursos à sua disposição, eles serão acometidos de um irrefreável incentivo para gastar dinheiro público em projetos que os tornem populares, desconsiderando as consequências futuras de tal ato.  Os problemas que eles criam ao longo do caminho, como o forte aumento da dívida pública, serão deixados para que seus sucessores resolvam.  Uma sociedade democrática é como um carro alugado — ou pior: um carro que é não propriedade de ninguém e utilizado por todos.  Ela rapidamente se destrói.
2) Conflito social e parasitismo
Democracia é um sistema em que as pessoas votam naqueles políticos que elas creem que irão favorecê-las com benesses e privilégios, de modo que a conta seja entregue a outras pessoas.  A democracia, portanto, inerentemente faz com que haja um imediato conflito grupal: os agricultores contra os moradores urbanos, os idosos contra os jovens, os imigrantes contra os residentes, empregadores contra empregados etc.  Isso gera um comportamento parasitário e tensões sociais.  
Este é o resultado do princípio democrático que preconiza que todas as decisões importantes devem estar sujeitas à vontade da maioria, ou seja, devem ser decididas pelo estado, o que transforma todos os indivíduos em meras engrenagens de um sistema político coletivista.  Em uma sociedade livre, baseada em direitos individuais, indivíduos com diferentes visões e objetivos não se tornam potenciais inimigos mútuos.  Eles podem colaborar entre si, comercializar uns com os outros, ou simplesmente se isolar e não se intrometer na vida de ninguém — mas eles certamente não terão meios coercivos com os quais obrigar outros cidadãos a satisfazer seus próprios fins.
A democracia cria uma discórdia que não existiria em uma sociedade livre.  Indivíduos não se importam se o sujeito que lhes vende uma xícara de café em uma padaria é judeu, católico, protestante, muçulmano, ateu, branco, preto, solteiro, casado, gay, hétero, velho, jovem, nativo, imigrante, alcoólatra, abstêmio ou qualquer outra coisa.  Nada disso importa no curso de sua interatividade diária com as pessoas.  Por meio do comércio e da cooperação, cada pessoa ajuda as outras a alcançar suas aspirações.  Se alguém diferente de você se muda para a sua vizinhança, você fará o seu melhor para lidar bem com ele.  Seja na igreja, no shopping, na academia ou até mesmo casualmente nas ruas, nós sempre nos esforçamos para encontrar maneiras de sermos civis e prestativos.
Agora, coloque estas mesmas pessoas na arena política e elas imediatamente se tornam inimigas.  Por quê?  A política não é cooperativa, como o mercado; ela é exploradora.  O sistema é configurado para ameaçar a identidade e as opções dos outros.  Todo mundo deve batalhar para impor as suas preferências.  Consequentemente, coalizões se formam, bem como alianças espúrias e momentâneas, que constantemente se alteram.  Este é o mundo imoral em que o estado — por meio da máquina eleitoral — nos joga.  Nele, torcemos para que o nosso cara vença e desejamos a morte política do oponente.
O jogo democrático confunde as pessoas em relação ao real inimigo.  O estado é a instituição que gera e vive à custa destas divisões.  No entanto, as pessoas são distraídas deste fato por causa do endeusamento do sistema.  Os negros culpam os brancos, os homens culpam as mulheres, os héteros culpam os gays, os pobres culpam os ricos e assim vai, em um infinito número de combinações possíveis.
O resultado final é a destruição dos cidadãos, e uma vida próspera para a elite política.
3) Intromissão
Embora muitas pessoas associem democracia a liberdade, o fato é que nenhuma liberdade está segura em uma democracia.  Se a maioria (ou, muitas vezes, alguns pequenos grupos influentes) quiser, ela poderá intervir em qualquer tipo de ação, transação ou relacionamento voluntários — e é isso que ela faz.  Ela proíbe as pessoas de beber álcool em determinadas circunstâncias, de queimar bandeiras, de se manifestar contra as guerras, de assistir a determinados filmes, de "discriminar" e assim por diante.  Os governos democráticos continuamente intervêm em transações voluntárias entre vendedores e compradores, empregadores e empregados, professores e alunos, médicos e pacientes, inquilinos e proprietários, prestadores de serviços e clientes etc.  Eles também se intrometem nas escolhas pessoais: a sua escolha de fumar, de usar drogas, de se envolver em profissões específicas (para as quais você não possui uma "licença"), de "discriminar" (isto é, de escolher com quem você quer se associar), de criar produtos específicos (para os quais existe uma 'patente', isto é, um monopólio do governo) etc.  Não há limites para esta intromissão.  A pouca liberdade que ainda temos nas sociedades ocidentais não se deve à democracia, mas sim à nossa tradição de amor à liberdade.
4) Coletivismo e passividade
Nos tempos pré-democráticos, a tendência era a de os governados não confiarem nos governantes, e cada novo imposto criado era visto como uma violação à liberdade.  Porém, atualmente, as decisões democráticas são vistas como fundamentalmente legítimas, pois, de acordo com o senso comum, tais decisões foram supostamente tomadas pelas próprias pessoas.  
Durante as eras monárquicas, poucos nutriam a esperança de chegar ao poder; consequentemente, a maioria suspeitava de todos aqueles que estavam no poder.  Já a democracia, por outro lado, permite, ao menos na teoria, que todos possam chegar ao poder.  Isto faz com que as pessoas acreditem que elas devam se submeter à regra da maioria. Elas podem não concordar com leis e regulamentos específicos, mas elas sentem que devem cumpri-los.  Mas, naturalmente, elas tentarão eleger um partido específico que crie leis que as beneficiem e que faça com que o dinheiro distribuído pela máquina estatal flua na direção delas.  Foi assim os gastos estatais cresceram, na maioria dos países democráticos, de cerca de 10% do PIB antes da Primeira Guerra Mundial para os quase 50% atuais.  É também por isso que temos tantas leis atualmente, de modo que podemos dizer com total segurança que há uma lei específica para absolutamente tudo que existe.
Gasto público, % PIB [veja o gráfico para o Brasil no final do artigo]

5) Corrupção e abuso
Embora a governança da maioria seja suficientemente ruim por si só, a realidade de uma democracia é muito mais sórdida.  Dado que o governo eleito tem poder virtualmente ilimitado e controla praticamente todos os recursos da sociedade, todos os tipos de grupos de interesses e lobistas irão trabalhar nos bastidores para influenciar o governo a criar e modificar leis para seu proveito próprio.  Um exemplo óbvio são os bancos e os interesses financeiros que, em conjunto com o governo, criaram um sistema de papel-moeda o qual eles controlam e manipulam para seu próprio benefício.  
Mas há também vários outros interesses poderosos que utilizam o sistema para proveito próprio e em detrimento do resto do povo: sindicatos, ONGs, empresas farmacêuticas, produtores rurais, empresas telefônicas, aéreas, de comunicação etc.  Os cidadãos comuns não podem fazer quase nada à respeito.  Eles geralmente não têm os meios ou o tempo para descobrir e entender o que está acontecendo.  Tudo o que podem fazer é votar de vez em quando, mas eles não têm como responsabilizar seus governantes ??por suas ações.
Portanto, as nossas mazelas econômicas e sociais não decorrem do manjado fato que "os políticos errados estão no poder".  É o próprio sistema democrático quem causa os problemas.  O que realmente deve ser feito é mudar o sistema para que ele se torne menos democrático, e não mais.  E a forma mais importante e eficaz de fazer isso é retirando poderes do governo e descentralizando ao máximo todos os processos de tomada de decisão.


Gastos das três esferas do estado brasileiro em porcentagem do PIB.  Note a disparada a partir de 1985, justamente quando a democracia se consolidou (Fontes: IBGE e Heritage Foundation).
  Tradução de Victor Maia

Por: Frank Karsten é o fundador da More Freedom Foundation na Holanda.

domingo, 22 de abril de 2012

Baixeza na Corte

Nunca foi tão apropriado um chamamento quanto o feito pelo ministro Carlos Ayres Britto em seu discurso de posse na presidência do Supremo Tribunal Federal: "Mais que impor respeito, o Judiciário tem que se impor o respeito".
Os desaforos distribuídos pelo antecessor Cezar Peluso em suas entrevistas de despedida do posto, bem como o revide de um de seus alvos, o ministro Joaquim Barbosa, acusando-o de manipular resultados de julgamentos, evidenciam a carência do atributo invocado pelo novo presidente da Corte.
As brigas ao molde de ambientes desatinados não são novidade no Supremo. Vira e mexe um ministro se indispõe publicamente com o outro. Não quer dizer que sejam condutas aceitáveis. A repetição as torna mais condenáveis.
Mas agora a ausência de cerimônia chegou ao ápice, levando a credibilidade da Corte ao rumo do declínio.
O ministro Peluso disse o que quis sobre a presidente Dilma Rousseff, sobre um senador da República, sobre a corregedora do Conselho Nacional de Justiça, sobre a independência jurisdicional do Supremo.
Acabou ouvindo o que não deve ter gostado de ouvir de um de seus pares a quem chamou temperamental, complexado e permeável a pressões da opinião pública por insegurança.
Em entrevista ao jornal O Globo, Joaquim Barbosa deu o troco com juros e, como se dizia antigamente, correção monetária.
Nos trechos amenos chamou Peluso de "ridículo", "brega", "caipira", qualificou sua passagem pela presidência do STF como "desastrosa" e o acusou de ter "incendiado o Judiciário inteiro com sua obsessão corporativista".
Alguns adjetivos nem precisavam ser ditos por outrem, pois o próprio Cezar Peluso tratou, recente e anteriormente, de expô-los ao escrutínio público em posições assumidas nos votos ou declarações.
Joaquim Barbosa, contudo, foi muito além: acusou Peluso de manipular resultados de votações, usar das prerrogativas do cargo para fazer valer sua vontade, criar "falsas questões processuais" e na imputação mais grave de todas referiu-se a roubo e prevaricação.
Ou há outra interpretação possível para o trecho em que o ministro diz que o então presidente aproveitou a ausência dele do STF para lhe "surrupiar" processo em que era relator a fim de "ceder facilmente" a pressões?
Se os ministros do Supremo não estivessem fora da jurisdição do Conselho Nacional de Justiça seria um caso de se proceder a averiguações. DORA KRAMER - O Estado de S.Paulo

Corrupção e sistemas econômicos

Da mesma forma que existe uma relação direta entre democracia e economia de mercado, existe, também, uma relação direta entre economias planificadas e totalitarismos.

Omitirei o nome da publicação e dos autores do artigo que vou criticar. Não me parece sensato divulgar fontes de equívocos. Direi apenas que se trata de uma publicação "católica" e que o artigo abordava o tema da corrupção, definindo a ética do "ganhar sempre mais", que seria própria do capitalismo, como determinante da corrupção.
Tal tese é um disparate sob quaisquer ângulos de observação e os autores devem saber. Mas estão se lixando. O que pretendem é levar os leitores a extrair conclusão errada de premissa falsa: se o capitalismo causa corrupção, então, na vigência de seu antônimo - o socialismo - a sociedade se conduziria por elevadíssimos valores morais. Um verdadeiro paraíso reconstruído. Ora, o desejo de ganhar mais não é uma especificidade da economia de mercado, ou livre, ou de empresa (prefiro designar o sistema econômico com esses nomes que lhe atribuiu João Paulo II). É um anseio da pessoa humana, em todos os tempos e em qualquer sistema. Resumamos o assunto, então, em alguns tópicos.
Duvido que os redatores dessa fraude intelectual recusem um aumento de salário, um bom negócio ou uma oportunidade de comprar por menos ou vender por mais.
Como consequência de um sistema de economia livre, de empresa, os agentes econômicos dedicam-se com maior empenho ao que fazem, a criatividade aumenta, a produtividade cresce, os custos decrescem. Beneficiam-se produtores e consumidores.
Gera-se uma saudável conseqüência ética pois a competência é premiada com resultados positivos e a incompetência punida com prejuízos.
Há uma relação histórica, ademais, entre economia de mercado e democracia pois o grande senhor da economia de mercado é ele mesmo, o mercado, formado por milhões e milhões de pessoas, com suas expectativas, anseios, etc..
Contudo, estava certo o papa João Paulo II quando, escrevendo sobre o tema, ensinava que se o núcleo da liberdade for apenas econômico – e não ético e religioso (papel das instituições políticas e jurídicas) – ocorrem situações de opressão econômica, formam-se monopólios, cartéis, mecanismos de corrupção, e outras enfermidades sistêmicas. Com efeito, absolutamente livre, o mercado padece dos mesmos males que acometem a liberdade individual na ausência de toda restrição.
Nas economias planificadas, socialistas, o anseio de “ganhar mais” é tolhido pela centralização estatal. Como conseqüência – e a história o demonstrou com muita clareza – a produtividade diminui, a iniciativa acaba, a economia fica estagnada, a pobreza se multiplica de modo irremediável, o muro cai, os governos tombam, os intelectuais do socialismo se escondem.
O fracasso socialista é tão óbvio que Leão XIII o previu três décadas antes de esse sistema ter sido tentado na Rússia. E João Paulo II, tendo vivido sob tal realidade, proclamou-o “falido”.
Da mesma forma que existe uma relação direta entre democracia e economia de mercado, existe, também, uma relação direta entre economias planificadas e totalitarismos. E a razão é simples: para coibir aquele desejo natural de “ganhar mais”, torna-se necessário criar uma estrutura estatal opressiva. Quando se concentram no Estado tanto o poder político quanto o econômico, nenhum poder resta à sociedade e à pessoa na sociedade.
Ademais, com a queda do Muro, foi possível conhecer o nível de corrupção instalado nas repúblicas socialistas, corrupção que também se espraia pela sociedade como defesa perante a escassez e a miséria geral. Quem quiser conhecer isso de perto, ainda hoje, vá a Cuba (onde fui três vezes), ou à Coréia do Norte (onde não tenho coragem de ir).
Bastariam estas poucas evidências para desmascarar a malícia do texto a que me refiro. Mas há nele um erro ainda muito mais grave: como pode um cristão afirmar que o capitalismo corrompe (e levar o leitor a presumir que o socialismo purifica), como se nele se extinguisse o pecado original?
Corrupção existe em qualquer sistema político ou econômico, embora alguns a favoreçam mais do que outros. E, nesse caso, o socialismo e os totalitarismos são imbatíveis. Mas em quaisquer regimes ou sistemas existe o pecado, os que a ele se entregam, e os justos que se empenham em serem bons. Se tudo fosse questão de sistema, Cristo teria proposto um, em vez de perder seu tempo propondo-se a si mesmo, ao custo em que o fez.
 POR PERCIVAL PUGGINA

A Guerra da Togas

A Guerra das Togas informa que o Judiciário não escapou da Era da Mediocridade Precipitada pelas declarações de Cezar Peluso à revista Consultor Jurídico, consumou-se nesta sexta-feira, com a entrevista de Joaquim Barbosa ao Globo, a abertura da mais selvagem das frentes de combate que compõem a Guerra das Togas. Somada às batalhas paralelas, a troca de chumbo entre o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e o relator do processo do mensalão comprova que o que foi historicamente o corpo de elite do Judiciário vai sucumbindo aos estragos causados pela Era da Mediocridade na Praça dos Três Poderes. Está cada vez mais parecido com o Executivo e o Legislativo. Enquanto os ministros foram escolhidos entre os melhores e os mais brilhantes, enquanto o preeenchimento das vagas no STF esteve subordinado à meritocracia e às exigências constitucionais que cobram dos indicados notável saber jurídico e reputação ilibada, nem o mais delirante ficcionista ousou conceber um bate-boca semelhante ao protagonizado por Peluso e Barbosa. Ao queixar-se do “temperamento difícil” de Barbosa e qualificá-lo de “inseguro”, Peluso fez o papel do aluno brigão que provoca o colega no fim das aulas. O revide do provocado transferiu da porta do colégio para o botequim essa molecagem de gente supostamente adulta. Na réplica ao desafeto, Barbosa temperou acusações de alta voltagem, incluindo a “manipulação de resultados de julgamentos”, com adjetivos insolentes ─ “ridículo”, “brega”, “caipira”, “tirano” e “pequeno”, por exemplo. Peluso não respondeu de imediato, mas a tréplica está em gestação. O Brasil em que os juízes só falavam nos autos parece tão remoto que bate a sensação de que existiu antes do Descobrimento. Agora os doutores falam em qualquer lugar. Falam tanto que lhes falta tempo para falar nos autos. Se discursassem menos e julgassem mais, já teriam liquidado há anos o caso do mensalão, que segue estimulando barulhos em outras frentes da Guerra das Togas. Ao longo desta semana, todas registraram tiroteios retóricos. Numa das áreas conflagradas, ao repetir que o STF precisa definir o destino dos mensaleiros ainda neste semestre, Gilmar Mendes expôs-se ao contra-ataque de Marco Aurélio de Mello, para quem não faz sentido “julgar a toque de caixa” um escândalo descoberto há sete anos. Sem ficar ruborizado, Marco Aurélio garantiu que há na fila de espera pelo menos 700 processos tão relevantes quanto a roubalheira de dimensões siderais. Vizinho de trincheira, Dias Toffoli murmurou que ainda não sabe se deve participar do julgamento que envolve velhos companheiros ou declarar-se sob suspeição. Como se a dúvida pudesse existir. Antes de virar ministro, Toffoli foi advogado do PT e, no governo Lula, chefiou a Advocacia Geral da União. Depois de ganhar a toga, sua namorada advogou em defesa de alguns mensaleiros. “Ele não tem o direito de ficar fora”, cobrou Luiz Marinho, prefeito de São Bernardo. O parecer de Marinho atesta que, neste estranho Brasil, os companheiros é que decidem o que deve fazer um juiz do Supremo. Instado por outros ministros a apressar a entrega do serviço, Ricardo Lewandowski retrucou que ninguém o fará acelerar o ritmo de obra do PAC. Ele ainda não revelou quando vai concluir a revisão do processo ─ informação que, na avaliação mais recente, vale 1 milhão de dólares. “Japona não é toga”, lembrou o senador Auro Moura Andrade aos chefes do regime militar que insistiam em violentar a Constituição. Com a frase tão curta quanto pedagógica, o paulista que presidia o Senado ensinou que cabe ao Supremo Tribunal Federal lidar com assuntos constitucionais e, simultaneamente, reiterou a confiança dos brasileiros democratas na sensatez dos juízes togados. Passados 50 anos, os focos de turbulência não envolvem cidadãos fardados. E os mais perturbadores se localizam na Praça dos Três Poderes. A frase de Auro perdeu o sentido num Brasil sobressaltado por juízes sem juízo. Se os ministros do STF agissem nos quartéis, haveria uma crise político-militar de meia em meia hora. Ainda bem que toga não é japona.