terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O PREÇO DA VERDADE

Todo mundo tem algum senso instintivo do que é normal e são, mas não sabe expressá-lo em palavras, nem usualmente é desafiado a fazê-lo. O desafio aparece quando, em épocas de crise, sentindo afrouxar-se os freios do costume e da autoridade, os interessados na promoção de alguma anormalidade específica – a sua própria ou a do seu grupo de referência -- se erguem dos bas-fonds da sociedade e partem para o ataque frontal à própria noção de normalidade e sanidade. O defensor dos antigos costumes encontra-se então numa posição de extrema desvantagem: como experiências tão abrangentes e duradouras não se deixam facilmente traduzir em conceitos, ele se apega a definições nominais e símbolos corriqueiros que a crítica corrosiva destrói com a maior facilidade. É que, não contando com a proteção do costume e do senso comum, o militante da causa mórbida entra em campo armado dos mais sofisticados instrumentos da dialética -- o que hoje em dia corresponde ao relativismo cultural e ao desconstrucionismo --, comparados aos quais o discurso do seu oponente assume a aparência grotesca de um mero apelo irracional ao argumento de autoridade e à força do conformismo banal. Eis aí, num instante, o anormal e o doentio elevados à condição de valores culturais respeitáveis, e a sanidade reduzida ao estatuto de “construção cultural” e de “preconceito”.


Comprova-se assim novamente, pela milésima vez, a lição do Eutífron de Platão, segundo a qual aqueles que estão do lado certo só por tradição e hábito, sem revigorar suas crenças pela busca ativa da verdade, se tornam presas fáceis e colaboradores inconscientes do mal.

Acontece que a busca ativa da verdade exige uma exposição profilática à experiência do erro, algo como uma vacina ou auto-intoxicação homeopática, experiência que não é sem riscos e da qual a inteligência preguiçosa, que é a da maior parte da espécie humana, foge como quem evita o contágio de uma lepra incurável.

O simples fato de que não exista erro absoluto, de que mesmo as hipóteses mais rebuscadas e antinaturais contenham uma parcela de verdade, é profundamente repugnante àquele que espera poder ter razão sem ter de pensar no assunto, ou instalar-se no reconforto da certeza sem ter de pagar o preço da dúvida. Nem sempre os valores em que ele acredita são meros preconceitos, mas é por mero preconceito que ele acredita neles. Assim, a maioria tende irresistivelmente a imitar o velho anfitrião do diálogo platônico, que, entediado e confuso ante o debate dos convivas mais jovens empenhados na busca da verdade, vai dormir.

Contribui ainda mais para isso este segundo fator: para tirar proveito dos erros, apreendendo a sua verdade parcial e integrando-a numa verdade mais abrangente, não basta conhecê-los intelectualmente, é preciso vivenciá-los em imaginação, senti-los, impregnar-se deles pessoalmente sem assumi-los por completo, como o ator que se identifica temporariamente com o personagem sem precisar transformar-se nele na vida real.

É uma operação imaginativa das mais difíceis e problemáticas, que constitui, no entanto, a essência da educação humanística, a conditio sine qua non de todo ingresso no mundo da cultura superior. Em geral, e excetuadas certas situações incomuns que não vêm ao caso, ela só pode ser realizada sob o guiamento de um professor experimentado, que passou por todos os erros e, em vez de ser devorado por eles, emergiu fortalecido. Os Diálogos de Platão dão-nos o exemplo do destemor, da naturalidade, da abertura de alma, quase da singeleza com que Sócrates aceita e toma como suas as hipóteses mais hostis e aberrantes, para apreendê-las em profundidade e superá-las. Mas os Diálogos são apenas simplificações teatrais: resumem num debate de poucas horas aquilo que, na realidade, é uma experiência que pode se prolongar por muitos anos e comprometer a alma em situações bem mais difíceis do que um mero duelo de razões. Só as mentalidades superficiais imaginam que tudo na esfera da inteligência é uma questão de teorias, argumentos e provas. Se o conflito das cosmovisões não se transfigura em guerra de paixões dentro da nossa própria alma, não conhecemos realmente essas cosmovisões, só as suas expressões verbais, e tudo o que dissermos contra ou a favor delas não passará nunca de um flatus vocis, de uma filosofia de isopor. A filosofia genuína, como a educação efetiva, é, segundo o verso imortal, “um saber de experiência feito”.

No Brasil, onde se espera que aos dezoito anos o cidadão já tenha opinião formada sobre tudo, e onde a única função dos professores é recitar as opiniões tidas como corretas para que os alunos as repitam aos berros e apedrejem quem as negue, a educação superior, nesse sentido, é virtualmente impossível em qualquer instituição nominalmente destinada ao ensino.

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Não vi nenhum inconveniente em enviar estas notas ao Diário do Comércio antes da segunda parte da série “Um cadáver no poder”, que prosseguirei na semana que vem.

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Eu havia prometido também completar a análise do caso Bolsonaro e explicar como podem os comunistas e seus amigos ser tão loucos ao ponto de acusar de estupro, sem apontar uma única vítima, justamente o algoz mais severo de todos os estupradores. Prometi, mas não é preciso um artigo inteiro para isso. Posso resumir a explicação em poucas linhas.

Os comunistas inventaram o uso do estupro como arma de guerra psicológica, ao invadir a Alemanha (leiam Antony Beevor, Berlin: The Downfall 1945, Penguin Books, 2002), cultuaram como heróis e gurus máximos pelo menos três estupradores, Stálin, Mao Dzedong e Fidel Castro (sobre este último, v. http://cuban-exile.com/doc_326-350/doc0343.html e http://www.christusrex.org/www2/fcf/exwife.html), e ainda recentemente, no Brasil, produziram um manifesto em favor de Kim Jung-Un, que instituiu o estupro como sistema, nas cadeias do seu país, para o tratamento e “reeducação” de prisioneiros políticos.

Ninguém, no mundo, carrega mais culpa pelo fenômeno hediondo dos estupros em massa do que os comunistas. Eles sabem disso, mas não querem pensar no assunto. Reprimem a culpa. Rejeitam-na para o fundo do inconsciente, de onde, em momentos de tensão, ela emerge sob forma invertida, camuflada de acusações projetivas, como já explicava o dr. Freud.

Poucas coisas, no universo, são tão sujas quanto a mente de um comunista. Qualquer comunista.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

INVIDIA

“A inveja é a paixão que vê com maligno desgosto a superioridade dos que realmente têm direito a toda a superioridade que possuem.” (Adam Smith)

A inveja é um sentimento com profundas conseqüências para o progresso da humanidade, e caso não seja devidamente domesticada, pode limitar bastante nossos avanços. John Stuart Mill considerou a inveja a paixão mais antisocial de todas. O filósofo austríaco Helmut Schoeck escreveu um brilhante livro sobre o tema, chamado Envy: A Theory of Social Behaviour. Seu trabalho deveria ser lido por todos, principalmente por aqueles que defendem uma utopia na qual seria possível construir uma sociedade igualitária, desprovida da inveja. O autor deixa claro, com sólidos argumentos e vasta experiência empírica, que não só é impossível a construção de tal sociedade, como o motivador de seus defensores é muitas vezes a própria inveja.

Em primeiro lugar, é interessante traçar as diferenças entre a inveja e o ciúmes. No caso deste, uma terceira pessoa está envolvida, e o ciumento pretende preservar algo que considera sua propriedade. Ele quer preservar seu ativo de terceiros. Já no caso da inveja, há um impulso destrutivo, onde o outro não ter algo é mais importante que tudo. A eliminação do próprio ativo passa a ser o objetivo. A inveja se mistura muito com o ressentimento, fruto de um sentimento de inferioridade, onde a desgraça alheia é mais importante que a satisfação pessoal do invejoso. Se um vizinho quebrar a perna, o invejoso irá regozijar-se, ainda que isso não faça ele andar melhor. Se um rico for à bancarrota, o invejoso irá comemorar, ainda que isso não o faça mais rico. O homem intensamente invejoso pode inclusive ser possuído pelo desejo de autodestruição, incapaz de tolerar que outros saibam aproveitar a vida e demonstrar felicidade.

Helmut conclui pontos interessantes sobre a inveja, como o fato de mínimas diferenças serem suficientes para despertar muita inveja no homem invejoso, ou que normalmente a inveja está mais atrelada à proximidade das pessoas. Em outras palavras, um não precisa ser um miserável para invejar um rei, sendo mais provável a inveja surgir entre empregados de um mesmo nível onde um deles recebeu um aumento relativo ou um elogio do chefe. Isso derruba o sonho dos igualitários em criar uma sociedade onde todos fossem materialmente iguais, como se isso pudesse eliminar a inveja do mundo. Pelo contrário, em tais sociedades – caso pudessem existir – a inveja seria de um nível bastante elevado, onde um simples agrado de alguém, o olhar de uma mulher, uma mísera demonstração de superioridade intelectual, faria despertar uma inveja incontrolável no invejoso. *

No livro, o autor vai buscar os indícios de inveja – e os mecanismos desenvolvidos para evitá-la – nas sociedades mais primitivas que se tem conhecimento. A crença na magia negra, por exemplo, teria pouca diferença da fé socialista de que o pobre é pobre por ser explorado pelo patrão, ou a crença das nações subdesenvolvidas de que assim estão por culpa das nações mais ricas. O uso de algum bode expiatório, seja a magia negra, o desejo dos deuses ou o capitalismo explorador, serve para consolar aqueles invejosos que não suportam o sucesso alheio explicado por mérito ou alguma superioridade qualquer em relação a si próprio. Se o vizinho teve uma colheita melhor, não pode ser pela sua maior eficiência e produtividade, pois isso seria um atestado de superioridade que o invejoso não está disposto a dar. Diferente daquele que observa e admira o sucesso alheio, o invejoso vai buscar refúgio nas “explicações” fantasiosas, como o uso da magia pelo vizinho, a sorte, o destino traçado pelos deuses etc.

Se todos possuem, em diferentes graus, o sentimento de inveja, a busca de proteção contra o invejoso, o “mau olhado”, sempre esteve presente nas diferentes culturas também. Quanto mais uma sociedade conseguiu controlar os invejosos e dar mais espaço e liberdade para os inovadores, mais progresso atingiu. A alocação de escassos recursos não é eficiente quando o medo da inveja alheia é grande demais. Se o fruto do sucesso será tomado por medidas claramente invejosas como o imposto progressivo, deixam de existir os incentivos adequados para que o empreendedor se arrisque. Se as desigualdades não são toleradas, se alguém souber a priori que seu sucesso será motivo de forte inveja por parte de seus vizinhos, as realizações pessoais serão ínfimas, e por conseguinte a da sociedade em questão também.

Por isso que as comunas israelenses, os kibbutzin, jamais seriam capazes de evoluir da subsistência agrária, e o pouco avanço existente vem emprestado de fora, dos países industriais capitalistas. O socialismo, a pura idealização da inveja, onde todos devem ser iguais como os insetos gregários são, seria a vitória da mediocridade sobre o talento, sobre as conquistas individuais. Numa sociedade igualitária, a inveja derrota o sucesso, as realizações pessoais. Eis o ideal dos invejosos, que trabalham para incutir um forte sentimento de culpa naqueles que, de alguma maneira, destacaram-se na sociedade. Temendo a inveja alheia, muitos desses sucumbem também ao sonho – ou pesadelo – igualitário.

Com isso em mente, deixo a conclusão nas palavras do próprio filósofo: “O desejo utópico por uma sociedade igualitária não pode ter surgido por qualquer outro motivo que não a incapacidade de lidar com a própria inveja”.

* Robert Nozick disse coisas interessantes sobre o tema, em Anarchy, State, and Utopia. Ele lembra que a auto-estima se baseia nas características de diferenciação entre indivíduos. Os julgamentos sobre quão bem realizamos determinada tarefa ocorrem através da comparação com o desempenho dos outros. Não há um padrão para saber se algo é bem feito independente de como ele pode ser feito por outros. Quanto Trotsky disse que, no comunismo, o homem médio seria do peso intelectual de um Aristóteles ou Goethe, ele ignorou que, todos sendo desta forma, ninguém acharia grande coisa tal característica. Ser como Goethe seria estar na média, ser medíocre, e o indivíduo ainda poderia ter problemas com a auto-estima. Adotando um modelo simples de dimensões diferentes de importância de atributos, quando uma dessas dimensões é equalizada, como a riqueza, a sociedade acaba escolhendo outra dimensão qualquer como a mais importante. Seja a inteligência, a beleza, a força, não importa, sempre haverá uma nova dimensão para suscitar julgamentos acerca das diferenças individuais. São estas diferenças que importam para a auto-estima. Qual o orgulho que alguém pode ter por saber falar, onde todos sabem? Quem se sente satisfeito consigo mesmo apenas por ter direito ao voto, enquanto todos têm? No passado, o direito de votar poderia ser um diferencial, mas uma vez que temos o sufrágio universal, esta deixa de ser uma dimensão relevante. Portanto, para Nozick, o caminho mais promissor para que a sociedade possa evitar grandes diferenças na auto-estima seria não ter um peso comum das dimensões, mas sim uma diversidade de diferentes dimensões e pesos. Assim, cada um poderia achar as dimensões que alguns outros também consideram importantes, permitindo alguma avaliação positiva de si mesmo. A diversidade descentralizada do liberalismo é um remédio para a inveja bem mais eficiente que a igualdade centralizada do socialismo.
Por: Rodrigo Constantino
Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

QUEM DIRIA: HÁ PETRÓLEO DEMAIS NO MUNDO

A queda do preço do barril do petróleo está escancarando um mito antigo e aterrorizante: o de que as reservas do óleo vão se esgotar em breve. Passamos as últimas décadas ouvindo essa história e o que vemos em 2015 é o contrário. As reservas só aumentam – e o preço do barril está barato porque há petróleo demais sendo produzindo no mundo.


Por coisas assim, eu torço para qualquer dia topar com o meu professor de geografia da escola. Ele costumava me apavorar com previsões alarmistas. “O petróleo vai acabar em 20 anos”, dizia. “E os carros serão abandonados por falta de gasolina.” Eu arregalava os olhos ressentido com a sociedade e aterrorizado com o futuro.

O terror sobre o fim do petróleo é tão antigo quanto seu refinamento. Em 1874, um geólogo da Pensilvânia, que na época concentrava a produção do óleo dos Estados Unidos, estimou que só haveria reservas para abastecer as lâmpadas de querosene por mais quatro anos. Mas ainda havia petróleo em 1919, quando a Scientific American previu que o recurso acabaria em 20 anos.

“Se o consumo seguir no nível atual, o petróleo do mundo deve desaparecer na primeira década do século 21”, escreveu, em 1977, o New York Times. “A reserva [mundial] de petróleo vai acabar no ano 2011”, cravou o Estadão em 1981.

Líamos essas previsões no jornal e acreditávamos no filme Mad Max. Num futuro desértico, gangues de motociclistas sujos e malvados cometeriam qualquer crime para obter uma dose de gasolina. Bem como o meu professor de geografia tinha avisado!

Mas os anos passaram, e em vez do apocalipse veio a abundância. De 1874 até hoje, o estoque de petróleo cresceu centenas de vezes. Nos últimos 30 anos, as reservas comprovadas passaram de pouco mais de 600 bilhões para 1,6 trilhão de barris.

Ocorreu o que os otimistas e os economistas liberais previram. O mecanismo de incentivos dos preços livres resolveu a parada. A alta do petróleo em 1973 criou oportunidade de lucro para a pesquisa de novas reservas e tecnologias de extração. Também levou muita gente a poupar o recurso, por meio de motores mais eficientes ou fontes alternativas de energia. Aprendemos a produzir mais petróleo enquanto ficamos menos dependentes dele.

Só nos últimos quatro anos, por causa da extração de xisto, a produção dos Estados Unidos aumentou um terço. Os americanos produzem hoje 8,8 milhões de barris por dia. Estão encostando nos 9,7 milhões de barris da Arábia Saudita e nos 10 milhões da Rússia, a principal produtora mundial. É petróleo demais para um planeta em recessão.

Analistas dizem que os árabes se recusaram a diminuir a produção de petróleo para manter o preço baixo e, assim, quebrar as empresas de xisto dos Estados Unidos, que não podem suportar prejuízo por tanto tempo quanto os árabes. O curioso é que essa estratégia é contrária à de 1973. Em vez de aumentar o preço – incentivando sem querer a concorrência – vão vender barato para tirar o incentivo de concorrentes e da pesquisa de novas tecnologias. Perverso, mas inteligente.

O petróleo é um recurso finito e não renovável, então ok, é verdade, em algum momento a previsão do meu professor de geografia vai se realizar. Mas deve demorar um pouquinho mais do que ele previu – talvez um ou dois séculos. O certo é que, antes da crise de oferta, é a demanda que deve diminuir. Quando o petróleo desaparecer, já não precisaremos mais dele.
Por: Leandro Narloch O Caçador de Mitos
Uma visão politicamente incorreta da história, ciência e economia
Do site: http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/2015/01/15/quem-diria-ha-petroleo-demais-no-mundo/

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

DESCONSUMO VERSUS DESMATERIALIZAÇÃO

“Qual o seu grau de concordância/discordância com a seguinte afirmação: Estaríamos melhores se consumíssemos menos”. Esse foi um item de uma pesquisa divulgada em um novo estudo da pesquisadora da Universidade do Oregon Ezra Markowitz e Tom Bowerman da Eugene, um instituto de pesquisa ambientalista do Oregon, PolicyInteractive. Seu estudo, “How Much Is Enough? Examining the Public’s Beliefs About Consumption“ (“Quanto é demais? Examinando as crenças públicas sobre o consumo”), está na edição do jornal Analyses of Social Issues and Public Policy.


Em cinco pesquisas com cidadãos do Oregon e uma pesquisa nacional, eles demonstraram que 74 a 80% dos entrevistados “apoiam reduzir o consumo e acreditam que ao fazerem aumentam o bem-estar individual e da sociedade”. Markowitz e Bowerman interpretaram seus resultados como desafiando “o conhecimento convencional sobre nossa necessidade coletiva e interminável por bens materiais”. Com base em seus resultados de pesquisa eles esperam persuadir legisladores de que os americanos estão prontos para “desconsumir” em prol do meio ambiente, cortando compras de bens materiais, e especialmente reduzindo suas emissões de gases do efeito estufa.

Indo mais fundo em uma outra pesquisa, Markowitz e Bowerman descobriram que 84% concordam que cortar consumo seria “melhor para o planeta”, 67% concordam que então teríamos mais tempo para gastar com a família e amigos, e 84% acreditam que a diminuição do consumo geraria uma maior autoconfiança. Mas falar é fácil, especialmente quando se responde perguntas de pesquisa. Então os pesquisadores sondaram cautelosamente os entrevistados com mais uma pesquisa que perguntava aos participantes a escolher entre várias políticas públicas diferentes visando o corte no consumo. Vale a pena passar por seus resultados.

Os cidadãos do Oregon pesquisados, ao que parece, não estão muito ansiosos com a tributação de seu próprio consumo. A maioria foi contra um imposto sobre casas maiores que 2.500 metros quadrados ou custando mais que $300.000 dólares (62% contra); um imposto sobre casas maiores que 5.000 metros quadrados e custando $500.000 dólares (50% contra); um imposto de 10% por galão de gasolina (63% contra); um programa para tributar a energia quando seu preço está baixo e investir em fundos de conservação (64% contra); tributação de uma taxa de 1% por cada kilowatt-hora consumido por casa que consuma mais de $100 dólares em um mês (71% contra); uma taxa sobre a segunda casa própria (56% contra); um imposto de $1.000 dólares sobre novos veículos que fazem menos de 25 milhas por galão (62% contra); e um imposto de 1% por milha de carbono por viagem de avião (58% contra).

Estes resultados refletem conclusões similares de uma pesquisa nacional de Junho de 2010 pelo Institute for Energy Research que encontrou que 70% dos entrevistados se opuseram a novos impostos sobre a energia com o objetivo de reduzir a dependência de óleo estrangeiro ou reduzir as emissões de gases do efeito estufa. A mesma pesquisa demonstrou que 61% se opuseram a qualquer aumento nos impostos sobre a gasolina. Em outro estado politicamente liberal, Massachusetts, umapesquisa de Janeiro de 2010 perguntou sobre o apoio dos cidadãos para o projeto Cape Wind. Os pesquisadores encontraram que “enquanto 42% dos entrevistados estão menos dispostos a apoiar o projeto Cape Wind se suas contas aumentarem por $50 dólares ao ano, essa porcentagem aumenta para 67% a cada $100 dólares de aumento por ano e para 78% a cada $150 dólares de aumento por ano”.

Markowitz e Bowerman descobriram que os cidadãos do Oregon estavam, entretanto, felizes em cortar o consumo dos ricos, favorecendo um imposto de 5% sobre iates privativos, aeronaves, e trailers (61% a favor). Além disso, 76% são a favor de taxas de serviços públicos estruturados de modo que a carga por unidade suba com o aumento do consumo de energia; 75% aprovam a realização de padrões de eficiência de energia sobre novos edifícios mais rigorosos; e 57% aprovam o aumento dos padrões de eficiência do combustível de automóveis.

Levando em consideração o fato de que os entrevistados de sua pesquisa não pareciam muito interessados em políticas voltadas para o incentivo do desconsumo, Markowitz e Bowerman ligeiramente observaram que outras vias políticas além de tributação do consumo podem ser mais proveitosamente visadas. Eles sugeriram campanhas publicitárias. “Se o menor consumo de bens e serviços não-essenciais é benéfico ou necessário para a sobrevivência à longo prazo de nossa espécie, então parece ser prudente divulgar a difundida disposição ‘consuma menos’ “, eles escreveram. Eles esperam que se as pessoas soubessem que seus vizinhos favorecem o desconsumo, uma mudança cultural nas atitudes geraria menor consumo.

Markowitz e Bowerman definem o desconsumo simplesmente em termos de fazer com menos. Em outras palavras, desconsumo significa tornar os produtos mais pobres materialmente. Eles veem no aumento da pobreza material uma necessidade para proteger a natureza de uma humanidade voraz. Mas se usar menos de certa forma protege o meio ambiente, não seria melhor usar menos para produzir mais?

Jesse Ausubel, diretor do Program for the Human Environment da Universidade Rockefeller e Paul Waggoner da Connecticut Agricultural Experiment Station, demonstraram que a economia mundial está gradualmente usando menos para produzir mais. Eles chamam esse processo de “desmaterialização”. Por desmaterialização significa diminuir o consumo de energia ou bens por unidade do PIB. Em um artigo de 2008 no Proceedings of the National Academy of Sciences, Ausubel e Waggoner, utilizando dados de 1980 a 2005, mostraram que o mundo está numa onda de desmaterialização, espremendo cada vez mais valor de menos material. Acontece que a desmaterialização alcança muitos dos objetivos ambientais tal como o desconsumo.

Ausubel e Waggoner demonstraram que a economia global desmaterializa (consegue mais produtos de menos insumos) fortemente na produção de colheitas, uso de fertilizante e madeira, e emissões de dióxido de carbono. Por exemplo, enquanto a renda per capita global cresceu 40% entre 1980 e 2005, fazendeiros ao redor do mundo aumentaram a produção da colheita em 57%. Se a produtividade do cultivo tivesse permanecido no nível de 1980, os fazendeiros teriam que arar mais de 1 bilhão de hectares adicionais (cerca de metade da terra dos EUA e seis vezes a lavoura atual dos EUA) para produzir a quantidade de comida produzida em 2005. Em vez disso, as lavouras cresceram menos de 100 milhões de hectares e os fazendeiros aumentaram sua produtividade de forma que eles puderam produzir a mesma quantidade de colheita utilizando somente 60% da quantidade de terra usada em 1980.

A economia mundial emitiu mais dióxido de carbono em 2005 que fez em 1980, mas aproximadamente 30% inferior à que teria emitido caso o aumento de emissões fosse na mesma taxa que o crescimento da economia mundial. Utilizando os preços do Câmbio Europeu de Carbono (European Carbon Exchange) por tonelada de dióxido de carbono, Ausubel e Waggoner calcularam que esse carbono desmaterializado valeria quase US$ 400 bilhões por ano.

Quão longe a desmaterialização pode chegar? Em um trabalho anterior, Ausubel e Waggoner calcularam que se a produtividade média dos agricultores mundiais crescerem ao nível atual de produtividade de um fazendeiro de milho em Iowa, um mundo de 10 bilhões de pessoas poderia ser alimentado com uma dieta americana por cerca da metade das lavouras que são utilizadas hoje. Isso significa que uma área do tamanho da Amazônia poderia “retornar” à natureza. Similarmente, a produção de energia também poderia ser desmaterializada. Ausbel e Waggoner mostraram que entre 1980 e 2005 um consumidor francês desfrutou de 50% mais abundância mas usou somente 20% a mais de energia. Além disso, trocar a produção de eletricidade à base de carvão por nuclear desmaterializou as emissões de carbono anual de cada consumidor francês por uma tonelada. Mas nem todas as tendências são a favor da desmaterialização. Por exemplo, entre 1980 e 2005, a China usou muito mais cimento per capita que seus cidadãos podiam pagar e então exigiu-se melhores moradias. Mas este é um boom único de construção que diminuirá à medida que o parque habitacional e a infraestrutura chinesa atingir os padrões modernos.

Curiosamente, muitos ambientalistas ideológicos apoiam maneiras que utilizam uma alta quantidade de material para produzir comida e combustível. Por exemplo, a agricultura orgânica utiliza mais lavoura que a agricultura convencional, e as versões atuais de produção por energia solar e eólica ocupam uma maior parte de terra e leva mais material para ser construída que as usinas convencionais.

Ausubel e Waggoner concluem, “se os consumidores desmaterializam sua intensidade de uso de bens e especialistas técnicos produzirem os bens com uma menor intensidade de impacto, a população pode crescer em números e abundância sem um maior impacto ambiental”. Enquanto for permitido o progresso tecnológico dirigido pelo mercado se desenvolver, tributar e intimidar as pessoas por um aumento da pobreza material não é necessário para proteger a natureza. E como as pesquisas mostram, as pessoas não vão aturar isso de qualquer maneira.
Por: Ronald Bailey é correspondente científico da Reason Magazine, e autor do livro Liberation Biology: The Scientific and Moral Case for the Biotech Revolution.
Tradução de Robson da Silva. Revisão de Juliano Torres.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O OUTRO LEGADO DE PEPE MUJICA

O anúncio de uma lei que regula o mercado de comunicação, aprovada no final de dezembro e que deve ser implementada no próximo mês de março, causa protestos de entidades representativas da mídia tradicional. O caso acontece no Uruguai, onde o atual presidente, José “Pepe” Mujica, deixa a medida preparada para entrar em vigor na posse de seu sucessor, Tabaré Vásquez.


Tudo indica que a inciativa resultou de um acordo interno no partido Frente Ampla, ao qual pertencem os dois políticos, o que provoca comentários de dirigentes de empresas de comunicação sobre o que consideram uma tendência de governos classificados como esquerdistas na América Latina. A nova lei não se refere a jornais de papel ou à mídia digital, regulando apenas as concessões de canais de televisão aberta ou a cabo, mas mesmo assim levantam-se contra ela os porta-vozes de sempre, a começar pela Sociedade Interamericana de Imprensa.

Os métodos da mídia hegemônica são os de sempre: omitir o fato relevante de que os canais de TV são uma concessão do Estado, e, portanto, precisam ser regulados, e repetir o velho argumento: “A aplicação da lei pode representar uma ameaça à liberdade de expressão”, diz o dirigente da entidade que representa as empresas de comunicação na América Latina. O presidente Pepe Mujica responde com seu estilo direto: “É preciso ter liberdade de imprensa. O que não pode haver é monopólio”.

Essas duas posições resumem a questão: de um lado, empresários que preferem atuar num mercado sem limites, desde que seus quintais sejam protegidos pelo Estado contra a concorrência internacional; do outro lado, o raciocínio segundo o qual o Estado deve proteger em primeiro lugar o interesse da sociedade, e impedir que o ecossistema comunicacional seja transformado em mercado restrito de uns poucos e poderosos operadores.

Basicamente, a lei, no Uruguai e no Brasil, declara que serviços de radiodifusão são atividades de interesse público e, portanto, devem ser submetidos a autorização. Cabe, então, ao governo, definir os critérios pelos quais o Estado vai distribuir essas autorizações. Simples como o estilo de vida do presidente Mujica.

Um debate parcial

No entanto, na América Latina, onde o negócio da comunicação segue a tradição das oligarquias que sempre dominaram outros setores, como a posse da terra e o controle do sistema financeiro, qualquer menção a medidas reguladoras soa como a queda da Bastilha.

O debate tende a se acirrar com o anúncio de que o Congresso do Chile discute uma lei sobre os meios de comunicação que inclui a imposição de controles para a publicação em plataformas digitais. A proposta está inscrita no projeto que altera a lei 19.733, de 2001, que define a liberdade de opinião e informação e o exercício do jornalismo. O ponto central da polêmica está na proposta de enquadrar como jornal todo periódico digital que tenha edições renovadas em pelo menos quatro dias por semana. Teoricamente, trata-se de submeter as plataformas digitais às mesmas normas de responsabilidade que incidem sobre os meios tradicionais.

No caso chileno, embora o projeto tenha sido aprovado por unanimidade pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, sofre a oposição até mesmo do Colégio de Periodistas, uma espécie de Conselho Nacional de Jornalistas, que considera a iniciativa pobre, confusa e com grande potencial para atrasar os debates sobre liberdade de expressão.

A iniciativa partiu da Unidade Democrática Independente, partido cujos fundadores apoiaram o golpe militar de 1973. Curiosamente, a Sociedade Interamericana de Imprensa fica fora desse debate específico.

Ao mesmo tempo que alerta para a ambiguidade da nova lei, o Colégio de Periodistas chama atenção para a falta de iniciativa do governo chileno diante da concentração dos meios de comunicação, que se repete em todas as plataformas de publicação.

Como se pode ver, nem toda iniciativa de regulação da mídia tem o objetivo de impor o arbítrio do Estado sobre a imprensa: em algumas delas, tenta-se justamente enquadrar os meios digitais e aumentar o poder das empresas tradicionais.

Esse debate corre em praticamente todos os países da América Latina, do México ao Uruguai. Exceto no Brasil.Por aqui, a concentração dos meios de comunicação continua sendo um tabu: qualquer pessoa ou instituição que tenta colocar em pauta essa questão é logo acusada de atentar contra a liberdade de expressão.

Por Luciano Martins Costa em 15/01/2015 na edição 833
Dosite:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_outro_legado_de_pepe_mujica
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 15/1/2015






CAPITALISMO E LIBERDADE: A VISÃO DE MILTON FRIEDMAN


“Não existe almoço grátis.” (Milton Friedman)

Os pilares do liberalismo estão no indivíduo e seu direito à liberdade, crença que vai contra a visão paternalista de um Estado patrão e dirigista, que determina o destino dos seus cidadãos como se esses fossem seus súditos. Para o homem livre, o país não passa da coleção de indivíduos que o compõem, e não algo acima deles. O governo é visto apenas como um meio para seus objetivos, nunca um fim em si, nem um agente garantidor de favores ou um mestre que devesse ser cegamente seguido, detentor de uma sabedoria clarividente. A maior ameaça à liberdade individual é justamente a concentração de poder, e o papel do governo seria basicamente o de preservar esta liberdade, em vez de ameaçá-la concentrando cada vez mais poder em si.

Numa sociedade livre, o escopo do governo é limitado, porém não inexistente, nem irrelevante. Ele deve ser capaz de preservar as regras do jogo, manter a ordem, definir os direitos de propriedade, ser o juiz em disputas quanto à interpretação das leis e forçar contratos. Alguns liberais aceitam mais ainda, como promover a competição e intervir apenas em situações de monopólios naturais ou externalidades negativas, além da função paternalista com as crianças e adultos irresponsáveis, como os detentores de problemas mentais. O liberal entende que a liberdade só anda junto com a responsabilidade, e só deve ser livre quem puder arcar com as conseqüências de sua liberdade. Como fica claro, o liberalismo nem de perto prega a ausência de governo, como defendem os anarquistas.

Alguns exemplos de intervenções indesejáveis do governo seriam programas de suporte a preços, controle de produção, salário mínimo, regulamentações muito detalhadas para algumas indústrias, programas de previdência social como as atuais, serviço militar obrigatório etc. Passaremos rapidamente por algumas delas.

Qualquer intervenção governamental no mecanismo de formação de preços cria um resultado ineficiente. Os preços não passam de sinais emitidos pelos agentes do mercado, para que o processo produtivo possa sempre funcionar. Respeitar as leis de oferta e demanda é fundamental, e governo nenhum deveria se meter nisso. É justamente através do foco das empresas no consumidor e suas preferências que o mundo evolui, respeitando os interesses particulares de cada um. O papel chave do governo aqui é apenas garantir a competição, mas os preços devem sempre ser livres. Isso inclui o câmbio de um país, seus produtos agrícolas, bens e serviços básicos, enfim, todas as mercadorias e serviços trocados no mercado, que não passa de um palco para estes escambos. Algumas pessoas não conseguem entender essa função tão básica dos mercados, onde indivíduos focam suas energias nas atividades que possuem vantagens comparativas para poderem depois consumir o restante das suas necessidades através da troca. No regime de mercado livre, o poder de facto reside nos consumidores.

Um tema que traz controvérsias é o do salário mínimo, apesar de estar claro na cabeça do liberal que ele apenas gera mais miséria. Para a maioria das pessoas, parece mais lógico entender que o governo deveria definir um mínimo aceitável de renda para o trabalhador, mas isso é apenas fruto de uma falta de conhecimento das leis básicas de economia. As pessoas possuem um raciocínio simplista de que basta definir o mínimo e melhoraremos o social, mas ocorre na prática justamente o oposto. Não se pode ir contra as leis do mercado, e quando o valor de qualquer salário é definido arbitrariamente, e não pelo encontro entre oferta e demanda, ele gera uma grande distorção no mercado de trabalho. As pessoas que defendem o salário mínimo deveriam passar mais tempo conversando com os milhões de desempregados, já que claramente estes estariam em uma situação melhor trabalhando, mesmo que por um salário abaixo do mínimo. Claro que incomoda profundamente termos salários tão baixos, mas a proposta socialista apenas agrava muito esta situação. Os salários aumentam pelos ganhos de produtividade através de investimentos do capital, assim como pela livre competição entre empregadores. O salário mínimo, definido acima do de mercado, cria apenas mais desemprego e informalidade.

Nessa mesma linha de raciocínio, todos os direitos adquiridos pelos trabalhadores sindicalizados não passam de benefícios destes às expensas de outros, que eventualmente aceitariam trabalhar com menos regalias. Os sindicatos monopolizam a oferta de empregos muitas vezes, interferindo na lei natural de mercado competitivo, e prejudicando os mais pobres ou independentes. Se bastasse uma caneta do governo para resolver as injustiças do mundo, não mais haveria miséria, fome, terremotos, violência ou problemas de saúde. Seria suficiente assinar uma lei que garantisse o mundo perfeito!

Os salários em uma sociedade livre são determinados unicamente pelo equilíbrio entre a oferta e demanda por trabalho, e como as escolhas são voluntárias e o Estado garante um ambiente de competição, não se pode caracterizar uma exploração do empregador. Os socialistas costumam achar que as empresas deveriam priorizar menos o lucro e garantir salários maiores para seus empregados, mas isso ocorre pois não entendem algumas coisas básicas. Em primeiro lugar, em um mercado competitivo, as empresas vão pagar salários atrelados ao rendimento do trabalhador, pois não vão se arriscar a perderem esta fonte de renda para o concorrente, que poderá a qualquer momento contratar seus funcionários. É fundamental entender aqui que os salários são frutos do valor gerado, e não podem ser garantidos sob qualquer circunstancia, já que uma empresa sem lucro é uma empresa rumo à bancarrota, que não pode empregar ninguém.

Em segundo lugar, precisam entender que o objetivo final de qualquer empresa é seu lucro, pois sem ele ela não poderá investir, crescer, produzir mais e permanecer no mercado competitivo. Portanto, o objetivo de maximização de lucros é não só característica básica para a formação de qualquer empresa como também desejável, já que permite melhorar os rendimentos de todos a ela ligados. Sem falar que o lucro representa o retorno do capital de risco investido, mais do que razoável, já que sem ele não haveria empregos para estes que se dizem explorados. Foi no ambiente competitivo americano que os empregados mais conquistaram vantagens reais, e isso não se deveu às canetadas do governo, mas ao próprio estímulo do capitalismo competitivo.

Mais um exemplo de intervenção indesejada está na Previdência Social. O governo define uma parcela da renda obtida pelo indivíduo a ser destinada compulsoriamente a um fundo de previdência. Isso inibe completamente a livre escolha da pessoa em dispor de seus frutos do trabalho como melhor lhe convém. Somente o argumento de que o povo é irresponsável e por isso não deve ser livre justifica um ato paternalista desses, mas mesmo assim nada explica um monopólio público na administração destas aposentadorias. Se defendemos a liberdade individual, temos que aceitar que os homens são livres também para cometerem seus próprios erros, pois somente assim se aprende.

Além disso, quem seria capaz de definir o que está ou não errado? Será que deveríamos utilizar a coerção para evitar que o indivíduo faça o que quiser, enquanto não causar mal a outro ser? Não existe sempre a possibilidade de que este indivíduo esteja certo e nós errados? Não temos infinitos exemplos disso em nossa história, desde quando Sócrates foi condenado ao veneno da cicuta, Jesus foi crucificado, e Galileu foi julgado pela Inquisição por estar certo, mas contrariar as crenças de seu tempo? Cada um deve ser livre para viver como quiser, com a condição de não agredir o próximo e de arcar com as conseqüências de suas atitudes. A diferença básica entre o liberal e o socialista é que o primeiro acredita na humildade e falta de conhecimento pleno dos homens, enquanto o segundo parte de uma visão totalmente arrogante, de que sabe o que é melhor e mais justo para a humanidade, e quer impor sua visão de mundo aos demais.

No caso das regulamentações, mesmo em monopólios naturais, é importante entender que é indesejável um excesso de intromissão governamental. Normalmente as pessoas superestimam o poder desses monopólios, pois o progresso é mais forte do que eles. As estradas-de-ferro já foram consideradas monopólios antigamente, e por isso criaram-se verdadeiras parafernálias burocráticas que amarraram as empresas neste setor. Porém, com o tempo e o progresso, vieram os caminhões e mais tarde os aviões. Como definir então o monopólio? Em questões de logística, rapidamente surgiram substitutos, mas como as empresas ferroviárias não tinham flexibilidade para reagir num mercado competitivo, ficaram para trás em termos de eficiência. O mesmo pode ser dito para vários outros negócios considerados monopólios naturais, como telefonia, energia etc. Os mercados costumam ser mais criativos e rápidos do que os burocratas que enchem os setores de amarras e regulamentação, criando espaço infindável para a corrupção e atraso.

Um outro exemplo de intervenção injusta e contra a liberdade individual seria na distribuição de renda. Muitas pessoas acreditam que o governo deveria possuir o papel de justiceiro. Tirar dos ricos e dar para os pobres passa a ser considerado “justiça social”. Podemos combater isso tanto pela teoria de justiça como pela prática. Vamos supor que três amigos caminham pela rua tranqüilamente, quando de repente um deles avista uma nota de US$ 100. Será que alguém iria defender a obrigatoriedade deste dividir seu ganho com os demais? É muito mais fácil para as pessoas aceitarem que o companheiro de trabalho ficou rico por acaso, ganhando na loteria. Mas se for por puro mérito e esforço pessoal, a inveja logo toma conta de suas emoções, criando esta vontade de lhe tirar os frutos de seu trabalho.

Logo surgem explicações falaciosas como o rudimentar argumento marxista de explorados contra exploradores. Em uma sociedade livre, é preciso respeitar as diferenças entre as pessoas, incluindo as opções distintas quanto ao trabalho, dinheiro ou lazer. O que não se deve fazer, ainda mais em nome da “justiça social”, é selecionar apenas do ponto de vista financeiro os ganhadores, e tomar-lhes boa parte de sua riqueza, muitas vezes conquistada exatamente pelo esforço, ousadia, riscos e abdicação de uma vida mais segura e pacata.

Por isso mesmo que os liberais não aceitam a idéia de impostos escalonados, dependentes da renda de cada um. Os impostos precisam ser um percentual fixo para todos, já que pagam pelos mesmos serviços, e de preferência bem baixo, já que o Estado é praticamente mínimo nesta sociedade. A defesa deste mesmo ponto teórico pelo lado da prática é que quanto mais imposto tiver, menos riqueza será gerada para todos, já que ninguém trabalha duro para sustentar burocrata do governo, mas sim visando a seus interesses particulares. Sem falar que esses impostos não são na verdade direcionados para os mais pobres, mas sim se perdem no mar de corrupção inerente ao modelo de Estado grande. “Eu considero difícil, como um liberal, ver qualquer justificação para taxação gradativa somente para redistribuir renda”, disse Milton Friedman.

Em resumo, as grandes ações governamentais adotadas nas últimas décadas falharam. A mão invisível tem sido muito mais eficaz em promover o progresso. O defeito central dessas medidas estatais, segundo Friedman, é que elas buscam forçar as pessoas a agirem contra seus interesses imediatos na tentativa de promover o suposto interesse geral. Essas medidas acabam então enfrentando uma das forças mais criativas conhecidas pelos homens, que é a tentativa de milhões de indivíduos promoverem seus próprios interesses, viver suas vidas conforme seus próprios valores. Seria essa a principal razão dos efeitos dessas medidas estatais terem sido opostos ao inicialmente intencionado. É também uma das maiores vantagens de uma sociedade livre, e explica porque a regulação governamental não deve estrangulá-la.

A perversidade da concentração de poder acaba ofuscada pelas boas intenções muitas vezes presentes em sua criação. É preciso persuadir os concidadãos de que as instituições mais livres são rotas mais seguras para os fins que eles buscam, e não a força coercitiva do Estado.
Por: Rodrigo Constantino  Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

domingo, 25 de janeiro de 2015

A MASCARA DA INVEJA


“A inveja é a úlcera da alma.” (Sócrates)

O escritor argentino Gonzalo Otálora causou polêmica ao defender a cobrança de impostos das pessoas consideradas mais belas para compensar o “sofrimento” daqueles que supostamente foram menos favorecidos pela natureza. O escritor disse que sua iniciativa tem o objetivo de provocar um debate sobre o culto à beleza. Com um megafone, ele foi à frente da Casa Rosada reclamar os “direitos” dos feios. Esperava contar com o apoio do então presidente Kirchner, a quem classifica como “pouco atraente”. Otálora alega que os deboches sofridos na infância prejudicaram sua auto-estima e atrapalharam na conquista de melhores empregos. Em sua opinião, um dos assuntos que deveriam ser debatidos é a representação de “todos os tipos de constituição física” nos desfiles de moda. A inveja é alçada ao patamar de justiça, e a mediocridade é enaltecida enquanto o superior é condenado por suas virtudes, e não vícios.

Ainda que as demandas do argentino feioso pareçam absurdas – e são, elas no fundo representam apenas os ideais igualitários levados ao extremo de sua coerência. No fundo, um igualitário deveria pregar a igualdade plena, abolindo qualquer tipo de diferença entre os indivíduos. Aquele igualitário que prega uma distribuição de riqueza igual entre os indivíduosprecisa aplaudir o apelo do argentino sob pena de ser acusado de materialista, caso não o faça. Ora, ficaria evidente demais que ele só pensa em dinheiro!

Por que todos deveriam ter uma renda igual, mas rostos diferentes, podendo se destacar pela beleza num desfile? Onde estaria a igualdade? Na verdade, os igualitários, ou socialistas, pregam a igualdade das contas bancárias, assumindo involuntariamente que focam apenas nos bens materiais. Normalmente, são os primeiros a acusar os capitalistas de materialistas, mas só querem saber de dinheiro. Talvez porque demandar igualdade em outros campos tornaria o verdadeiro motivador de suas idéias aparente demais. E este motivador é conhecido: a inveja.

Na década de 1960, os igualitários ganharam força. O Partido Trabalhista inglês, de esquerda, demandava uma sociedade de iguais “absolutos”. Uma novela satírica iria explorar esta “paixão anti-social”, como dizia Mill, no campo do cotidiano. O escritor inglês L. P. Hartley era o autor, e a obra chamava-se Facial Justice, comentada no excelente livro de Helmut Schoeck sobre o tema, intitulado Envy: a Theory of Social Behaviour. Na sátira, Hartley chega à conclusão lógica através das tendências do século passado, e expressada por Schoeck no seu livro, sobre a estranha tentativa de legitimar o invejoso e sua inveja, de forma que qualquer um capaz de despertar inveja é tratado como anti-social ou criminoso.

Em vez de o invejoso ter vergonha de sua inveja, é o invejado que deve desculpas por ser melhor. Há uma total inversão dos valores, explicada apenas por uma completa aniquilação do indivíduo em nome da igualdade coletivista. Os seres humanos passam a ser tratados como insetos gregários, e o indivíduo que ousa se destacar passa a ser tratado como um inimigo da “sociedade”. O rico, ainda que tenha criado sua riqueza de forma honesta através de trocas voluntárias, é execrado pelos invejosos. O sucesso individual é um pecado!

A heroína da novela de Hartley chama-se Jael, uma mulher que, desde o começo, não se conforma com a visão igualitária, recusando-se a aceitar que pessoas mais bonitas ou inteligentes deveriam se anular como indivíduos por causa da inveja alheia. A novela se passa no futuro, depois de uma Terceira Guerra Mundial, e as pessoas eram divididas de acordo com o grau de aparência. A meta era obter uma igualdade facial, pois a igualdade material não era suficiente para acabar com a inveja: alguns sempre terão algo que os outros não têm e invejam.*

Havia um Ministério da Igualdade Facial, e a extirpação dos rostos tipo Alfa, os mais belos, não bastava, pois os rostos tipo Beta ainda estavam em patamar superior aos do tipo Gama. Enquanto todos não tivessem a mesma aparência, não haveria justiça. Ninguém poderia ser desprivilegiado facialmente. Hartley combate a utopia dos igualitários, mostrando que a igualdade financeira jamais iria abolir a inveja na sociedade. Durante sua vida, ele demonstrou aversão a todas as formas de coerção estatal.

No livro Teoria da Personalidade, o psiquiatra G. J. Ballone diz: “Todas as tendências ideológicas que enfatizam a igualdade dos seres humanos, num total descaso para com as diferenças funcionais, ecoam aos ouvidos despreparados com eloqüente beleza retórica, romântica, ética e moral. Transportando tais ideais do papel para a prática, sucumbem diante de incontáveis evidências em contrário: não resistem à constatação das flagrantes e involuntárias diferenças entre os indivíduos, bem como não explicam a indomável característica humana que é a perene vocação das pessoas em querer destacar-se dos demais”.

O sonho com um mundo de iguais, como se homens fossem cupins, denota um escancarado complexo de inferioridade. As diferenças agridem este indivíduo, pois ele é incapaz de aceitá-las, provavelmente por detestar ver no espelho aquilo que o diferencia dos demais. A inveja toma conta de seus sentimentos, e a destruição dessas diferenças passa a ser sua meta. Como ele não suporta as conquistas alheias, ele demanda a mediocridade geral. Os coletivistas odeiam admitir que indivíduos possam fazer a diferença. A riqueza precisa ser explicada como um fatalismo coletivista, os méritos individuais precisam ser derrubados, as escolhas individuais cedem lugar ao determinismo, tudo para anular o indivíduo enquanto indivíduo, substituindo-o pelo coletivo.

Em resumo, o que está por trás do igualitarismo é apenas a inveja mesquinha. O socialismo não passa da idealização da inveja. O foco desses igualitários costuma ser somente o material por dois aspectos: é inviável pregar de fato a igualdade facial, por exemplo; e fazê-lo iria rasgar de vez a máscara da hipocrisia que cobre seus apelos invejosos do mais “nobre” altruísmo. Mas a lamentável verdade é que igualitários não suportam as diferenças. E como os indivíduos, felizmente, são diferentes, parece evidente que existirão vários graus distintos de beleza, inteligência, altura, velocidade, talento musical e sim, também renda.

Para Bill Gates ficar bilionário, ele não teve que tirar nada de ninguém. Foram os consumidores que, voluntariamente, julgaram os produtos de sua empresa valiosos, pois criavam valor para eles. Logo, não há motivo algum para que o governo meta suas garras na fortuna de Gates de forma compulsória, em nome da “igualdade”. Ele tem o direito de ser bem mais rico que os outros. Aqueles que não aceitam isso, desejando um imposto extorsivo sobre sua fortuna, podem tentar mascarar seu motivador com a desculpa que quiserem, mas isso não mudará o fato de que, por trás dessa máscara, reside somente a abominável inveja daqueles que não são capazes de admirar o sucesso alheio.

* No filme Círculo de Fogo, que conta a história de um soldado russo que precisa enfrentar umsniper enviado pelos nazistas especialmente para matá-lo, isso fica bem evidente quando um companheiro político, interpretado por Joseph Fiennes, acaba traindo Vasily Zaitsev, o soldado russo interpretado por Jude Law. Sua constatação, quando realiza sua traição, expressa a essência da mensagem. Ele descobre que sempre haverá algo no vizinho que desejamos, mas não possuímos, independente da igualdade material. No caso do filme, trata-se do amor de uma mulher, disputada por ambos. A inveja é uma característica da pessoa, não fruto das desigualdades em si, que sempre existirão. 
Por: Rodrigo Constantino Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

A LOUCURA É CONTAGIOSA

Os terroristas franceses já devem estar com as suas 72 virgens no paraíso —e o leitor, no conforto do seu lar, sente que existe uma pergunta lógica, porém desconfortável, que ocupa espaço no seu crânio ecumênico. A saber: se o jornal satírico "Charlie Hebdo" nunca tivesse publicado cartuns ofensivos para a religião muçulmana, será que o massacre teria ocorrido?

Melhor ainda: por que motivo insistimos em "blasfemar" contra a fé dos radicais? Ganhamos alguma coisa com isso?

Para o leitor benemérito, se o Ocidente apagar o mundo islâmico dos seus radares, obedecendo caninamente aos preceitos da sharia, o mundo islâmico também apagará o Ocidente das suas armas. A Deus o que é de Deus, a César o que é de César –e a Alá o que é de Alá. Cada um no seu canto. Em paz e sossego.

Existem várias formas de lidar com essas perguntas ingênuas. A mais óbvia seria lembrar que o terrorismo islamita não precisa de nenhum pretexto para atacar um "modo de vida" que abomina no seu todo. Se não fossem os cartuns, seria outra coisa qualquer: aos olhos do fanatismo, os "infiéis" não pisam o risco apenas quando usam o lápis.

E, claro, silenciar a liberdade de expressão seria um suicídio civilizacional –e uma vitória para os assassinos.

Mas existe outra forma de responder às inquietações do leitor —e a história do século 20 continua sendo a melhor escola.

Daqui a uns dias, passarão 50 anos desde a morte de Winston Churchill. E um livro recente tem ocupado os meus dias: "The Literary Churchill", de Jonathan Rose (Yale University Press, US$ 25, 528 págs.), uma biografia do velho Winston lançada em 2014 que procura explicar o seu percurso político por meio dos textos que ele leu, escreveu e, naturalmente, representou como grande ator que era.

Um capítulo da obra, porém, merece atenção especial à luz do terrorismo na França: na década de 1930, com a memória da Primeira Guerra Mundial ainda fresca, a elite política (e conservadora) britânica tentava desesperadamente não embarcar em novo conflito contra a Alemanha.

E Lord Halifax, secretário de Relações Exteriores, era apenas um dos rostos dos "appeasers" (pacifistas, em português) que acreditou na possibilidade de manter a fera na sua jaula.

Halifax conheceu pessoalmente Hitler em 1937 e notou que o Führer nutria um ódio insano por dois temas em especial: o comunismo soviético (lógico) e, atenção leitor, a liberdade de expressão da imprensa britânica (ilógico?).

Para Hitler, e para o ministro da Propaganda alemã Goebbels, a imprensa britânica era o grande obstáculo para a paz. Por quê?

Ora, porque bastava ler a prosa antigermânica do "News Chronicle" ou do "Manchester Guardian" para concluir que os jornalistas britânicos não respeitavam a figura sagrada de Hitler, o "profeta" da raça ariana.

E quem diz "ler", diz "ver": no "Daily Herald" ou no "Evening Standard", Hitler não apenas era severamente criticado (por Churchill, por exemplo). Ele era igualmente ridicularizado nos cartuns de Will Dyson ou David Low (os Wolinskis da época).

Halifax, que nunca se notabilizou pela coragem, regressou à Inglaterra com a mesma ideia que o leitor ecumênico tem na cabeça: se ao menos a imprensa se comportasse"¦ Quem sabe? Talvez Hitler ficasse sossegadamente em Berlim, desenhando nas horas livres e constituindo família com Eva Braun.

Aliás, Halifax não ficou nas ideias: ele convenceu mesmo David Low a moderar os seus desenhos, coisa que o artista fez, mas só até Hitler invadir a Áustria em 1938.

Depois disso, regressaram os cartuns antinazistas (que os "appeasers" continuavam a considerar "gratuitos" e de "mau gosto").

Curioso: Hitler devorava a Europa, pedaço a pedaço, em busca do seu "espaço vital". Mas as avestruzes britânicas acreditavam que tudo seria diferente se o lunático Adolfo tivesse sido tratado com "respeito" pelos jornais.

Churchill nunca mostrou respeito. E, quando finalmente assumiu o governo, em 1940, tratou Hitler com a dureza de sempre. A besta nazista foi derrotada em 1945.

Existe uma moral na história dessa história?

Existe, leitor ecumênico: não somos nós os culpados pela loucura dos outros. Imaginar o contrário, por medo ou ignorância, é simplesmente partilhar a loucura em que eles vivem.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

sábado, 24 de janeiro de 2015

"RAQQA, AQUI"

Enquanto, na França, dezenas de milhares saíam às ruas para dizer “Eu sou Charlie”, professores universitários brasileiros saíam de suas tocas para celebrar o terror. Não começou agora: é uma reedição das sentenças asquerosas pronunciadas na esteira do 11 de setembro de 2001. São sinais notáveis da contaminação tóxica de nossa vida intelectual e, especificamente, da célere conversão de departamentos universitários em latas de lixo do pensamento.

A mensagem dos franceses foi um tributo à vida e à civilização. “Eu sou Charlie” não significa que concordo com qualquer uma das sátiras do Charlie Hebdo.

Significa que concordo com a premissa nuclear das sociedades abertas: a liberdade de expressão é, sempre, a liberdade daquele com quem não concordo.

Isso, porém, nunca entrará na cabeça de nossos mensageiros da morte.

Seu discurso padrão começa com uma condenação ritual do ato terrorista: “É claro que não estou defendendo os ataques”, esclareceu de antemão uma dessas tristes figuras, antes de entregar-se à defesa, na forma previsível da condenação das vítimas “justiçadas”.

“Não se deve fazer humor com o outro”, sentenciou pateticamente Arlene Clemesha, que ostenta o título de professora de História Árabe na USP, para concluir com uma adesão irrestrita à lógica do terror jihadista. É preciso, disse, “tentar entender” o significado do ataque: “um atentado contra um jornal que publicou charges retratando o profeta Maomé, coisa que é considerada muito ofensiva para qualquer muçulmano”.

Clemesha é só uma, numa pequena multidão acadêmica consagrada à delinquência intelectual. No mesmo dia trágico, Williams Gonçalves, professor de Relações Internacionais na Uerj, esqueceu-se do cínico aceno prévio para expor logo sua aguda visão sobre o “controle social da mídia” e, de passagem, candidatar-se a porta-voz oficial do Estado Islâmico: “Quem faz uma provocação dessas”, explicou, referindo-se aos cartunistas assassinados, “não poderia esperar coisa muito diferente”.

O curioso, nas Clemeshas e nos Gonçalves, é que eles rezam pela mesma cartilha que Marine Le Pen, apenas com sinal invertido. O nome dessa cartilha é “choque de civilizações”.

Na onda de islamofobia que varre a França, surfam dois lançamentos recentes. O livro “Le suicide français”, do jornalista ultraconservador Éric Zemmour, alerta contra a destruição da cultura francesa por vagas sucessivas de imigração muçulmana.

O romance “Soumission”, de Michel Houellebecq, imagina a França governada por um partido islâmico no ano agourento de 2022. Segundo a gramática do “choque de civilizações”, o Islã não cabe na França: um muçulmano só pode ser um francês se, antes, renunciar à sua fé.

Os nossos Gonçalves e Clemeshas estão de acordo com isso –mas preferem que, para acolher os muçulmanos, a França renuncie a suas leis e a seus valores, entre os quais a laicidade do Estado. E, no entanto, apesar de Zemmour, Houellebecq, Clemesha, Gonçalves e Le Pen, milhares de muçulmanos franceses exibiram nas ruas os cartazes com a inscrição “Eu sou Charlie”…

Karl Marx escreveu cartas elogiosas a Abraham Lincoln. Leon Trostsky contou com a colaboração inestimável do filósofo liberal John Dewey para demolir as falsificações dos Processos de Moscou. Entre um evento e outro, o socialista August Bebel qualificou o antissemitismo como “o socialismo dos idiotas”.

Em outros lugares e outros tempos, o pensamento de esquerda confundiu-se com o cosmopolitismo e produziu as mais comoventes defesas das liberdades civis. No Brasil de hoje, com honoráveis exceções, reduziu-se a um pátio fétido habitado por “black blocs” iletrados, mas fanaticamente antiamericanos e antissemitas.

“Não se deve fazer humor com o outro”, está escrito na lápide definitiva que cobre o túmulo do humor. Raqqa, a sede do califado, é aqui. “Eu sou Charlie”. Por: Demétrio Magnoli

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A MENTALIDADE DA ESQUERDA E SEUS ESTRAGOS SOBRE OS MAIS POBRES


Quando adolescentes criminosos e assassinos são rotulados de "jovens problemáticos" por pessoas que se identificam como sendo de esquerda, isso nos diz mais sobre a mentalidade da própria esquerda do que sobre esses criminosos violentos propriamente ditos.


Raramente há alguma evidência de que os criminosos sejam meramente 'problemáticos', e frequentemente abundam evidências de que eles na realidade estão apenas se divertindo enormemente ao cometer seus atos criminosos sobre terceiros.

Por que então essa desculpa já arraigada? Por que rotular adolescentes criminosos de "jovens problemáticos" e supor que maníacos homicidas são meros "doentes"?

Pelo menos desde o século XVIII a esquerda vem se esforçando para não lidar com o simples fato de que a maldade existe — que algumas pessoas simplesmente optam por fazer coisas que elas sabem de antemão serem erradas. Todo o tipo de desculpa, desde pobreza até adolescência infeliz, é utilizada pela esquerda para explicar, justificar e isentar a maldade. 

Todas as pessoas que saíram da pobreza ou que tiveram uma infância infeliz, ou ambas, e que se tornaram seres humanos decentes e produtivos, sem jamais praticarem atos violentos, são ignoradas pela esquerda, que também ignora o fato de que a maldade independe da renda e das origens, uma vez que ela também é cometida por gente criada na riqueza e no privilégio, como reis, conquistadores e escravocratas.

Logo, por que a existência do mal sempre foi um conceito tão difícil para ser aceito por muitos da esquerda? O objetivo básico da esquerda sempre foi o de mudar as condições externas da humanidade. Mas e se o problema for interno? E se o verdadeiro problema for a perversidade dos seres humanos?

Rousseau negou esta hipótese no século XVIII e a esquerda a vem negando desde então. Por quê? Autopreservação. Afinal, se as coisas que a esquerda quer controlar — instituições e políticas governamentais — não são os fatores definidores dos problemas do mundo, então qual função restaria à esquerda?

E se fatores como a família, a cultura e as tradições exercerem mais influência positiva do que as novas e iluminadas "soluções" governamentais que a esquerda está constantemente inventando? E se a busca pelas "raízes da criminalidade" não for nem minimamente tão eficaz quanto retirar criminosos de circulação? As estatísticas ao redor do mundo mostram que as taxas de homicídio estavam em declínio durante as décadas em que vigoravam as velhas e tradicionais práticas tão desdenhadas pela intelligentsia esquerdista. Já quando as novas e brilhantes ideias da esquerda ganharam influência, no final da década de 1960, a criminalidade e violência urbana dispararam.

O que houve quando ideias antiquadas sobre sexo foram substituídas, ainda na década de 1960, pelas novas e brilhantes ideias da esquerda, as quais foram introduzidas nas escolas sob a alcunha de "educação sexual" e que supostamente deveriam reduzir a gravidez na adolescência e as doenças sexualmente transmissíveis? Tanto a gravidez na adolescência quanto as doenças sexualmente transmissíveis vinham caindo havia anos. No entanto, esta tendência foi subitamente revertida na década de 1960 e atingiu recordes históricos.

Desarmamento

Uma das mais antigas e mais dogmáticas cruzadas da esquerda é aquela em prol do desarmamento. Aqui, novamente, o enfoque está nas questões externas — no caso, nas armas.

Se as armas de fato fossem o problema, então leis de controle de armas poderiam ser a resposta. Mas se o verdadeiro problema são aquelas pessoas malvadas que não se importam com a vida de outras pessoas — e nem muito menos para as leis —, então o desarmamento, na prática, fará apenas com que pessoas decentes e cumpridoras da lei se tornem ainda mais vulneráveis perante pessoas perversas.

Dado que a crença no desarmamento sempre foi uma grande característica da esquerda desde o século XVIII, em todos os países ao redor do mundo, seria de se imaginar que, a esta altura, já haveria incontáveis evidências dando sustentação a esta crença. No entanto, evidências de que o desarmamento de fato reduz as taxas de criminalidade em geral, ou as taxas de homicídio em particular, raramente são mencionadas por defensores do controle de armas. Simplesmente se pressupõe, de passagem, que é óbvio que leis mais rigorosas de controle de armas irão reduzir os homicídios e a criminalidade.

No entanto, a crua realidade não dá sustento a esta pressuposição. É por isso que são os críticos do desarmamento que se baseiam em evidências empíricas, todas elas magnificamente coletadas nos livros "More Guns, Less Crime", de John Lott, e "Guns and Violence", de Joyce Lee Malcolm. [Veja nossos artigos sobre desarmamento]. Mas que importância têm os fatos perante a visão inebriante e emotiva da esquerda?

Pobres

A esquerda sempre se arrogou a função de protetora dos "pobres". Esta é uma de suas principais reivindicações morais para adquirir poder político. Porém, qual a real veracidade desta alegação?

É verdade que líderes de esquerda em vários países adotaram políticas assistencialistas que permitem aos pobres viverem mais confortavelmente em sua pobreza. Mas isso nos leva a uma questão fundamental: quem realmente são "os pobres"?

Se você se baseia em uma definição de pobreza inventada por burocratas, como aquela que inclui um número de indivíduos ou de famílias abaixo de algum nível de renda arbitrariamente estipulado pelo governo, então realmente é fácil conseguir estatísticas sobre "os pobres". Elas são rotineiramente divulgadas pela mídia e gostosamente adotadas por políticos. Mas será que tais estatísticas têm muita relação com a realidade?

Houve um tempo em que "pobreza" tinha um significado concreto — uma quantidade insuficiente de comida para se manter vivo, ou roupas e abrigos incapazes de proteger um indivíduo dos elementos da natureza. Hoje, "pobreza" significa qualquer coisa que os burocratas do governo, que inventam os critérios estatísticos, queiram que signifique. E eles têm todos os incentivos para definir pobreza de uma maneira que abranja um número suficientemente alto de pessoas, pois isso justifica mais gastos assistencialistas e, consequentemente, mais votos e mais poder político.

Em vários países do mundo, não são poucas as pessoas que são consideradas pobres, mas que, além de terem acesso a vários bens de consumo que outrora seriam considerados luxuosos — como televisão, computador e carro —, são também muito bem alimentadas (em alguns casos, até mesmo apresentam sobrepeso). No entanto, uma definição arbitrária de palavras e números concede a essas pessoas livre acesso ao dinheiro dos pagadores de impostos.

Esse tipo de "pobreza" pode facilmente vir a se tornar um modo de vida, não apenas para os "pobres" de hoje, mas também para seus filhos e netos.

Mesmo quando esses indivíduos classificados como "pobres" têm o potencial de se tornar membros produtivos da sociedade, a simples ameaça de perder os benefícios assistencialistas caso consigam um emprego funciona como uma espécie de "imposto implícito" sobre sua renda futura, imposto este que, em termos relativos, seria maior do que o imposto explícito que incide sobre o aumento da renda de um milionário.

Em suma, as políticas assistencialistas defendidas pela esquerda tornam a pobreza mais confortável ao mesmo tempo em que penalizam tentativas de se sair da pobreza. Exceto para aqueles que acreditam que algumas pessoas nascem predestinadas a serem pobres para sempre, o fato é que a agenda da esquerda é um desserviço para os mais pobres, bem como para toda a sociedade. Ao contrário do que outros dizem, a enorme quantia de dinheiro desperdiçada no aparato burocrático necessário para gerenciar todas as políticas sociais não é nem de longe o pior problema dessa questão.

Se o objetivo é retirar pessoas da pobreza, há vários exemplos encorajadores de indivíduos e de grupos que lograram este feito, e nos mais diferentes países do mundo.

Milhões de "chineses expatriados" emigraram da China completamente destituídos e quase sempre iletrados. E isso ocorreu ao longo dos séculos. Independentemente de para onde tenham ido — se para outros países do Sudeste Asiático ou para os EUA —, eles sempre começaram lá embaixo, aceitando empregos duros, sujos e frequentemente perigosos.

Mesmo sendo frequentemente mal pagos, estes chineses expatriados sempre trabalhavam duro e poupavam o pouco que recebiam. Era uma questão cultural. Vários deles conseguiram, com sua poupança, abrir pequenos empreendimentos comerciais. Por trabalharem longas horas e viverem frugalmente, eles foram capazes de transformar pequenos negócios em empreendimentos maiores e mais prósperos. Eles se esforçaram para dar a seus filhos a educação que eles próprios não conseguiram obter.

Já em 1994, os 57 milhões de chineses expatriados haviam criado praticamente a mesma riqueza que o bilhão de pessoas que viviam na China.

Variações deste padrão social podem ser encontradas nas histórias de judeus, armênios, libaneses e outros emigrantes que se estabeleceram em vários países ao redor do mundo — inicialmente pobres, foram crescendo ao longo de gerações até atingirem a prosperidade. Raramente recorreram ao governo, e quase sempre evitaram a política ao longo de sua ascensão social.

Tais grupos se concentraram em desenvolver aquilo que economistas chamam de "capital humano" — seus talentos, habilidades, aptidões e disciplina. Seus êxitos frequentemente ocorreram em decorrência daquela palavra que a esquerda raramente utiliza em seus círculos refinados: "trabalho".

Em praticamente todos os grupos sociais e étnicos, existem indivíduos que seguem padrões similares para ascenderem da pobreza à prosperidade. Mas o número desses indivíduos em cada grupo faz uma grande diferença para a prosperidade ou a pobreza destes grupos como um todo.

A agenda da esquerda — promover a inveja e o ressentimento ao mesmo tempo em que vocifera exigindo ter "direitos" sobre o que outras pessoas produziram — é um padrão que tem se difundido em vários países ao redor do mundo.

Esta agenda raramente teve êxito em retirar os pobres da pobreza. O que ela de fato logrou foi elevar a esquerda a cargos de poder e a posições de autoexaltação — ao mesmo tempo em que promovem políticas com resultados socialmente contraproducentes.

A arrogância

É difícil encontrar um esquerdista que ainda não tenha inventado uma nova "solução" para os "problemas" da sociedade. Com frequência, tem-se a impressão de que existem mais soluções do que problemas. A realidade, no entanto, é que vários dos problemas de hoje são resultado das soluções de ontem.

No cerne da visão de mundo da esquerda jaz a tácita presunção de que pessoas imbuídas de elevados ideais e princípios morais — como os esquerdistas — sabem como tomar decisões para outras pessoas de forma melhor e mais eficaz do que estas próprias pessoas.

Esta presunção arbitrária e infundada pode ser encontrada em praticamente todas as políticas e regulamentações criadas ao longo dos anos, desde renovação urbana até serviços de saúde. Pessoas que nunca gerenciaram nem sequer uma pequena farmácia — muito menos um hospital — saem por aí jubilosamente prescrevendo regras sobre como deve funcionar o sistema de saúde, impondo arbitrariamente seus caprichos e especificidades a médicos, hospitais, empresas farmacêuticas e planos de saúde.

Uma das várias cruzadas internacionais empreendidas por intrometidos de esquerda é a tentativa de limitar as horas de trabalho de pessoas de outros países — especialmente países pobres — em empresas operadas por corporações multinacionais. Um grupo de monitoramento internacional se autoatribuiu a tarefa de garantir que as pessoas na China não trabalhem mais do que as legalmente determinadas 49 horas por semana.

Por que grupos de monitoramento internacional, liderados por americanos e europeus abastados, imaginam ser capazes de saber o que é melhor para pessoas que são muito mais pobres do que eles, e que possuem muito menos opções, é um daqueles insondáveis mistérios que permeiam a intelligentsia.

Na condição de alguém que saiu de casa aos 17 anos de idade, sem ter se formado no colégio, sem experiência no mercado de trabalho, e sem habilidades específicas, passei vários anos de minha vida aprendendo da maneira mais difícil o que realmente é a pobreza. Um dos momentos mais felizes durante aqueles anos ocorreu durante um breve período em que trabalhei 60 horas por semana — 40 horas entregando telegramas durante o dia e 20 horas trabalhando meio período em uma oficina de usinagem à noite.

Por que eu estava feliz? Porque antes de encontrar estes dois empregos eu havia gasto semanas procurando desesperadamente qualquer emprego. Minha escassa poupança já havia evaporado e chegado literalmente ao meu último dólar quando finalmente encontrei o emprego de meio período à noite em uma oficina de usinagem.

Passei vários dias tendo de caminhar vários quilômetros da pensão em que morava no Harlem até a oficina de usinagem, que ficava imediatamente abaixo da Ponte do Brooklyn, e tudo para poupar este último dólar para poder comprar pão até finalmente chegar o dia de receber meu primeiro salário.

Quando então encontrei um emprego de período integral — entregar telegramas durante o dia —, o salário somado dos dois empregos era mais do que tudo que eu já havia ganhado antes. Foi só então que pude pagar a pensão, comer e utilizar o metrô para ir ao trabalho e voltar.

Além de tudo isso, ainda conseguia poupar um pouco para eventuais momentos difíceis. Ter me tornado capaz de fazer isso era, para mim, o mais próximo do nirvana a que já havia chegado. Para a minha sorte, naquela época não havia nenhum intrometido de esquerda querendo me impedir de trabalhar mais horas do que eu gostaria.

Havia um salário mínimo, mas, como o valor deste havia sido estipulado em 1938, e estávamos em 1949, seu valor já havia se tornado insignificante em decorrência da inflação. Por causa desta ausência de um salário mínimo efetivo, o desemprego entre adolescentes negros no ano de 1949, que foi um ano de recessão, era apenas uma fração do que viria a ser até mesmo durante os anos mais prósperos desde a década de 1960 até hoje.

À medida que os moralmente ungidos passaram a elevar o salário mínimo, a partir da década de 1950, o desemprego entre os adolescentes negros disparou. Hoje, já estamos tão acostumados a taxas tragicamente altas de desemprego neste grupo, que várias pessoas não fazem a mais mínima ideia de que as coisas nem sempre foram assim — e muito menos que foram as políticas da esquerda intrometida que geraram tais consequências catastróficas.

Não sei o que teria sido de mim caso tais políticas já estivessem em efeito em 1949 e houvessem me impedido de encontrar um emprego antes de meu último dólar ser gasto.

Minha experiência pessoal é apenas um pequeno exemplo do que ocorre quando suas opções são bastante limitadas. Os prósperos intrometidos da esquerda estão constantemente promovendo políticas — como encargos sociais e trabalhistas — que reduzem ainda mais as poucas opções existentes para os pobres. Quando não reduzem empregos, tais políticas afetam sobremaneira seus salários.

Parece que simplesmente não ocorre aos intrometidos que as corporações multinacionais estão expandindo as opções para os pobres dos países do terceiro mundo, ao passo que as políticas defendidas pela esquerda estão reduzindo suas opções.

Os salários pagos pelas multinacionais nos países pobres normalmente são muito mais altos do que os salários pagos pelos empregadores locais. Ademais, a experiência que os empregados ganham ao trabalhar em empresas modernas transforma-os em mão-de-obra mais valiosa, e fez com que na China, por exemplo, os salários passassem a subir a porcentagens de dois dígitos anualmente.

Nada é mais fácil para pessoas diplomadas do que imaginar que elas sabem mais do que os pobres sobre o que é melhor para eles próprios. Porém, como alguém certa vez disse, "um tolo pode vestir seu casaco com mais facilidade do que se pedisse a ajuda de um homem sábio para fazer isso por ele".
Por: Thomas Sowell , um dos mais influentes economistas americanos, é membro sênior da Hoover Institution da Universidade de Stanford.  Seu website: www.tsowell.com.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

O REBANHO BOVINO


“Assim como uma sociedade adequada é governada por leis, não por homens, uma associação adequada é unida por idéias, não por homens, e seus membros são leais às idéias, não ao grupo.” (Ayn Rand)

Existe uma profunda diferença entre o indivíduo independente que busca seu conhecimento através da razão e do questionamento honesto e aquele que abdica desta ferramenta para aderir a um grupo que lhe fornece respostas prontas, liberando-o do exercício da reflexão. O primeiro irá sempre confrontar os fatos com suas teorias prévias, e respeitar a lógica para chegar às suas conclusões. O segundo irá repetir “verdades” já dadas pelo grupo, e o questionamento imparcial lhe será extremamente doloroso.

Em seu livro Philosophy: Who Needs It?, a novelista Ayn Rand trata deste tema, lembrando que aqueles que buscam um grupo, neste sentido acima, estão atrás da proteção contra os “de fora”, eximindo-se da necessidade do pensar por conta própria. O que o grupo demanda em troca é a obediência às suas regras, as quais o sujeito está ansioso para atender, justamente porque elas representam esta “proteção”. E quem cria estas regras? Teoricamente, a tradição, mas na prática são os líderes do grupo. Na mente do novo membro do grupo, é por aqueles que conhecem os mistérios que ele não precisa saber.

O mandamento básico de todos estes tipos de grupos, e que precede quaisquer outras regras, é a lealdade ao grupo. Não a lealdade às idéias, mas ao grupo. Como exemplos de grupos formados com base nestas características estão o racismo e a xenofobia, onde o medo ou o ódio aos outsiders são alimentados em detrimento da razão. O estrangeiro passa a ser um inimigo, independentemente de suas crenças e valores, apenas por ser um estrangeiro. A cor da pele, e não os valores individuais, passa a ser critério de aceitação pelos membros do grupo.

Ayn Rand chama este tipo de grupo coletivista de tribalismo, e afirma que este é um produto do medo, enquanto o medo é, por sua vez, a emoção dominante de qualquer pessoa, cultura ou sociedade que rejeita a maior ferramenta de sobrevivência humana: a razão. Ela diz ainda que owelfare state dividiu o país em grupos de pressão, cada um lutando por privilégios especiais à custa dos demais, de forma que o indivíduo não atrelado a qualquer grupo vira presa desses predadores.

Quando os homens estão unidos por idéias, ou seja, por princípios claros, não há espaço para favores políticos ou poder arbitrário. Os princípios servem como um critério objetivo para determinar as ações e julgar os homens, sejam os líderes ou outros membros. Em contrapartida, quando se trata de um grupo unido feito um rebanho bovino, o seu membro será sempre tratado com complacência, enquanto os “de fora” serão duramente condenados, sem que tenham cometido qualquer falta. O uso de dois pesos e duas medidas é característica comum a estes grupos, e vale tudo para salvar a pele de algum membro do rebanho, por mais criminoso que tenha sido seu ato.

Investigar, como disse Humboldt, “e a convicção que emerge do livre investigar é espontaneidade; crença, por outro lado, é dependência de algum poder externo”. É por isso que “existe mais autoconfiança e firmeza no pensador que investiga e mais fraqueza e indolência no crente que confia”. O entusiasmo desses crentes é inteiramente dependente da supressão de toda a atividade da razão. “A dúvida é tortura apenas para o crente, mas não para o homem que segue os resultados de sua própria investigação”.

Os grupos descritos por Ayn Rand buscam crentes, não indivíduos livres que pensam por conta própria e questionam os dogmas do grupo. Por isso tanto ódio aos indivíduos que parecem não necessitar do rebanho e sentem-se livres para questionar suas crenças. Na ausência de pilares racionais que sustentem suas idéias, os membros deste grupo precisam desesperadamente de mais adeptos, na esperança de que a quantidade possa suprir a falta de qualidade. Sentem-se seguros apenas em bando. O argumentum ad populum é o único conhecido por seus membros. Quem precisa da lógica quando “todos pensam igual”? *

Gustave Le Bon, que estudou a psicologia das massas, concluiu que a estupidez é somada nestes grupos, não a inteligência. A razão não exerce influência alguma nesses rebanhos. E uma das características mais comuns das crenças é a intolerância. “Quanto mais forte a crença, maior a intolerância”, sendo crença aqui entendida como o oposto de convicção real. Homens dominados por tais sentimentos não são capazes de tolerar aqueles que não aceitam suas crenças. Os indivíduos independentes são sempre os maiores inimigos dos rebanhos. E o maior antídoto contra rebanhos bovinos sempre será aquilo que eles mais abominam: a razão humana!

* Na peça Um Inimigo do Povo, escrita pelo norueguês Henrik Ibsen no século XIX, vemos um homem com a coragem moral de manter sua integridade e convicção apesar da enorme pressão popular contra sua pessoa. Apesar dos exageros normais da dramaturgia, trata-se de um caso interessante de um pensador livre, um indivíduo apenas, combatendo a ignorância da maioria, e não cedendo nem mesmo sob o risco de completo isolamento e até falência pessoal. O personagem central da peça, Dr. Stockmann, após descobrir que os famosos banhos da cidade estavam contaminados, esperava obter grande respeito e admiração por parte dos demais habitantes. Mas toda a cidade passou a repudiar o autor da infeliz descoberta, preferindo ignorar os fatos, como se assim estes pudessem, num passe de mágica, desaparecer. Após refletir sobre a reação da maioria, Stockmann diz ter feito uma descoberta ainda mais importante que a poluição dos banhos. Seria a poluição moral da comunidade civil, calcada na mentira, na hipocrisia. Ele passa a considerar o maior inimigo da verdade como sendo a maioria compacta, que luta contra a razão individual. Para Stockmann, o homem mais forte do mundo é aquele que se sustenta sozinho. Está certo que Aristóteles já havia dito que o homem é um “animal cívico”, que só se completa como homem na polis. Ele nos lembra que “aquele que não precisa dos outros homens, ou não pode resolver-se a ficar com eles, ou é um deus, ou um bruto”. Stockmann talvez tivesse obtido melhores resultados com meios menos radicais. Na vida real, é muito raro encontrar alguém com tanta convicção moral e independência, a ponto de ignorar por completo a pressão das massas. Mas isso não anula a importância da mensagem de Ibsen. Confrontar a falsidade geral, fugir da necessidade de pertencer a um “rebanho bovino”, tendo que aderir a um pensamento monolítico, faz-se crucial para qualquer indivíduo que ama a liberdade e a verdade. Não seguir uma ditadura do “politicamente correto”, não depender da aprovação alheia sempre, é um caminho necessário para pensadores livres. Colocar a verdade dos fatos acima dos interesses imediatos é fundamental para quem defende a honestidade. Mesmo que tal postura reduza o grau de “sociabilidade” do indivíduo algumas vezes. Mesmo que tais atitudes possam colocar um indivíduo íntegro como suposto inimigo do povo, que tantas vezes prefere ignorar a verdade a ter que enfrentá-la com coragem. No fundo, a humanidade agradece a independência de pensamento desses raros e corajosos indivíduos. Pode ser um tanto idealista a imagem de um indivíduo seguro de si, convicto do seu dever moral, enfrentando tudo e todos para defender nada mais que a verdade. Mas é um idealismo que vale admirar, ao menos para reforçar o alerta contra a ditadura do consenso. Afinal, como nos dizia o dramaturgo brasileiro, Nelson Rodrigues, “a unanimidade é burra”.
Por: Rodrigo Constantino  Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/