domingo, 8 de fevereiro de 2015

EM BUSCA DA CULTURA

A chamada cultura yuppie mediocrizou os padrões intelectuais dos Estados Unidos


Em artigo escrito já há algum tempo, o publicitário Nizan Guanaes observa que às nossas classes altas falta, sobretudo, cultura. Pura verdade, mas por que somente às classes altas? Ao longo da quase totalidade da história humana, o conjunto dos homens mais cultos e sábios raramente coincidiu com o dos mais ricos e socialmente brilhantes.

“Livros e dinheiro são uma mistura perfeita para elegância, savoir faire e bom gosto”, diz Guanaes. É certo. Mas também é certo que elegância, savoir faire e bom gosto não são propriamente a alta cultura: são a vestimenta mundanizada que ela assume quando desce do círculo das inteligências possantes e criadoras para o âmbito mais vasto dos consumidores abonados, da sociedade chique. São cultura de segunda mão.

O que falta no Brasil não são apenas ricos educados. O que falta são intelectuais capazes de educá-los. Um indício claro, entre inumeráveis outros, é que nenhuma universidade brasileira, estatal ou privada, foi jamais incluída na lista de cem melhores universidades mundiais do Times Higher Education World Ranking de Londres. Não há nessa exclusão nenhuma injustiça. Rogério Cezar de Cerqueira Leite explicou o porquê em Produção científica e lixo acadêmico no Brasil.

Foi talvez sentindo obscuramente a gravidade desse estado de coisas que o próprio Guanaes mandou seu filho estudar na Phillips Exeter Academy, de New Hampshire, tida como a melhor escola preparatória americana, na esperança de colocá-lo depois em alguma universidade da Ivy League, como Harvard, Yale, ou Columbia.

Sem deixar de cumprimentar o publicitário pelo seu zelo paterno, observo que suas próprias ações provam antes o meu diagnóstico da situação do que o dele: se cultura faltasse somente aos homens ricos, bastaria enviar seus filhos a alguma universidade local ou fazê-los conviver com intelectuais de peso em São Paulo ou no Rio, e decorrida uma geração o problema estaria resolvido.

Mas aí é que está: faltam universidades que prestem, e os grandes intelectuais morreram todos, sendo substituídos por duas gerações de tagarelas incompetentes, cabos eleitorais e cultores da própria genitália, como documentei abundantemente em O Imbecil Coletivo (1996) e O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser Um Idiota (2014), além de centenas de artigos, muitos deles neste mesmo Diário do Comércio.

Ricos e até governantes incultos não são, por si, nenhuma tragédia, desde que haja em torno uma classe intelectual séria, capaz de lhes impor certos padrões de julgamento que eles não precisam compreender muito bem, só respeitar.

Foi assim na Europa ao longo de toda a Idade Média e até épocas já bem avançadas dentro da modernidade, quando a casta nobre considerava que a única ocupação digna da sua posição social era a guerra, deixando os estudos para os padres e demais interessados.

O Imperador Carlos Magno só começou a aprender a ler – de má vontade – depois dos trinta anos. Afonso de Albuquerque, sete séculos depois, ainda considerava que saber línguas estrangeiras era coisa para subalternos. A alta cultura não era sinal de posição social elevada, era um ofício especializado. Daí a palavra clerc, “clérigo”, que não designava só os sacerdotes, mas, de modo geral, toda pessoa letrada.

Complementarmente, os homens de estudos eram o que podia haver de mais diferente do grand monde, dos ricos e elegantes. Até bem recentemente, mesmo nos EUA, os intelectuais, sobretudo universitários, primavam por uma vida austera, sem divertimentos nem confortos, a não ser que, por coincidência, viessem eles próprios de alguma família rica.

Tudo mudou nos anos 80, com o advento dos yuppies. Um yuppie é um jovem com diploma de universidade prestigiosa, um emprego regiamente pago em alguma cidade grande, um círculo de amigos importantes que se reúnem em clubes chiquérrimos e uma cabeça repleta de regras de polidez politicamente corretas, um conjunto formidável de não-me-toques que facilitam a aceitação social na mesma medida em que dificultam o pensamento. Foi aí que formação cultural começou a significar elegância, bom gosto e refinamento em vez de conhecimento e seriedade intelectual.

Esse foi um dos danos maiores produzidos pela desastrosa administração Jimmy Carter. Até os anos 70 os EUA ainda tinham a melhor educação do mundo, toda ela fruto da iniciativa autônoma da sociedade. A intervenção estatal, associada ao império do esquerdismo chique e ao açambarcamento de toda atividade cultural pela burocracia universitária, iniciou o processo de degradação intelectual documentado por Russell Jacoby em The Last Intellectuals: American Culture in the Age of Academe e por Allan Bloom em The Closing of the American Mind, ambos de 1987. 

No Brasil, a palavra “Harvard” ainda pode significar altíssima cultura, mas nos EUA ela evoca antes a pessoa de Barack Hussein Obama, que chegou a diretor da Harvard Law Review sem ter ultrapassado o nível das redações ginasianas e depois fez fama de autor com dois livros escritos inteiramente por Bill Ayers, um terrorista doublé de talentoso artista da palavra. 

Nada mais expressivo do vazio intelectual de Harvard do que o sucesso de John Rawls, o qual, segundo a boutade de Eric Voegelin, escreveu uma Teoria da Justiça sem notar que se tratava de uma teoria da injustiça.

O que hoje resta da antiga pujança intelectual americana refugia-se em grupos autônomos, como o círculo de discípulos do próprio Eric Voegelin, as redações de New Criterion e Commentary, meia dúzia de editoras high brow ou o time seleto de scholars que compõem a equipe de Academic Questions, uma revista acadêmica dedicada ao estudo... da decadência acadêmica.

Em comparação com o que temos no Brasil, é muito, é uma abundância invejável, mas, para o antigo padrão americano, é quase miséria. Os EUA só continuam sendo o paraíso dos estudos superiores no sentido yuppie do termo. Não por coincidência, Guanaes cita como protótipo de pessoa culta a riquíssima, chiquíssima e politicamente corretíssima Ariana Huffington, fundadora do Huffington Post, um front de antijornalismo obamista empenhado em manter acesa a chama do “Yes We Can” contra todos os fatos, contra toda evidência e contra todo o descrédito geral.

Não quero me meter na vida da família Guanaes, mas mandar um filho estudar nos EUA – digo nas grandes universidades, e não nos círculos dos happy few -- é um meio de defendê-lo contra a debacle cultural brasileira? Sim, se o que você quer para ele é uma carreira de yuppie e uma alta cultura constituída de “elegância, savoir faire e bom gosto”. Não, se você quer fazer dele um estudioso sério, capaz de compreender o Brasil e ajudar o país a sair do atoleiro.

Digo isso, também, por outro motivo. Cultura não é só aquisição de conhecimento, é a formação de uma personalidade ao mesmo tempo arraigada na realidade histórico-social concreta e capaz de transcendê-la intelectualmente.

Essa formação só é possível se ela começa pela absorção da cultura local na língua local e se prossegue nesse caminho até abarcar essa cultura como um todo e, então sim, tiver necessidade de ampliar o seu horizonte pelo contato mais aprofundado com outras culturas.

Se um jovem ignorante da sua cultura nacional é transplantado para o ambiente acadêmico de outro país, é melhor que ele fique por lá mesmo, pois, se voltar, dificilmente chegará a compreender o lugar de onde saiu.

O Brasil está repleto de diplomados de universidades estrangeiras, cujos palpites sobre a situação nacional superlotam as colunas de jornais com amostras de incompreensão que raiam a alienação psicótica. O projeto “Ciência Sem Fronteiras” está se encarregando de produzir mais alguns com dinheiro público.

Pode-se retrucar que, nas presentes condições, a aquisição da cultura brasileira se tornou inviável porque o jovem interessado não encontra guiamento nem na universidade, nem fora dela. Não tenho resposta pronta para isso, mas desde quando a dificuldade de resolver um problema torna desnecessário resolvê-lo? 
Por: Olavo de Carvalho 
Do site: http://www.dcomercio.com.br/categoria/opiniao/em_busca_da_cultura

sábado, 7 de fevereiro de 2015

'DILMA, A BREVE?'

O governo Dilma acabou. É caso único na história republicana brasileira. Vitorioso nas urnas, duas semanas depois do pleito já dava sinais de exaustão. De um lado, a forma como obteve a vitória (usando da calúnia e da difamação) enfraqueceu a petista; de outro, o péssimo cenário econômico e as gravíssimas acusações de corrupção emparedaram o governo. Esperava-se que Dilma aproveitasse os louros da vitória para recompor a base política e organizasse um ministério sintonizado com o que tinha prometido na campanha eleitoral. Não foi o que aconteceu. Acabou se sujeitando ao fisiologismo descarado e montou um ministério medíocre, entre os piores já vistos em Pindorama.


A presidente imaginou (ingenuamente) que a vitória obtida nas urnas era mérito seu. Pobre Dilma. Especialmente no segundo turno, quem venceu foi Lula. Sem a participação direta do ex-presidente, ela teria sido derrotada. Vale sempre lembrar que, em vários comícios da campanha, a candidata foi “representada” por Lula. Mas ela entendeu que a vitória daria uma espécie de salvo-conduto para organizar a seu bel-prazer o Ministério e as articulações políticas com o Congresso Nacional. Ledo engano. Em um mês de governo, já gastou o crédito dado a qualquer presidente em início de mandato.

Isolada no Palácio do Planalto, a presidente perdeu a capacidade de iniciativa política. E pior: se cercou de auxiliares ruins, beirando o pusilânime. Nenhum governo sério pode ter na coordenação política Aloizio Mercadante. Na primeira presidência Dilma, ele ocupou três ministérios distintos e não deixou sequer uma simples marca administrativa. Foi um gestor de soma zero. Lula, espertamente, nunca o designou para nenhuma função executiva. Conhece profundamente as limitações do ex-senador e sabe o potencial desagregador do petista. Não satisfeita com a ruinosa escolha, Dilma nomeou para a coordenação política o inexpressivo e desconhecido Pepe Vargas. Não é a primeira vez que a presidente mete os pés pelas mãos ao formar sua equipe política. É inesquecível a dupla Gleisi Hoffmann e Ideli Salvatti, mas naquele momento a conjuntura política e o cenário econômico eram distintos.

Assolada pelo petrolão — que pode colocar em risco o seu mandato —, Dilma passou um mês escondida dos brasileiros. Compareceu à posse — que era o mínimo que se poderia esperar dela —, discursou e sumiu. Reapareceu na ridícula reunião ministerial, discursou sobre um país imaginário, brigou com um funcionário e só. Poderia ter aproveitado o tempo para articular a sua base de sustentação no Congresso. Mas não. Delegou aos auxiliares a atribuição presidencial. Ela dá a impressão de que não gosta da sua função, que não tem qualquer prazer no exercício da presidência e que estaria somente cumprindo uma missão (mas para quem?).

Como seria de se esperar, foi duplamente derrotada na eleição para as mesas diretoras da Câmara e do Senado. Na Câmara foi mais que derrotada, foi humilhada. Seu candidato teve quase que o mesmo número de Júlio Delgado e metade dos votos do vencedor. Em outras palavras, ficou a sensação de que o governo tem seguros apenas 25% dos votos dos deputados. Se fosse no final da gestão, seria ruim mas até compreensível. Porém, a nova presidência mal começou. Mais da metade dos parlamentares forma uma maioria gelatinosa, sem forma e que pode a qualquer momento, dependendo da situação política, se voltar contra Dilma.

No Senado, a vitória com Renan Calheiros pode ter vida curta. Ainda no ano passado foi revelada uma lista de parlamentares envolvidos com o doleiro Alberto Yousseff e dela fazia parte o senador por Alagoas. Caso se confirme, veremos novamente o filme de 2007: ele deverá renunciar à presidência para, ao menos, garantir o seu mandato. E naquela Casa — agora com uma participação mais qualificada da oposição — também a maioria dos senadores vai, primeiro, pensar em garantir o seu futuro político e depois em defender o governo.

Dessa forma, Dilma corre perigo. Sem uma segura base parlamentar, tendo, especialmente na Câmara, um presidente que não reza pela sua cartilha; e com uma pífia coordenação política, poderá ter a curto prazo sérios problemas. De forma mais direta: vai ter de engolir uma CPI sobre a Petrobras. E com o que conhecemos até hoje da Operação Lava Jato, o seu mandato pode ser abreviado — caso, evidentemente, se confirmem as denúncias envolvendo a empresa, políticos, empreiteiras e o Palácio do Planalto.

Lula se mantém em silêncio. Estranho, muito estranho. Por quê? Ele, que sempre falou sobre tudo, mesmo quando não perguntado, agora está homiziado em São Bernardo do Campo. Medo? Teria vergonha da compra da refinaria de “Passadilma”? E o projeto mais desastroso da história do Brasil, a refinaria de “Abreu e Lulla”? Como explicar que tenha custado dez vezes mais do que foi orçada? Conseguiria responder sobre a amizade com Paulo Roberto Costa, mais conhecido como “Paulinho do Lula”? O silêncio é uma forma de confissão? Afinal, foi durante a sua presidência que foram gestados estes escândalos.

Teremos um 2015 agitado, o que é muito bom. Nunca um governo na História da República esteve tão maculado pela corrupção, nunca. O que o Brasil quer saber é se a oposição estará à altura da sua tarefa histórica. Se não cometerá os mesmo erros de 2005, no auge da crise do mensalão, quando não soube ler a conjuntura e abriu caminho para a consolidação do que o ministro Celso de Mello, em um dos votos no julgamento do mensalão, chamou de “projeto criminoso de poder”.
Por: Marco Antonio Villa Publicado em O Globo


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

CHURCHILL, O ATOR QUE LIDEROU O REINO UNIDO

RESUMO Fugindo toda a vida de repetir o fracasso político de seu pai, Winston Churchill tornou-se conhecido não só pelos feitos como ministro e premiê de seu país mas também pela sua verve e oratória. Nos 50 anos de sua morte, livro defende que sua capacidade retórica foi fundamental para o sucesso britânico contra Hitler.

*
O diretor Orson Welles relembrou em documentário de TV o seu encontro providencial com Winston Churchill. Ou, para sermos mais exatos, os três encontros em menos de 24 horas, no sul da França, já depois da Segunda Guerra Mundial.

O primeiro encontro tem cheiro a maresia: Welles caminhava pela praia, conversando com um potencial investidor russo sobre os méritos do próximo filme. Churchill, que tal como Welles era fisicamente impossível de ignorar, banhava-se nas ondas. Quando o diretor passou pelo ex-premiê britânico, Churchill saudou-o, Welles retribuiu a honrosa saudação e depois continuou a caminhar.

O segundo encontro teve lugar nessa mesma noite, no bar do hotel onde ambos estavam hospedados. Orson Welles aproximou-se de Churchill e, com gratidão sincera, disse-lhe "muito obrigado". Churchill, surpreso, indagou o motivo do agradecimento. Orson Welles explicou: o investidor russo tinha ficado tão impressionado com o encontro matinal entre Welles e o grande herói da Segunda Guerra que já ponderava seriamente passar o cheque.
Zé Otavio 
O terceiro encontro foi no dia seguinte, em pleno café da manhã. Churchill já estava à mesa quando Welles entrou na sala com o seu comparsa russo. Assim que Churchill o avistou, levantou-se da cadeira, olhou com admiração o autor de "Cidadão Kane" e depois fez uma longa vênia.

Esta hilariante história revela dois fatos importantes sobre Churchill, um dos mitos do século 20, que morreu 50 anos atrás.

O primeiro, óbvio, é o seu incomparável senso de humor. Basta flanar por uma livraria inglesa e encontrar livros para todos os gostos e carteiras, nos quais a espirituosidade de Churchill está plasmada em páginas e páginas de ditos célebres. Alguns, provavelmente apócrifos, já entraram na corrente sanguínea da história britânica. Como a crítica rude da parlamentar lady Astor ("Winston, você não passa de um bêbado!") e a resposta dele, rude mas hilária ("E você, minha querida, é feia. Mas amanhã eu já estarei sóbrio").

Ou, então, um novo confronto entre ambos. Ela: "Se eu fosse sua mulher, despejava veneno no seu chá". Ele: "E se eu fosse casado consigo, bebia-o".

A pergunta imediata que devemos formular quando confrontados com esta verve é saber se Churchill teria lugar, hoje, nos nossos parlamentos e na nossa vida política previsível e rasteira. Pergunta retórica, claro. Na tirania politicamente correta que arruinou até os melhores espíritos, Churchill não sobreviveria para contar.

Se juntarmos ao seu humor corrosivo um estilo de vida que, digamos, não era propriamente saudável, o quadro de ostracismo fica completo. Churchill fumava. Bebia. E, sobre o exercício físico, nova máxima memorável: "O segredo da minha longevidade? Ginástica. Nunca a pratiquei".

E, de fato, era impossível praticar. Peter Clarke, que dedicou a Churchill um delicioso tratado ("Mr. Churchill's Profession", Bloomsbury, 2012), pinta o seguinte retrato do seu dia "normal": despertar às 8 horas, café da manhã na cama, jornais na cama, burocracias políticas na cama. Depois, banho de imersão (o primeiro do dia), reuniões, almoço, sesta, hora do chá (por "chá", leia-se uísque e soda); finalmente, jantar (e por "jantar", leia-se champanhe, vinho do Porto, brandy). A partir das 11, quando qualquer mortal já estaria derreado e a mendigar o leito, então, sim, começava a produção literária. Que durava até as três ou quatro da madrugada.

Mas o humor de Churchill, e as suas desgovernadas rotinas, não nos devem cegar para um segundo fato: as profundas fragilidades de um homem que, durante toda a vida, foi perseguido por uma ideia funesta - a certeza de que a sua carreira seria um fracasso só comparável ao fracasso político do pai.

Lord Randolph Churchill (1849-95) fora um nome promissor no Partido Conservador britânico e, antes da sua fragorosa queda, muitos acreditavam que ele seria o líder natural da tribo. Mas um temperamento histriônico (para usar um eufemismo) levou-o a demitir-se do governo de Salisbury (por discordar da política fiscal dos "tories"). Para ele, o gesto seria apenas mais um número de teatro, sem grandes consequências.

Não foi para Salisbury, que aceitou a demissão e, por arrastamento, colocou um ponto final na carreira de Randolph. Sifilítico e deprimido, o pai de Winston acabaria por morrer aos 46 anos no esquecimento político.

Foi essa a sombra que pairou sobre Churchill e que o transformou em "a man in a hurry" [um homem com pressa]. Sabemos que ele não morreu aos 46 anos. Mas são vários os historiadores -Gertrude Himmelfarb é apenas um exemplo- que colocam uma questão interessante: o que teria sucedido à sua reputação se a morte tivesse chegado, por exemplo, em 1939?

A hipótese não é tão absurda assim: em 1939, Churchill contava já com uns respeitáveis 65 anos. Será que hoje estaríamos a recordar a data da sua morte e a grandeza do seu legado? Dificilmente.

Pior ainda: cumprindo os seus piores presságios, Churchill não seria muito diferente do pai -alguém que prometera muito mas que conseguira muito, muito pouco. E, nas biografias menores da política britânica, seria possível ler, sem grande pompa, que Winston Churchill fora um parlamentar e escritor, nascido a 30 de novembro de 1874 no seio de uma importante família aristocrática (os Marlborough) e em palácio imponente, que fica a poucos quilômetros de Oxford -o Palácio de Blenheim.

Biógrafos mais devotos poderiam acrescentar que a sua infância não foi propriamente feliz. Com um pai distante (no sentido físico e emocional da palavra), nem a mãe, a americana Jennie Jerome, supriu as carências afetivas do filho: rezam as crônicas que Mrs. Churchill teria tanto de beleza como de "coquetterie". Se existiu um elo emocional forte, ele foi estabelecido entre Winston e a ama, Mrs. Everest.

Seguiram-se os estudos. Faz parte da lenda churchilliana, provavelmente alimentada por alunos relapsos, que o jovem Winston era um aluno relapso. Talvez fosse, se estivermos a falar de matemática ou latim. Mas a lenda não sobrevive ao gosto que o rapaz começou a mostrar por história e, em especial, pela história da Inglaterra.

Apesar de tudo, acabaria por ser aceito na Academia Militar de Sandhurst, e os anos posteriores como soldado revelaram-se importantes por dois motivos assaz heterodoxos: a leitura e a escrita.

Nas suas comissões em Cuba ou na África do Sul, os hábitos de leitura prolongaram as inclinações naturais do jovem estudante. Leu Platão, Aristóteles, Adam Smith. E absorveu sobretudo os grandes mestres da língua inglesa, em especial Macaulay e Edward Gibbon, que lhe emprestaram para o resto da vida uma cadência solene no estilo e uma visão grandiosa sobre a nobreza da civilização ocidental.

Por outro lado, se é verdade que toda a arte começa por um exercício de imitação, a leitura levou-o à escrita -e o jornalismo tornou-se sua primeira casa. Escreveu reportagens sobre as operações militares em que participava para os principais jornais londrinos, como o "Daily Telegraph", e alguns desses escritos, pela qualidade e intensidade da prosa, começaram a conquistar leitores e seguidores.

Essa ascensão seria reforçada por alguns acontecimentos no terreno, que o transformaram em celebridade: uma espetacular fuga da prisão de Pretória, na África do Sul, onde fora feito prisioneiro em plena Guerra dos Boers, rendeu mais um relato, alguma independência financeira e abriu-lhe igualmente as portas da política.

ASCENSÃO E QUEDA

Winston Churchill foi eleito deputado conservador em 1900 -e o que se segue são escaladas íngremes e descidas a pique. Até 1940.

Em 1904, por exemplo, mudaria de partido pela primeira vez, trocando os Conservadores pelos Liberais. Esse gesto ("to cross the floor", para usar a expressão devida para mudança de partido no Parlamento inglês) seria repetido em sentido inverso, duas décadas depois, quando os Conservadores o receberam de volta nas suas fileiras. Incoerência política pura?

Não creio. Digo até mais: as trocas de partido, que ficaram superficialmente gravadas como sinal de oportunismo, nasceram de uma coerência política séria. Em 1904, o que o fez afastar-se dos Conservadores foram as políticas econômicas protecionistas do partido, que lhe pareciam uma negação da herança "liberal" deixada por lorde Salisbury. Só quando os Conservadores abandonaram tais práticas, regressando aos princípios de livre comércio, é que Churchill regressou à sua primeira morada.

Mas, se a incoerência e o oportunismo político de Churchill parecem uma grosseira simplificação, difícil será salvá-lo do desastre de Gallipoli, na Primeira Guerra Mundial. Não vale a pena perder tempo com a racionalidade (ou não) da campanha naval e terrena para capturar Constantinopla aos otomanos. Os 35 mil britânicos que perderam a vida foram a primeira mancha inapagável do seu currículo. Uma mancha que os Conservadores não esqueceram quando o liberal Herbert Asquith (1852-1928) firmou um governo de coalização com eles. A cabeça de Winston -o "traidor" de 1904- foi a primeira exigência dos "tories". Era o seu fim como Primeiro Lorde do Almirantado, uma espécie de ministro da Marinha Real Britânica. Seria também o seu fim político, em premonitória semelhança com o pai?

Churchill acreditou que sim. Mas o destino ainda não tinha saldado todas as contas com ele. Uma década depois, e sob a liderança conservadora de Stanley Baldwin (1867-1947), Churchill regressava -e regressava para a pasta das Finanças. Era uma segunda oportunidade. Mas, "hélas", revelou-se também uma segunda queda: o regresso da libra ao padrão-ouro arrastou a economia para o abismo, com desemprego maciço, caos social, greves -e a vitória dos Trabalhistas em 1929. Estava novamente fora do governo.

A BESTA NAZISTA

Em 1930, Churchill contava 56 anos. Em termos puramente numéricos, ultrapassara a longevidade do pai. Mas, politicamente, a sua carreira política parecia seguir o mesmo caminho que a do progenitor. O próprio sabia disso, sobretudo quando a depressão (o seu "black dog") regressava para o assombrar. Mudara duas vezes de partido. Fora responsável por desastres militares e econômicos que não seriam esquecidos ou perdoados. Aos olhos dos seus pares, era um relíquia de tempos vitorianos -uma alma inconstante, ou coisa pior.

Mas a década de 1930 não é apenas uma longa travessia pelo deserto. Porque, mesmo no deserto, é possível vislumbrar ao longe os contornos de um oásis -não um oásis ilusório, mas real, demasiado real: na Alemanha, um certo Partido Nacional-Socialista preparava-se para tomar o poder.

O partido tinha linguagem belicista e abertamente antissemita, e espantava Churchill a relativa indiferença das elites políticas britânicas perante a tempestade que vinha a caminho. O entendimento doméstico, sobretudo depois da Grande Depressão de 1929, é que o Reino Unido tinha assuntos mais prementes em que pensar.

E, além disso, se Hitler era um feroz anticomunista, disposto a combater a influência nefanda do bolchevismo, melhor ainda.

Churchill nunca comprou essa falaciosa versão de que os inimigos dos meus inimigos meus amigos são. A "besta nazista" deveria ser enfrentada pela sua intrínseca inumanidade e pela ameaça que ela representava para a civilização judaico-cristã.

Durante essa década, discursou sobre o assunto perante a indiferença (quando não o riso) dos seus pares. E, quando os "pacificadores" acreditavam que ainda era possível "paz no nosso tempo", a mensagem de Churchill era outra: o Reino Unido deveria rearmar-se e, por mais que isso horrorizasse os que ainda tinham a experiência da Primeira Guerra bem fresca na memória, preparar-se para a possibilidade de uma nova guerra.
Zé Otavio 



Todos sabemos o que aconteceu em 1939: com a invasão da Polônia pelas tropas nazistas, a política de "pacificação" promovida por Neville Chamberlain (1869-1940) tinha falhado. A 10 de maio de 1940, Churchill era nomeado primeiro-ministro pelo rei George 6º. No momento mais negro da Europa, o filho chegara aonde não chegara o pai.

CINCO DIAS

Não será exagero afirmar que o destino do Reino Unido - e da Europa, e do Ocidente- foi decidido em cinco dias, em Londres, entre 24 e 28 de maio de 1940. O historiador John Lukacs, no seu "Cinco Dias em Londres" (Zahar, 2001) -uma preciosidade para qualquer interessado na matéria- explica com detalhes o que se passou no interior do Gabinete de Guerra. E oferece as duas escolas de pensamento que então estiveram em confronto.

A primeira foi capitaneada por lorde Halifax, para quem a melhor forma de lidar com a indestrutível Alemanha era encontrar uma qualquer forma de acomodação com Hitler. A proposta, racionalmente falando, fazia algum sentido: com a França de joelhos e os Estados Unidos ainda longe de qualquer participação militar, o Reino Unido estava só frente a Hitler. Além disso, se fosse possível garantir a paz, talvez o Império Britânico sobrevivesse também.

Nos primeiros dias, Churchill vacilou ante os argumentos de Halifax. Mas, a 28 de maio, no mais dramático discurso que o Gabinete de Guerra escutara, a posição do então premiê foi clara: as nações que caíram a lutar, disse ele, levantaram-se de novo. Mas aquelas que se renderam covardemente acabaram liquidadas para sempre. E acrescentou, com um toque de dramatismo gráfico: se o fim chegasse com a invasão alemã, que cada membro daquele gabinete lutasse até cair na sua própria poça de sangue. A retórica era Churchill "vintage". Que, obviamente, continuou no Parlamento, no rádio- a exortar os ingleses a lutarem -"nas praias, nos campos, nas ruas, nas montanhas"- e a nunca se renderem.

Em 1940, Churchill só tinha isso a oferecer: palavras. E palavras, às vezes, têm uma força devastadora.

*ARTISTA *

Quando olhamos para a vitória das potências aliadas em 1945, encontramos várias explicações para o feito. A participação americana a partir de 1941 foi crucial; o sacrifício soviético foi mais crucial ainda; e, por falar em União Soviética, a decisão de Hitler em rasgar o pacto de não-agressão Molotov-Ribbentrop e tentar o mesmo que Napoleão antes dele (a invasão russa), teve o mesmo desfecho: uma humilhante derrota. Mas em 1940, quando Londres combatia ainda sozinha, a guerra só não foi perdida porque Churchill era um brilhante leitor, escritor e ator.

Essa, pelo menos, é a tese do mais interessante livro sobre Churchill que surgiu nos últimos tempos para assinalar os 50 anos da morte. Intitula-se "The Literary Churchill" [Yale University Press, 528 págs., R$ 77,83 e-book], e o autor, Jonathan Rose, pretende mostrar como a política e a literatura estiveram intimamente ligadas na carreira do estadista. De tal forma que os seus objetivos políticos, e em especial a resistência face a Hitler, foram profundamente moldados pelos livros que ele lera e, não menos importante, pelas peças de teatro a que assistira.

Churchill era um "melodramático", como qualquer alma sensível formada na Inglaterra vitoriana e eduardiana. A palavra não deve ser vista como pejorativa. No melodrama, o mundo é percebido como uma luta entre contrários -o bem contra o mal, a justiça contra a injustiça. Mas é uma luta que, pela sua radicalidade e absolutismo moral, permite que o bem triunfe no fim. E há momentos históricos em que é aconselhável acreditar que tal acontece.

Essa mundividência acompanhou Churchill nas suas leituras de juventude. Mas também nas suas escritas de juventude, a começar pelo romance "Savrola" (1899), o único que publicou. O livro pode ser, como sustenta Jonathan Rose, "um dos piores romances do século 19". Mas ele revela também traços importantes sobre a formação moral e política de Churchill que seriam imprescindíveis nos anos posteriores.

Li "Savrola" com curiosidade arqueológica. E nele encontrei passagens que parecem ter sido escritas não no século 19 - mas depois de Churchill ter vencido Hitler em 1945. Superficialmente, o romance propõe-se narrar a história de uma república imaginária (Laurania), dominada por um ditador (Antonio Molara). Contra o ditador, encontramos o herói que dá nome ao romance (Savrola, ou seja, uma projeção óbvia do próprio Churchill) e que organiza um movimento armado contra o "despotismo militar" de Molara. Como afirma Jonathan Rose, e com razão, em "Savrola" o jovem autor escrevia "um melodrama antifascista" muito antes da chegada do fascismo.

Mas a formação de Churchill não se limitou aos livros que ele leu ou publicou. Ao mesmo tempo que compunha o seu "Savrola", o jovem escrevia um tratado de estética ("The Scaffolding of Rhetoric"), em que estabelecia as regras fundamentais do discurso público. São, no essencial, as regras que ele seguiu no Parlamento -essa verdadeira "Comédie Anglaise", como chamou Chips Channon (1897-1958), em comparação teatral com a Comédie Française -e, claro, quando liderou o Reino Unido na Segunda Guerra Mundial.

Entre as regras, Jonathan Rose sublinha a preocupação do autor com "uma voz clara e sonora", uma cadência teatral capaz de ir desfiando uma narrativa em crescendo, e, recusando a tradição parlamentar de usar o latim e o grego como ornamentos do discurso, uma opção declarada por palavras inglesas, simples, poderosas e integradas em frases curtas.

Dito de outra forma: Churchill era, acima de tudo, um artista. E a política era a sua tela, o seu palco. O seu verdadeiro romance. Essa predisposição estética pode conduzir a lamentáveis resultados - e o caso de Hitler, ironicamente, ilustra esse ponto na perfeição. Porque Hitler era também um artista: na sua oratória, na sua teatralidade e na forma como moldou o povo alemão à luz da sua utopia rácica. O problema, para Hitler, foi ter encontrado, do outro lado do canal da Mancha, um artista maior e mais nobre do que ele: alguém que se preparara toda a vida para aquele "papel", naquele "palco", contra aquele "vilão".

Em "The Literary Churchill", Jonathan Rose relembra as palavras do guarda-costas do premiê, que relatou o deleite com que o velho Winston escutava no gramofone o ódio com que Hitler pronunciava o seu nome nos seus discursos. A questão não era apenas política. Era pessoal.

E, para derrotar Hitler, nada melhor que prometer "sangue, trabalho, lágrimas e suor". Nada melhor que dramatizar uma luta nas praias, nos campos, nas ruas. Nada melhor que engrandecer os pilotos ingleses que defenderam a ilha com a frase de efeito: "Nunca tantos deveram tanto a tão poucos".

Como escreveu o filósofo Isaiah Berlin (1909-97) em ensaio clássico sobre o líder ("Winston Churchill in 1940"), o tempo histórico tinha finalmente reconciliado o homem com o seu destino. A Churchill cabia-lhe agora reconciliar os ingleses com a sua poderosa "imaginação histórica" - e fazê-los acreditar na vitória.

24 DE JANEIRO

Homens excepcionais são necessários para tempos excepcionais. Mas talvez eles não sejam a melhor opção para tempos normais. Isso explica, em parte, a derrota eleitoral de Churchill em 1945. Em rigor, os ingleses não estavam cansados de Churchill, a quem deviam a liberdade e a vitória. Mas estavam cansados da guerra - e Churchill era também a memória dessa guerra.

Depois de perder as eleições para o trabalhista Attlee, ele ainda terá ouvido de Clementine Churchill, sua mulher e eterna confidente: "Isto é uma bênção disfarçada". Churchill, com típico humor, terá respondido: "Então está muito bem disfarçada". Ainda regressaria ao poder pelo voto popular em 1951. Mas resignaria em 1955.

E a morte? Que dizer da morte que sempre o perseguira toda a vida?

Numa manhã de sol (coisa rara em Oxford), saio do St. Antony's College, onde estou atualmente a viver, e decido visitar o Palácio de Blenheim, a imponente residência dos Marlborough, onde Churchill nasceu. Hoje, o palácio é uma espécie de Disneylândia para admiradores do ex-premiê.

Chegamos. Um pequeno trem conduz-nos à entrada principal (sim, é preciso um trem -e o trem tem nome: Winston, naturalmente). E, depois, é possível admirar o quarto do bebê, as primeiras roupas, algumas fotografias.

Na saída, uma gigantesca loja de "memorabilia" vende de tudo: livros, bustos, mais fotos. Os turistas invadem o palácio, passeiam pelos jardins e, no final, compram uma caneca com o rosto de Churchill.

Sentado na escadaria principal do palácio, acompanho as excursões e penso, uma vez mais, que tudo isto poderia nunca ter existido. Bastava que a Churchill estivesse reservado o mesmo destino do pai.

Sabemos hoje que não esteve. Para quem sempre acreditou que morreria jovem, chegar aos 90 é um belo argumento a favor da hipocondria.

Mas então olho para o céu e penso: se Deus é perfeito, então o seu sentido de humor também é. Winston Churchill morreu a 24 de janeiro de 1965. Não é um dia importante para nós. Mas era um dia muito importante para ele: o seu pai tinha morrido nesse exato dia, 70 anos antes.
Por: JOÃO PEREIRA COUTINHO, 38, escritor, cientista político e colunista da Folha, é autor de, entre outros, "As Ideias Conservadoras" (Três Estrelas). ilustração ZÉ OTAVIO
Publicado na Folha de SP

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

O PREÇO DA VERDADE

Todo mundo tem algum senso instintivo do que é normal e são, mas não sabe expressá-lo em palavras, nem usualmente é desafiado a fazê-lo. O desafio aparece quando, em épocas de crise, sentindo afrouxar-se os freios do costume e da autoridade, os interessados na promoção de alguma anormalidade específica – a sua própria ou a do seu grupo de referência -- se erguem dos bas-fonds da sociedade e partem para o ataque frontal à própria noção de normalidade e sanidade. O defensor dos antigos costumes encontra-se então numa posição de extrema desvantagem: como experiências tão abrangentes e duradouras não se deixam facilmente traduzir em conceitos, ele se apega a definições nominais e símbolos corriqueiros que a crítica corrosiva destrói com a maior facilidade. É que, não contando com a proteção do costume e do senso comum, o militante da causa mórbida entra em campo armado dos mais sofisticados instrumentos da dialética -- o que hoje em dia corresponde ao relativismo cultural e ao desconstrucionismo --, comparados aos quais o discurso do seu oponente assume a aparência grotesca de um mero apelo irracional ao argumento de autoridade e à força do conformismo banal. Eis aí, num instante, o anormal e o doentio elevados à condição de valores culturais respeitáveis, e a sanidade reduzida ao estatuto de “construção cultural” e de “preconceito”.


Comprova-se assim novamente, pela milésima vez, a lição do Eutífron de Platão, segundo a qual aqueles que estão do lado certo só por tradição e hábito, sem revigorar suas crenças pela busca ativa da verdade, se tornam presas fáceis e colaboradores inconscientes do mal.

Acontece que a busca ativa da verdade exige uma exposição profilática à experiência do erro, algo como uma vacina ou auto-intoxicação homeopática, experiência que não é sem riscos e da qual a inteligência preguiçosa, que é a da maior parte da espécie humana, foge como quem evita o contágio de uma lepra incurável.

O simples fato de que não exista erro absoluto, de que mesmo as hipóteses mais rebuscadas e antinaturais contenham uma parcela de verdade, é profundamente repugnante àquele que espera poder ter razão sem ter de pensar no assunto, ou instalar-se no reconforto da certeza sem ter de pagar o preço da dúvida. Nem sempre os valores em que ele acredita são meros preconceitos, mas é por mero preconceito que ele acredita neles. Assim, a maioria tende irresistivelmente a imitar o velho anfitrião do diálogo platônico, que, entediado e confuso ante o debate dos convivas mais jovens empenhados na busca da verdade, vai dormir.

Contribui ainda mais para isso este segundo fator: para tirar proveito dos erros, apreendendo a sua verdade parcial e integrando-a numa verdade mais abrangente, não basta conhecê-los intelectualmente, é preciso vivenciá-los em imaginação, senti-los, impregnar-se deles pessoalmente sem assumi-los por completo, como o ator que se identifica temporariamente com o personagem sem precisar transformar-se nele na vida real.

É uma operação imaginativa das mais difíceis e problemáticas, que constitui, no entanto, a essência da educação humanística, a conditio sine qua non de todo ingresso no mundo da cultura superior. Em geral, e excetuadas certas situações incomuns que não vêm ao caso, ela só pode ser realizada sob o guiamento de um professor experimentado, que passou por todos os erros e, em vez de ser devorado por eles, emergiu fortalecido. Os Diálogos de Platão dão-nos o exemplo do destemor, da naturalidade, da abertura de alma, quase da singeleza com que Sócrates aceita e toma como suas as hipóteses mais hostis e aberrantes, para apreendê-las em profundidade e superá-las. Mas os Diálogos são apenas simplificações teatrais: resumem num debate de poucas horas aquilo que, na realidade, é uma experiência que pode se prolongar por muitos anos e comprometer a alma em situações bem mais difíceis do que um mero duelo de razões. Só as mentalidades superficiais imaginam que tudo na esfera da inteligência é uma questão de teorias, argumentos e provas. Se o conflito das cosmovisões não se transfigura em guerra de paixões dentro da nossa própria alma, não conhecemos realmente essas cosmovisões, só as suas expressões verbais, e tudo o que dissermos contra ou a favor delas não passará nunca de um flatus vocis, de uma filosofia de isopor. A filosofia genuína, como a educação efetiva, é, segundo o verso imortal, “um saber de experiência feito”.

No Brasil, onde se espera que aos dezoito anos o cidadão já tenha opinião formada sobre tudo, e onde a única função dos professores é recitar as opiniões tidas como corretas para que os alunos as repitam aos berros e apedrejem quem as negue, a educação superior, nesse sentido, é virtualmente impossível em qualquer instituição nominalmente destinada ao ensino.

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Não vi nenhum inconveniente em enviar estas notas ao Diário do Comércio antes da segunda parte da série “Um cadáver no poder”, que prosseguirei na semana que vem.

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Eu havia prometido também completar a análise do caso Bolsonaro e explicar como podem os comunistas e seus amigos ser tão loucos ao ponto de acusar de estupro, sem apontar uma única vítima, justamente o algoz mais severo de todos os estupradores. Prometi, mas não é preciso um artigo inteiro para isso. Posso resumir a explicação em poucas linhas.

Os comunistas inventaram o uso do estupro como arma de guerra psicológica, ao invadir a Alemanha (leiam Antony Beevor, Berlin: The Downfall 1945, Penguin Books, 2002), cultuaram como heróis e gurus máximos pelo menos três estupradores, Stálin, Mao Dzedong e Fidel Castro (sobre este último, v. http://cuban-exile.com/doc_326-350/doc0343.html e http://www.christusrex.org/www2/fcf/exwife.html), e ainda recentemente, no Brasil, produziram um manifesto em favor de Kim Jung-Un, que instituiu o estupro como sistema, nas cadeias do seu país, para o tratamento e “reeducação” de prisioneiros políticos.

Ninguém, no mundo, carrega mais culpa pelo fenômeno hediondo dos estupros em massa do que os comunistas. Eles sabem disso, mas não querem pensar no assunto. Reprimem a culpa. Rejeitam-na para o fundo do inconsciente, de onde, em momentos de tensão, ela emerge sob forma invertida, camuflada de acusações projetivas, como já explicava o dr. Freud.

Poucas coisas, no universo, são tão sujas quanto a mente de um comunista. Qualquer comunista.

Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio.

domingo, 1 de fevereiro de 2015

INVIDIA

“A inveja é a paixão que vê com maligno desgosto a superioridade dos que realmente têm direito a toda a superioridade que possuem.” (Adam Smith)

A inveja é um sentimento com profundas conseqüências para o progresso da humanidade, e caso não seja devidamente domesticada, pode limitar bastante nossos avanços. John Stuart Mill considerou a inveja a paixão mais antisocial de todas. O filósofo austríaco Helmut Schoeck escreveu um brilhante livro sobre o tema, chamado Envy: A Theory of Social Behaviour. Seu trabalho deveria ser lido por todos, principalmente por aqueles que defendem uma utopia na qual seria possível construir uma sociedade igualitária, desprovida da inveja. O autor deixa claro, com sólidos argumentos e vasta experiência empírica, que não só é impossível a construção de tal sociedade, como o motivador de seus defensores é muitas vezes a própria inveja.

Em primeiro lugar, é interessante traçar as diferenças entre a inveja e o ciúmes. No caso deste, uma terceira pessoa está envolvida, e o ciumento pretende preservar algo que considera sua propriedade. Ele quer preservar seu ativo de terceiros. Já no caso da inveja, há um impulso destrutivo, onde o outro não ter algo é mais importante que tudo. A eliminação do próprio ativo passa a ser o objetivo. A inveja se mistura muito com o ressentimento, fruto de um sentimento de inferioridade, onde a desgraça alheia é mais importante que a satisfação pessoal do invejoso. Se um vizinho quebrar a perna, o invejoso irá regozijar-se, ainda que isso não faça ele andar melhor. Se um rico for à bancarrota, o invejoso irá comemorar, ainda que isso não o faça mais rico. O homem intensamente invejoso pode inclusive ser possuído pelo desejo de autodestruição, incapaz de tolerar que outros saibam aproveitar a vida e demonstrar felicidade.

Helmut conclui pontos interessantes sobre a inveja, como o fato de mínimas diferenças serem suficientes para despertar muita inveja no homem invejoso, ou que normalmente a inveja está mais atrelada à proximidade das pessoas. Em outras palavras, um não precisa ser um miserável para invejar um rei, sendo mais provável a inveja surgir entre empregados de um mesmo nível onde um deles recebeu um aumento relativo ou um elogio do chefe. Isso derruba o sonho dos igualitários em criar uma sociedade onde todos fossem materialmente iguais, como se isso pudesse eliminar a inveja do mundo. Pelo contrário, em tais sociedades – caso pudessem existir – a inveja seria de um nível bastante elevado, onde um simples agrado de alguém, o olhar de uma mulher, uma mísera demonstração de superioridade intelectual, faria despertar uma inveja incontrolável no invejoso. *

No livro, o autor vai buscar os indícios de inveja – e os mecanismos desenvolvidos para evitá-la – nas sociedades mais primitivas que se tem conhecimento. A crença na magia negra, por exemplo, teria pouca diferença da fé socialista de que o pobre é pobre por ser explorado pelo patrão, ou a crença das nações subdesenvolvidas de que assim estão por culpa das nações mais ricas. O uso de algum bode expiatório, seja a magia negra, o desejo dos deuses ou o capitalismo explorador, serve para consolar aqueles invejosos que não suportam o sucesso alheio explicado por mérito ou alguma superioridade qualquer em relação a si próprio. Se o vizinho teve uma colheita melhor, não pode ser pela sua maior eficiência e produtividade, pois isso seria um atestado de superioridade que o invejoso não está disposto a dar. Diferente daquele que observa e admira o sucesso alheio, o invejoso vai buscar refúgio nas “explicações” fantasiosas, como o uso da magia pelo vizinho, a sorte, o destino traçado pelos deuses etc.

Se todos possuem, em diferentes graus, o sentimento de inveja, a busca de proteção contra o invejoso, o “mau olhado”, sempre esteve presente nas diferentes culturas também. Quanto mais uma sociedade conseguiu controlar os invejosos e dar mais espaço e liberdade para os inovadores, mais progresso atingiu. A alocação de escassos recursos não é eficiente quando o medo da inveja alheia é grande demais. Se o fruto do sucesso será tomado por medidas claramente invejosas como o imposto progressivo, deixam de existir os incentivos adequados para que o empreendedor se arrisque. Se as desigualdades não são toleradas, se alguém souber a priori que seu sucesso será motivo de forte inveja por parte de seus vizinhos, as realizações pessoais serão ínfimas, e por conseguinte a da sociedade em questão também.

Por isso que as comunas israelenses, os kibbutzin, jamais seriam capazes de evoluir da subsistência agrária, e o pouco avanço existente vem emprestado de fora, dos países industriais capitalistas. O socialismo, a pura idealização da inveja, onde todos devem ser iguais como os insetos gregários são, seria a vitória da mediocridade sobre o talento, sobre as conquistas individuais. Numa sociedade igualitária, a inveja derrota o sucesso, as realizações pessoais. Eis o ideal dos invejosos, que trabalham para incutir um forte sentimento de culpa naqueles que, de alguma maneira, destacaram-se na sociedade. Temendo a inveja alheia, muitos desses sucumbem também ao sonho – ou pesadelo – igualitário.

Com isso em mente, deixo a conclusão nas palavras do próprio filósofo: “O desejo utópico por uma sociedade igualitária não pode ter surgido por qualquer outro motivo que não a incapacidade de lidar com a própria inveja”.

* Robert Nozick disse coisas interessantes sobre o tema, em Anarchy, State, and Utopia. Ele lembra que a auto-estima se baseia nas características de diferenciação entre indivíduos. Os julgamentos sobre quão bem realizamos determinada tarefa ocorrem através da comparação com o desempenho dos outros. Não há um padrão para saber se algo é bem feito independente de como ele pode ser feito por outros. Quanto Trotsky disse que, no comunismo, o homem médio seria do peso intelectual de um Aristóteles ou Goethe, ele ignorou que, todos sendo desta forma, ninguém acharia grande coisa tal característica. Ser como Goethe seria estar na média, ser medíocre, e o indivíduo ainda poderia ter problemas com a auto-estima. Adotando um modelo simples de dimensões diferentes de importância de atributos, quando uma dessas dimensões é equalizada, como a riqueza, a sociedade acaba escolhendo outra dimensão qualquer como a mais importante. Seja a inteligência, a beleza, a força, não importa, sempre haverá uma nova dimensão para suscitar julgamentos acerca das diferenças individuais. São estas diferenças que importam para a auto-estima. Qual o orgulho que alguém pode ter por saber falar, onde todos sabem? Quem se sente satisfeito consigo mesmo apenas por ter direito ao voto, enquanto todos têm? No passado, o direito de votar poderia ser um diferencial, mas uma vez que temos o sufrágio universal, esta deixa de ser uma dimensão relevante. Portanto, para Nozick, o caminho mais promissor para que a sociedade possa evitar grandes diferenças na auto-estima seria não ter um peso comum das dimensões, mas sim uma diversidade de diferentes dimensões e pesos. Assim, cada um poderia achar as dimensões que alguns outros também consideram importantes, permitindo alguma avaliação positiva de si mesmo. A diversidade descentralizada do liberalismo é um remédio para a inveja bem mais eficiente que a igualdade centralizada do socialismo.
Por: Rodrigo Constantino
Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

QUEM DIRIA: HÁ PETRÓLEO DEMAIS NO MUNDO

A queda do preço do barril do petróleo está escancarando um mito antigo e aterrorizante: o de que as reservas do óleo vão se esgotar em breve. Passamos as últimas décadas ouvindo essa história e o que vemos em 2015 é o contrário. As reservas só aumentam – e o preço do barril está barato porque há petróleo demais sendo produzindo no mundo.


Por coisas assim, eu torço para qualquer dia topar com o meu professor de geografia da escola. Ele costumava me apavorar com previsões alarmistas. “O petróleo vai acabar em 20 anos”, dizia. “E os carros serão abandonados por falta de gasolina.” Eu arregalava os olhos ressentido com a sociedade e aterrorizado com o futuro.

O terror sobre o fim do petróleo é tão antigo quanto seu refinamento. Em 1874, um geólogo da Pensilvânia, que na época concentrava a produção do óleo dos Estados Unidos, estimou que só haveria reservas para abastecer as lâmpadas de querosene por mais quatro anos. Mas ainda havia petróleo em 1919, quando a Scientific American previu que o recurso acabaria em 20 anos.

“Se o consumo seguir no nível atual, o petróleo do mundo deve desaparecer na primeira década do século 21”, escreveu, em 1977, o New York Times. “A reserva [mundial] de petróleo vai acabar no ano 2011”, cravou o Estadão em 1981.

Líamos essas previsões no jornal e acreditávamos no filme Mad Max. Num futuro desértico, gangues de motociclistas sujos e malvados cometeriam qualquer crime para obter uma dose de gasolina. Bem como o meu professor de geografia tinha avisado!

Mas os anos passaram, e em vez do apocalipse veio a abundância. De 1874 até hoje, o estoque de petróleo cresceu centenas de vezes. Nos últimos 30 anos, as reservas comprovadas passaram de pouco mais de 600 bilhões para 1,6 trilhão de barris.

Ocorreu o que os otimistas e os economistas liberais previram. O mecanismo de incentivos dos preços livres resolveu a parada. A alta do petróleo em 1973 criou oportunidade de lucro para a pesquisa de novas reservas e tecnologias de extração. Também levou muita gente a poupar o recurso, por meio de motores mais eficientes ou fontes alternativas de energia. Aprendemos a produzir mais petróleo enquanto ficamos menos dependentes dele.

Só nos últimos quatro anos, por causa da extração de xisto, a produção dos Estados Unidos aumentou um terço. Os americanos produzem hoje 8,8 milhões de barris por dia. Estão encostando nos 9,7 milhões de barris da Arábia Saudita e nos 10 milhões da Rússia, a principal produtora mundial. É petróleo demais para um planeta em recessão.

Analistas dizem que os árabes se recusaram a diminuir a produção de petróleo para manter o preço baixo e, assim, quebrar as empresas de xisto dos Estados Unidos, que não podem suportar prejuízo por tanto tempo quanto os árabes. O curioso é que essa estratégia é contrária à de 1973. Em vez de aumentar o preço – incentivando sem querer a concorrência – vão vender barato para tirar o incentivo de concorrentes e da pesquisa de novas tecnologias. Perverso, mas inteligente.

O petróleo é um recurso finito e não renovável, então ok, é verdade, em algum momento a previsão do meu professor de geografia vai se realizar. Mas deve demorar um pouquinho mais do que ele previu – talvez um ou dois séculos. O certo é que, antes da crise de oferta, é a demanda que deve diminuir. Quando o petróleo desaparecer, já não precisaremos mais dele.
Por: Leandro Narloch O Caçador de Mitos
Uma visão politicamente incorreta da história, ciência e economia
Do site: http://veja.abril.com.br/blog/cacador-de-mitos/2015/01/15/quem-diria-ha-petroleo-demais-no-mundo/

quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

DESCONSUMO VERSUS DESMATERIALIZAÇÃO

“Qual o seu grau de concordância/discordância com a seguinte afirmação: Estaríamos melhores se consumíssemos menos”. Esse foi um item de uma pesquisa divulgada em um novo estudo da pesquisadora da Universidade do Oregon Ezra Markowitz e Tom Bowerman da Eugene, um instituto de pesquisa ambientalista do Oregon, PolicyInteractive. Seu estudo, “How Much Is Enough? Examining the Public’s Beliefs About Consumption“ (“Quanto é demais? Examinando as crenças públicas sobre o consumo”), está na edição do jornal Analyses of Social Issues and Public Policy.


Em cinco pesquisas com cidadãos do Oregon e uma pesquisa nacional, eles demonstraram que 74 a 80% dos entrevistados “apoiam reduzir o consumo e acreditam que ao fazerem aumentam o bem-estar individual e da sociedade”. Markowitz e Bowerman interpretaram seus resultados como desafiando “o conhecimento convencional sobre nossa necessidade coletiva e interminável por bens materiais”. Com base em seus resultados de pesquisa eles esperam persuadir legisladores de que os americanos estão prontos para “desconsumir” em prol do meio ambiente, cortando compras de bens materiais, e especialmente reduzindo suas emissões de gases do efeito estufa.

Indo mais fundo em uma outra pesquisa, Markowitz e Bowerman descobriram que 84% concordam que cortar consumo seria “melhor para o planeta”, 67% concordam que então teríamos mais tempo para gastar com a família e amigos, e 84% acreditam que a diminuição do consumo geraria uma maior autoconfiança. Mas falar é fácil, especialmente quando se responde perguntas de pesquisa. Então os pesquisadores sondaram cautelosamente os entrevistados com mais uma pesquisa que perguntava aos participantes a escolher entre várias políticas públicas diferentes visando o corte no consumo. Vale a pena passar por seus resultados.

Os cidadãos do Oregon pesquisados, ao que parece, não estão muito ansiosos com a tributação de seu próprio consumo. A maioria foi contra um imposto sobre casas maiores que 2.500 metros quadrados ou custando mais que $300.000 dólares (62% contra); um imposto sobre casas maiores que 5.000 metros quadrados e custando $500.000 dólares (50% contra); um imposto de 10% por galão de gasolina (63% contra); um programa para tributar a energia quando seu preço está baixo e investir em fundos de conservação (64% contra); tributação de uma taxa de 1% por cada kilowatt-hora consumido por casa que consuma mais de $100 dólares em um mês (71% contra); uma taxa sobre a segunda casa própria (56% contra); um imposto de $1.000 dólares sobre novos veículos que fazem menos de 25 milhas por galão (62% contra); e um imposto de 1% por milha de carbono por viagem de avião (58% contra).

Estes resultados refletem conclusões similares de uma pesquisa nacional de Junho de 2010 pelo Institute for Energy Research que encontrou que 70% dos entrevistados se opuseram a novos impostos sobre a energia com o objetivo de reduzir a dependência de óleo estrangeiro ou reduzir as emissões de gases do efeito estufa. A mesma pesquisa demonstrou que 61% se opuseram a qualquer aumento nos impostos sobre a gasolina. Em outro estado politicamente liberal, Massachusetts, umapesquisa de Janeiro de 2010 perguntou sobre o apoio dos cidadãos para o projeto Cape Wind. Os pesquisadores encontraram que “enquanto 42% dos entrevistados estão menos dispostos a apoiar o projeto Cape Wind se suas contas aumentarem por $50 dólares ao ano, essa porcentagem aumenta para 67% a cada $100 dólares de aumento por ano e para 78% a cada $150 dólares de aumento por ano”.

Markowitz e Bowerman descobriram que os cidadãos do Oregon estavam, entretanto, felizes em cortar o consumo dos ricos, favorecendo um imposto de 5% sobre iates privativos, aeronaves, e trailers (61% a favor). Além disso, 76% são a favor de taxas de serviços públicos estruturados de modo que a carga por unidade suba com o aumento do consumo de energia; 75% aprovam a realização de padrões de eficiência de energia sobre novos edifícios mais rigorosos; e 57% aprovam o aumento dos padrões de eficiência do combustível de automóveis.

Levando em consideração o fato de que os entrevistados de sua pesquisa não pareciam muito interessados em políticas voltadas para o incentivo do desconsumo, Markowitz e Bowerman ligeiramente observaram que outras vias políticas além de tributação do consumo podem ser mais proveitosamente visadas. Eles sugeriram campanhas publicitárias. “Se o menor consumo de bens e serviços não-essenciais é benéfico ou necessário para a sobrevivência à longo prazo de nossa espécie, então parece ser prudente divulgar a difundida disposição ‘consuma menos’ “, eles escreveram. Eles esperam que se as pessoas soubessem que seus vizinhos favorecem o desconsumo, uma mudança cultural nas atitudes geraria menor consumo.

Markowitz e Bowerman definem o desconsumo simplesmente em termos de fazer com menos. Em outras palavras, desconsumo significa tornar os produtos mais pobres materialmente. Eles veem no aumento da pobreza material uma necessidade para proteger a natureza de uma humanidade voraz. Mas se usar menos de certa forma protege o meio ambiente, não seria melhor usar menos para produzir mais?

Jesse Ausubel, diretor do Program for the Human Environment da Universidade Rockefeller e Paul Waggoner da Connecticut Agricultural Experiment Station, demonstraram que a economia mundial está gradualmente usando menos para produzir mais. Eles chamam esse processo de “desmaterialização”. Por desmaterialização significa diminuir o consumo de energia ou bens por unidade do PIB. Em um artigo de 2008 no Proceedings of the National Academy of Sciences, Ausubel e Waggoner, utilizando dados de 1980 a 2005, mostraram que o mundo está numa onda de desmaterialização, espremendo cada vez mais valor de menos material. Acontece que a desmaterialização alcança muitos dos objetivos ambientais tal como o desconsumo.

Ausubel e Waggoner demonstraram que a economia global desmaterializa (consegue mais produtos de menos insumos) fortemente na produção de colheitas, uso de fertilizante e madeira, e emissões de dióxido de carbono. Por exemplo, enquanto a renda per capita global cresceu 40% entre 1980 e 2005, fazendeiros ao redor do mundo aumentaram a produção da colheita em 57%. Se a produtividade do cultivo tivesse permanecido no nível de 1980, os fazendeiros teriam que arar mais de 1 bilhão de hectares adicionais (cerca de metade da terra dos EUA e seis vezes a lavoura atual dos EUA) para produzir a quantidade de comida produzida em 2005. Em vez disso, as lavouras cresceram menos de 100 milhões de hectares e os fazendeiros aumentaram sua produtividade de forma que eles puderam produzir a mesma quantidade de colheita utilizando somente 60% da quantidade de terra usada em 1980.

A economia mundial emitiu mais dióxido de carbono em 2005 que fez em 1980, mas aproximadamente 30% inferior à que teria emitido caso o aumento de emissões fosse na mesma taxa que o crescimento da economia mundial. Utilizando os preços do Câmbio Europeu de Carbono (European Carbon Exchange) por tonelada de dióxido de carbono, Ausubel e Waggoner calcularam que esse carbono desmaterializado valeria quase US$ 400 bilhões por ano.

Quão longe a desmaterialização pode chegar? Em um trabalho anterior, Ausubel e Waggoner calcularam que se a produtividade média dos agricultores mundiais crescerem ao nível atual de produtividade de um fazendeiro de milho em Iowa, um mundo de 10 bilhões de pessoas poderia ser alimentado com uma dieta americana por cerca da metade das lavouras que são utilizadas hoje. Isso significa que uma área do tamanho da Amazônia poderia “retornar” à natureza. Similarmente, a produção de energia também poderia ser desmaterializada. Ausbel e Waggoner mostraram que entre 1980 e 2005 um consumidor francês desfrutou de 50% mais abundância mas usou somente 20% a mais de energia. Além disso, trocar a produção de eletricidade à base de carvão por nuclear desmaterializou as emissões de carbono anual de cada consumidor francês por uma tonelada. Mas nem todas as tendências são a favor da desmaterialização. Por exemplo, entre 1980 e 2005, a China usou muito mais cimento per capita que seus cidadãos podiam pagar e então exigiu-se melhores moradias. Mas este é um boom único de construção que diminuirá à medida que o parque habitacional e a infraestrutura chinesa atingir os padrões modernos.

Curiosamente, muitos ambientalistas ideológicos apoiam maneiras que utilizam uma alta quantidade de material para produzir comida e combustível. Por exemplo, a agricultura orgânica utiliza mais lavoura que a agricultura convencional, e as versões atuais de produção por energia solar e eólica ocupam uma maior parte de terra e leva mais material para ser construída que as usinas convencionais.

Ausubel e Waggoner concluem, “se os consumidores desmaterializam sua intensidade de uso de bens e especialistas técnicos produzirem os bens com uma menor intensidade de impacto, a população pode crescer em números e abundância sem um maior impacto ambiental”. Enquanto for permitido o progresso tecnológico dirigido pelo mercado se desenvolver, tributar e intimidar as pessoas por um aumento da pobreza material não é necessário para proteger a natureza. E como as pesquisas mostram, as pessoas não vão aturar isso de qualquer maneira.
Por: Ronald Bailey é correspondente científico da Reason Magazine, e autor do livro Liberation Biology: The Scientific and Moral Case for the Biotech Revolution.
Tradução de Robson da Silva. Revisão de Juliano Torres.


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

O OUTRO LEGADO DE PEPE MUJICA

O anúncio de uma lei que regula o mercado de comunicação, aprovada no final de dezembro e que deve ser implementada no próximo mês de março, causa protestos de entidades representativas da mídia tradicional. O caso acontece no Uruguai, onde o atual presidente, José “Pepe” Mujica, deixa a medida preparada para entrar em vigor na posse de seu sucessor, Tabaré Vásquez.


Tudo indica que a inciativa resultou de um acordo interno no partido Frente Ampla, ao qual pertencem os dois políticos, o que provoca comentários de dirigentes de empresas de comunicação sobre o que consideram uma tendência de governos classificados como esquerdistas na América Latina. A nova lei não se refere a jornais de papel ou à mídia digital, regulando apenas as concessões de canais de televisão aberta ou a cabo, mas mesmo assim levantam-se contra ela os porta-vozes de sempre, a começar pela Sociedade Interamericana de Imprensa.

Os métodos da mídia hegemônica são os de sempre: omitir o fato relevante de que os canais de TV são uma concessão do Estado, e, portanto, precisam ser regulados, e repetir o velho argumento: “A aplicação da lei pode representar uma ameaça à liberdade de expressão”, diz o dirigente da entidade que representa as empresas de comunicação na América Latina. O presidente Pepe Mujica responde com seu estilo direto: “É preciso ter liberdade de imprensa. O que não pode haver é monopólio”.

Essas duas posições resumem a questão: de um lado, empresários que preferem atuar num mercado sem limites, desde que seus quintais sejam protegidos pelo Estado contra a concorrência internacional; do outro lado, o raciocínio segundo o qual o Estado deve proteger em primeiro lugar o interesse da sociedade, e impedir que o ecossistema comunicacional seja transformado em mercado restrito de uns poucos e poderosos operadores.

Basicamente, a lei, no Uruguai e no Brasil, declara que serviços de radiodifusão são atividades de interesse público e, portanto, devem ser submetidos a autorização. Cabe, então, ao governo, definir os critérios pelos quais o Estado vai distribuir essas autorizações. Simples como o estilo de vida do presidente Mujica.

Um debate parcial

No entanto, na América Latina, onde o negócio da comunicação segue a tradição das oligarquias que sempre dominaram outros setores, como a posse da terra e o controle do sistema financeiro, qualquer menção a medidas reguladoras soa como a queda da Bastilha.

O debate tende a se acirrar com o anúncio de que o Congresso do Chile discute uma lei sobre os meios de comunicação que inclui a imposição de controles para a publicação em plataformas digitais. A proposta está inscrita no projeto que altera a lei 19.733, de 2001, que define a liberdade de opinião e informação e o exercício do jornalismo. O ponto central da polêmica está na proposta de enquadrar como jornal todo periódico digital que tenha edições renovadas em pelo menos quatro dias por semana. Teoricamente, trata-se de submeter as plataformas digitais às mesmas normas de responsabilidade que incidem sobre os meios tradicionais.

No caso chileno, embora o projeto tenha sido aprovado por unanimidade pela Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados, sofre a oposição até mesmo do Colégio de Periodistas, uma espécie de Conselho Nacional de Jornalistas, que considera a iniciativa pobre, confusa e com grande potencial para atrasar os debates sobre liberdade de expressão.

A iniciativa partiu da Unidade Democrática Independente, partido cujos fundadores apoiaram o golpe militar de 1973. Curiosamente, a Sociedade Interamericana de Imprensa fica fora desse debate específico.

Ao mesmo tempo que alerta para a ambiguidade da nova lei, o Colégio de Periodistas chama atenção para a falta de iniciativa do governo chileno diante da concentração dos meios de comunicação, que se repete em todas as plataformas de publicação.

Como se pode ver, nem toda iniciativa de regulação da mídia tem o objetivo de impor o arbítrio do Estado sobre a imprensa: em algumas delas, tenta-se justamente enquadrar os meios digitais e aumentar o poder das empresas tradicionais.

Esse debate corre em praticamente todos os países da América Latina, do México ao Uruguai. Exceto no Brasil.Por aqui, a concentração dos meios de comunicação continua sendo um tabu: qualquer pessoa ou instituição que tenta colocar em pauta essa questão é logo acusada de atentar contra a liberdade de expressão.

Por Luciano Martins Costa em 15/01/2015 na edição 833
Dosite:http://www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/o_outro_legado_de_pepe_mujica
Comentário para o programa radiofônico do Observatório, 15/1/2015






CAPITALISMO E LIBERDADE: A VISÃO DE MILTON FRIEDMAN


“Não existe almoço grátis.” (Milton Friedman)

Os pilares do liberalismo estão no indivíduo e seu direito à liberdade, crença que vai contra a visão paternalista de um Estado patrão e dirigista, que determina o destino dos seus cidadãos como se esses fossem seus súditos. Para o homem livre, o país não passa da coleção de indivíduos que o compõem, e não algo acima deles. O governo é visto apenas como um meio para seus objetivos, nunca um fim em si, nem um agente garantidor de favores ou um mestre que devesse ser cegamente seguido, detentor de uma sabedoria clarividente. A maior ameaça à liberdade individual é justamente a concentração de poder, e o papel do governo seria basicamente o de preservar esta liberdade, em vez de ameaçá-la concentrando cada vez mais poder em si.

Numa sociedade livre, o escopo do governo é limitado, porém não inexistente, nem irrelevante. Ele deve ser capaz de preservar as regras do jogo, manter a ordem, definir os direitos de propriedade, ser o juiz em disputas quanto à interpretação das leis e forçar contratos. Alguns liberais aceitam mais ainda, como promover a competição e intervir apenas em situações de monopólios naturais ou externalidades negativas, além da função paternalista com as crianças e adultos irresponsáveis, como os detentores de problemas mentais. O liberal entende que a liberdade só anda junto com a responsabilidade, e só deve ser livre quem puder arcar com as conseqüências de sua liberdade. Como fica claro, o liberalismo nem de perto prega a ausência de governo, como defendem os anarquistas.

Alguns exemplos de intervenções indesejáveis do governo seriam programas de suporte a preços, controle de produção, salário mínimo, regulamentações muito detalhadas para algumas indústrias, programas de previdência social como as atuais, serviço militar obrigatório etc. Passaremos rapidamente por algumas delas.

Qualquer intervenção governamental no mecanismo de formação de preços cria um resultado ineficiente. Os preços não passam de sinais emitidos pelos agentes do mercado, para que o processo produtivo possa sempre funcionar. Respeitar as leis de oferta e demanda é fundamental, e governo nenhum deveria se meter nisso. É justamente através do foco das empresas no consumidor e suas preferências que o mundo evolui, respeitando os interesses particulares de cada um. O papel chave do governo aqui é apenas garantir a competição, mas os preços devem sempre ser livres. Isso inclui o câmbio de um país, seus produtos agrícolas, bens e serviços básicos, enfim, todas as mercadorias e serviços trocados no mercado, que não passa de um palco para estes escambos. Algumas pessoas não conseguem entender essa função tão básica dos mercados, onde indivíduos focam suas energias nas atividades que possuem vantagens comparativas para poderem depois consumir o restante das suas necessidades através da troca. No regime de mercado livre, o poder de facto reside nos consumidores.

Um tema que traz controvérsias é o do salário mínimo, apesar de estar claro na cabeça do liberal que ele apenas gera mais miséria. Para a maioria das pessoas, parece mais lógico entender que o governo deveria definir um mínimo aceitável de renda para o trabalhador, mas isso é apenas fruto de uma falta de conhecimento das leis básicas de economia. As pessoas possuem um raciocínio simplista de que basta definir o mínimo e melhoraremos o social, mas ocorre na prática justamente o oposto. Não se pode ir contra as leis do mercado, e quando o valor de qualquer salário é definido arbitrariamente, e não pelo encontro entre oferta e demanda, ele gera uma grande distorção no mercado de trabalho. As pessoas que defendem o salário mínimo deveriam passar mais tempo conversando com os milhões de desempregados, já que claramente estes estariam em uma situação melhor trabalhando, mesmo que por um salário abaixo do mínimo. Claro que incomoda profundamente termos salários tão baixos, mas a proposta socialista apenas agrava muito esta situação. Os salários aumentam pelos ganhos de produtividade através de investimentos do capital, assim como pela livre competição entre empregadores. O salário mínimo, definido acima do de mercado, cria apenas mais desemprego e informalidade.

Nessa mesma linha de raciocínio, todos os direitos adquiridos pelos trabalhadores sindicalizados não passam de benefícios destes às expensas de outros, que eventualmente aceitariam trabalhar com menos regalias. Os sindicatos monopolizam a oferta de empregos muitas vezes, interferindo na lei natural de mercado competitivo, e prejudicando os mais pobres ou independentes. Se bastasse uma caneta do governo para resolver as injustiças do mundo, não mais haveria miséria, fome, terremotos, violência ou problemas de saúde. Seria suficiente assinar uma lei que garantisse o mundo perfeito!

Os salários em uma sociedade livre são determinados unicamente pelo equilíbrio entre a oferta e demanda por trabalho, e como as escolhas são voluntárias e o Estado garante um ambiente de competição, não se pode caracterizar uma exploração do empregador. Os socialistas costumam achar que as empresas deveriam priorizar menos o lucro e garantir salários maiores para seus empregados, mas isso ocorre pois não entendem algumas coisas básicas. Em primeiro lugar, em um mercado competitivo, as empresas vão pagar salários atrelados ao rendimento do trabalhador, pois não vão se arriscar a perderem esta fonte de renda para o concorrente, que poderá a qualquer momento contratar seus funcionários. É fundamental entender aqui que os salários são frutos do valor gerado, e não podem ser garantidos sob qualquer circunstancia, já que uma empresa sem lucro é uma empresa rumo à bancarrota, que não pode empregar ninguém.

Em segundo lugar, precisam entender que o objetivo final de qualquer empresa é seu lucro, pois sem ele ela não poderá investir, crescer, produzir mais e permanecer no mercado competitivo. Portanto, o objetivo de maximização de lucros é não só característica básica para a formação de qualquer empresa como também desejável, já que permite melhorar os rendimentos de todos a ela ligados. Sem falar que o lucro representa o retorno do capital de risco investido, mais do que razoável, já que sem ele não haveria empregos para estes que se dizem explorados. Foi no ambiente competitivo americano que os empregados mais conquistaram vantagens reais, e isso não se deveu às canetadas do governo, mas ao próprio estímulo do capitalismo competitivo.

Mais um exemplo de intervenção indesejada está na Previdência Social. O governo define uma parcela da renda obtida pelo indivíduo a ser destinada compulsoriamente a um fundo de previdência. Isso inibe completamente a livre escolha da pessoa em dispor de seus frutos do trabalho como melhor lhe convém. Somente o argumento de que o povo é irresponsável e por isso não deve ser livre justifica um ato paternalista desses, mas mesmo assim nada explica um monopólio público na administração destas aposentadorias. Se defendemos a liberdade individual, temos que aceitar que os homens são livres também para cometerem seus próprios erros, pois somente assim se aprende.

Além disso, quem seria capaz de definir o que está ou não errado? Será que deveríamos utilizar a coerção para evitar que o indivíduo faça o que quiser, enquanto não causar mal a outro ser? Não existe sempre a possibilidade de que este indivíduo esteja certo e nós errados? Não temos infinitos exemplos disso em nossa história, desde quando Sócrates foi condenado ao veneno da cicuta, Jesus foi crucificado, e Galileu foi julgado pela Inquisição por estar certo, mas contrariar as crenças de seu tempo? Cada um deve ser livre para viver como quiser, com a condição de não agredir o próximo e de arcar com as conseqüências de suas atitudes. A diferença básica entre o liberal e o socialista é que o primeiro acredita na humildade e falta de conhecimento pleno dos homens, enquanto o segundo parte de uma visão totalmente arrogante, de que sabe o que é melhor e mais justo para a humanidade, e quer impor sua visão de mundo aos demais.

No caso das regulamentações, mesmo em monopólios naturais, é importante entender que é indesejável um excesso de intromissão governamental. Normalmente as pessoas superestimam o poder desses monopólios, pois o progresso é mais forte do que eles. As estradas-de-ferro já foram consideradas monopólios antigamente, e por isso criaram-se verdadeiras parafernálias burocráticas que amarraram as empresas neste setor. Porém, com o tempo e o progresso, vieram os caminhões e mais tarde os aviões. Como definir então o monopólio? Em questões de logística, rapidamente surgiram substitutos, mas como as empresas ferroviárias não tinham flexibilidade para reagir num mercado competitivo, ficaram para trás em termos de eficiência. O mesmo pode ser dito para vários outros negócios considerados monopólios naturais, como telefonia, energia etc. Os mercados costumam ser mais criativos e rápidos do que os burocratas que enchem os setores de amarras e regulamentação, criando espaço infindável para a corrupção e atraso.

Um outro exemplo de intervenção injusta e contra a liberdade individual seria na distribuição de renda. Muitas pessoas acreditam que o governo deveria possuir o papel de justiceiro. Tirar dos ricos e dar para os pobres passa a ser considerado “justiça social”. Podemos combater isso tanto pela teoria de justiça como pela prática. Vamos supor que três amigos caminham pela rua tranqüilamente, quando de repente um deles avista uma nota de US$ 100. Será que alguém iria defender a obrigatoriedade deste dividir seu ganho com os demais? É muito mais fácil para as pessoas aceitarem que o companheiro de trabalho ficou rico por acaso, ganhando na loteria. Mas se for por puro mérito e esforço pessoal, a inveja logo toma conta de suas emoções, criando esta vontade de lhe tirar os frutos de seu trabalho.

Logo surgem explicações falaciosas como o rudimentar argumento marxista de explorados contra exploradores. Em uma sociedade livre, é preciso respeitar as diferenças entre as pessoas, incluindo as opções distintas quanto ao trabalho, dinheiro ou lazer. O que não se deve fazer, ainda mais em nome da “justiça social”, é selecionar apenas do ponto de vista financeiro os ganhadores, e tomar-lhes boa parte de sua riqueza, muitas vezes conquistada exatamente pelo esforço, ousadia, riscos e abdicação de uma vida mais segura e pacata.

Por isso mesmo que os liberais não aceitam a idéia de impostos escalonados, dependentes da renda de cada um. Os impostos precisam ser um percentual fixo para todos, já que pagam pelos mesmos serviços, e de preferência bem baixo, já que o Estado é praticamente mínimo nesta sociedade. A defesa deste mesmo ponto teórico pelo lado da prática é que quanto mais imposto tiver, menos riqueza será gerada para todos, já que ninguém trabalha duro para sustentar burocrata do governo, mas sim visando a seus interesses particulares. Sem falar que esses impostos não são na verdade direcionados para os mais pobres, mas sim se perdem no mar de corrupção inerente ao modelo de Estado grande. “Eu considero difícil, como um liberal, ver qualquer justificação para taxação gradativa somente para redistribuir renda”, disse Milton Friedman.

Em resumo, as grandes ações governamentais adotadas nas últimas décadas falharam. A mão invisível tem sido muito mais eficaz em promover o progresso. O defeito central dessas medidas estatais, segundo Friedman, é que elas buscam forçar as pessoas a agirem contra seus interesses imediatos na tentativa de promover o suposto interesse geral. Essas medidas acabam então enfrentando uma das forças mais criativas conhecidas pelos homens, que é a tentativa de milhões de indivíduos promoverem seus próprios interesses, viver suas vidas conforme seus próprios valores. Seria essa a principal razão dos efeitos dessas medidas estatais terem sido opostos ao inicialmente intencionado. É também uma das maiores vantagens de uma sociedade livre, e explica porque a regulação governamental não deve estrangulá-la.

A perversidade da concentração de poder acaba ofuscada pelas boas intenções muitas vezes presentes em sua criação. É preciso persuadir os concidadãos de que as instituições mais livres são rotas mais seguras para os fins que eles buscam, e não a força coercitiva do Estado.
Por: Rodrigo Constantino  Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/

domingo, 25 de janeiro de 2015

A MASCARA DA INVEJA


“A inveja é a úlcera da alma.” (Sócrates)

O escritor argentino Gonzalo Otálora causou polêmica ao defender a cobrança de impostos das pessoas consideradas mais belas para compensar o “sofrimento” daqueles que supostamente foram menos favorecidos pela natureza. O escritor disse que sua iniciativa tem o objetivo de provocar um debate sobre o culto à beleza. Com um megafone, ele foi à frente da Casa Rosada reclamar os “direitos” dos feios. Esperava contar com o apoio do então presidente Kirchner, a quem classifica como “pouco atraente”. Otálora alega que os deboches sofridos na infância prejudicaram sua auto-estima e atrapalharam na conquista de melhores empregos. Em sua opinião, um dos assuntos que deveriam ser debatidos é a representação de “todos os tipos de constituição física” nos desfiles de moda. A inveja é alçada ao patamar de justiça, e a mediocridade é enaltecida enquanto o superior é condenado por suas virtudes, e não vícios.

Ainda que as demandas do argentino feioso pareçam absurdas – e são, elas no fundo representam apenas os ideais igualitários levados ao extremo de sua coerência. No fundo, um igualitário deveria pregar a igualdade plena, abolindo qualquer tipo de diferença entre os indivíduos. Aquele igualitário que prega uma distribuição de riqueza igual entre os indivíduosprecisa aplaudir o apelo do argentino sob pena de ser acusado de materialista, caso não o faça. Ora, ficaria evidente demais que ele só pensa em dinheiro!

Por que todos deveriam ter uma renda igual, mas rostos diferentes, podendo se destacar pela beleza num desfile? Onde estaria a igualdade? Na verdade, os igualitários, ou socialistas, pregam a igualdade das contas bancárias, assumindo involuntariamente que focam apenas nos bens materiais. Normalmente, são os primeiros a acusar os capitalistas de materialistas, mas só querem saber de dinheiro. Talvez porque demandar igualdade em outros campos tornaria o verdadeiro motivador de suas idéias aparente demais. E este motivador é conhecido: a inveja.

Na década de 1960, os igualitários ganharam força. O Partido Trabalhista inglês, de esquerda, demandava uma sociedade de iguais “absolutos”. Uma novela satírica iria explorar esta “paixão anti-social”, como dizia Mill, no campo do cotidiano. O escritor inglês L. P. Hartley era o autor, e a obra chamava-se Facial Justice, comentada no excelente livro de Helmut Schoeck sobre o tema, intitulado Envy: a Theory of Social Behaviour. Na sátira, Hartley chega à conclusão lógica através das tendências do século passado, e expressada por Schoeck no seu livro, sobre a estranha tentativa de legitimar o invejoso e sua inveja, de forma que qualquer um capaz de despertar inveja é tratado como anti-social ou criminoso.

Em vez de o invejoso ter vergonha de sua inveja, é o invejado que deve desculpas por ser melhor. Há uma total inversão dos valores, explicada apenas por uma completa aniquilação do indivíduo em nome da igualdade coletivista. Os seres humanos passam a ser tratados como insetos gregários, e o indivíduo que ousa se destacar passa a ser tratado como um inimigo da “sociedade”. O rico, ainda que tenha criado sua riqueza de forma honesta através de trocas voluntárias, é execrado pelos invejosos. O sucesso individual é um pecado!

A heroína da novela de Hartley chama-se Jael, uma mulher que, desde o começo, não se conforma com a visão igualitária, recusando-se a aceitar que pessoas mais bonitas ou inteligentes deveriam se anular como indivíduos por causa da inveja alheia. A novela se passa no futuro, depois de uma Terceira Guerra Mundial, e as pessoas eram divididas de acordo com o grau de aparência. A meta era obter uma igualdade facial, pois a igualdade material não era suficiente para acabar com a inveja: alguns sempre terão algo que os outros não têm e invejam.*

Havia um Ministério da Igualdade Facial, e a extirpação dos rostos tipo Alfa, os mais belos, não bastava, pois os rostos tipo Beta ainda estavam em patamar superior aos do tipo Gama. Enquanto todos não tivessem a mesma aparência, não haveria justiça. Ninguém poderia ser desprivilegiado facialmente. Hartley combate a utopia dos igualitários, mostrando que a igualdade financeira jamais iria abolir a inveja na sociedade. Durante sua vida, ele demonstrou aversão a todas as formas de coerção estatal.

No livro Teoria da Personalidade, o psiquiatra G. J. Ballone diz: “Todas as tendências ideológicas que enfatizam a igualdade dos seres humanos, num total descaso para com as diferenças funcionais, ecoam aos ouvidos despreparados com eloqüente beleza retórica, romântica, ética e moral. Transportando tais ideais do papel para a prática, sucumbem diante de incontáveis evidências em contrário: não resistem à constatação das flagrantes e involuntárias diferenças entre os indivíduos, bem como não explicam a indomável característica humana que é a perene vocação das pessoas em querer destacar-se dos demais”.

O sonho com um mundo de iguais, como se homens fossem cupins, denota um escancarado complexo de inferioridade. As diferenças agridem este indivíduo, pois ele é incapaz de aceitá-las, provavelmente por detestar ver no espelho aquilo que o diferencia dos demais. A inveja toma conta de seus sentimentos, e a destruição dessas diferenças passa a ser sua meta. Como ele não suporta as conquistas alheias, ele demanda a mediocridade geral. Os coletivistas odeiam admitir que indivíduos possam fazer a diferença. A riqueza precisa ser explicada como um fatalismo coletivista, os méritos individuais precisam ser derrubados, as escolhas individuais cedem lugar ao determinismo, tudo para anular o indivíduo enquanto indivíduo, substituindo-o pelo coletivo.

Em resumo, o que está por trás do igualitarismo é apenas a inveja mesquinha. O socialismo não passa da idealização da inveja. O foco desses igualitários costuma ser somente o material por dois aspectos: é inviável pregar de fato a igualdade facial, por exemplo; e fazê-lo iria rasgar de vez a máscara da hipocrisia que cobre seus apelos invejosos do mais “nobre” altruísmo. Mas a lamentável verdade é que igualitários não suportam as diferenças. E como os indivíduos, felizmente, são diferentes, parece evidente que existirão vários graus distintos de beleza, inteligência, altura, velocidade, talento musical e sim, também renda.

Para Bill Gates ficar bilionário, ele não teve que tirar nada de ninguém. Foram os consumidores que, voluntariamente, julgaram os produtos de sua empresa valiosos, pois criavam valor para eles. Logo, não há motivo algum para que o governo meta suas garras na fortuna de Gates de forma compulsória, em nome da “igualdade”. Ele tem o direito de ser bem mais rico que os outros. Aqueles que não aceitam isso, desejando um imposto extorsivo sobre sua fortuna, podem tentar mascarar seu motivador com a desculpa que quiserem, mas isso não mudará o fato de que, por trás dessa máscara, reside somente a abominável inveja daqueles que não são capazes de admirar o sucesso alheio.

* No filme Círculo de Fogo, que conta a história de um soldado russo que precisa enfrentar umsniper enviado pelos nazistas especialmente para matá-lo, isso fica bem evidente quando um companheiro político, interpretado por Joseph Fiennes, acaba traindo Vasily Zaitsev, o soldado russo interpretado por Jude Law. Sua constatação, quando realiza sua traição, expressa a essência da mensagem. Ele descobre que sempre haverá algo no vizinho que desejamos, mas não possuímos, independente da igualdade material. No caso do filme, trata-se do amor de uma mulher, disputada por ambos. A inveja é uma característica da pessoa, não fruto das desigualdades em si, que sempre existirão. 
Por: Rodrigo Constantino Do site: http://veja.abril.com.br/blog/rodrigo-constantino/