quarta-feira, 8 de abril de 2015

A MAIS MALDITA DAS HERANÇAS DO PT

Mais brutal para o Partido dos Trabalhadores pode ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum.


O maior risco para o PT, para além do governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.

Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o governo. Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a interpretação da atual realidade do país. Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fácil para o PT.

Algumas considerações prévias. Se no segundo turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem – 54.501.118 votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de tudo. Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment, instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade, nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto, paciência, vai ter de esperar a próxima eleição. Os resultados valem também quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.

No resultado das eleições ampliou-se a ressonância da tese de um país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível esquecer que outros 37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio, votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. É muita gente – e é muita gente que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um pouco a tese da polarização. Além das divisões entre os que se polarizariam em um lado ou outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em outro. E não é tão fácil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido, pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o território das incertezas – e do incontrolável.

Há lastro na realidade para afirmar também que uma parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet às vésperas da votação: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma guinada à esquerda”, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal maior”, então representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil. E quem pretendia votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor da esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusações que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político.

Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram à Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam “uma guinada à esquerda” ou “evitar o mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de ministros como Kátia Abreu e Joaquim Levy, à direita no espectro político, assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores. Assim, se a eleição fosse hoje, é provável que não votassem nela de novo. Esses arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores que, pelas mais variadas razões, votaram em branco, anularam ou não compareceram às urnas, tornando maior o número de brasileiros que não se sentem representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Aécio Neves e pelo PSDB.

Esses arrependidos à esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Aécio Neves porque se situam à esquerda de ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas no domingo contra a presidente. Para estes, não existe a menor possibilidade de ficar ao lado de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da ditadura militar ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também não havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão em setores da sociedade que costumavam apoiá-los.

Essa parcela da esquerda – que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos até que ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos desse tempo, em que a ação política precisa ganhar horizontalidade e se construir de outra maneira e com múltiplos canais de participação efetiva – não encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou votaram em Marina Silva, em especial por sua compreensão da questão ambiental como estratégica, num mundo confrontado com a mudança climática, mas votaram com dúvidas. No segundo turno, não se sentiram representados por nenhum dos candidatos.

Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que em 2014. Mas fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro da política partidária. Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a tempo de concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB, sigla bastante complicada para quem a apoiava, e assumir a cabeça de chapa por conta de uma tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em parte por conta da campanha mentirosa e de baixíssimo nível que o PT fez contra ela; em parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que, além de indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com relação à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma candidata que supostamente seria palatável para estratos da população que precisava convencer. São muitas e complexas as razões.

O que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma análise mais profunda. O fato é que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhões de votos a mais do que em 2010, seu capital político parece ter encolhido, e o partido que está construindo, a Rede Sustentabilidade, já sofreu deserções de peso. Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas não será fácil. Esse é um lugar vago nesse momento.

Há uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, não participou de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das duas grandes manifestações dos últimos dias, a de 15 de março várias vezes maior do que a do dia 13. É, porém, muito atuante politicamente em várias áreas e tem grande poder de articulação nas redes sociais. Não tenho como precisar seu tamanho, mas não é desprezível. É com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por décadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que estão em movimentos horizontais apartidários, por causas específicas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi perdida.

A parcela de esquerda que não bateria panelas contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento, para muito além do Mensalão e da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É possível que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, não da forma desejável, representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura histórica que já não existe. E que não voltará a existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia vá sempre bem; quando vai mal, o chão desaparece.

Fico perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior, acreditou que não precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a personagem trágica da história, porque em algum momento Lula, com o aval ativo ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia seguinte.

Não adianta ficar repetindo que só bateu panela quem é da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar que houve batuque de panelas também em bairros das periferias. Ainda que as panelas batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom caminho desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a mensagem, com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”. Todos têm direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha Le Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a criticar o protesto.

Nos panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi chamar a presidente de “vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque não se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o “vaca” e o “vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses xingamentos, janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o esgarçamento do laço social. Assim como, no domingo de 15 de março, essa ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há desculpa para desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela força por 21 anos torturou gente, inclusive crianças, e matou gente. Muita gente. Assim, essa defesa é inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificação rasteira. É urgente que a esquerda faça uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se quiser ter alguma importância nesse momento agudo do país.

Também não adianta continuar afirmando que quem foi para as ruas é aquela fatia da população que é contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões de brasileiros e fez com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras máximas. É fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao governo é composta por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.

Num momento tão acirrado, todos que têm expressão pública precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para não aumentar ainda mais o clima de ódio – e disseminar preconceitos já se provou um caminho perigoso. Até a negação deve ter limites. E a negação é pior não para esses ricos caricatos, mas para o PT, que já passou da hora de se olhar no espelho com a intenção de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o marketing, há limites para a falsificação da realidade. Se é para fazer publicidade, a boa é aquela capaz de captar os anseios do seu tempo.

É também por isso que me parece que o grande problema para o PT não é quem foi para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa nem outra, mas também não tem a menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente não possa voltar a ser.

O PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar máscaras que não se sustentam por muito tempo. Traiu não apenas por ter aderido à corrupção, que obviamente não foi inventada por ele na política brasileira, fato que não diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por aí sabe, é corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido “ético” era um traço forte da construção concreta e simbólica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda existam pessoas que merecem o máximo respeito no PT, assim como núcleos de resistência em determinadas áreas, secretarias e ministérios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconheça. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretações mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita é de uma boçalidade assombrosa. Até porque, para estes, o PT é a direita.

A parcela à esquerda que preferiu ficar fora de manifestações a favor ou contra lembra que tão importante quando discutir a corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis fósseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente suas emissões de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de carros como o governo federal fez é contribuir com o transporte privado individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte público coletivo, assim como no uso das bicicletas. É também ir na contramão ao piorar as condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num trânsito que não anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia elétrica, como o governo fez, é uma irresponsabilidade não só econômica, mas socioambiental, já que os recursos são caros e finitos. Assim como olhar para o colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das nascentes do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora e dentro das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.

Os que não bateram panelas contra o PT e que não bateriam a favor lembram que a forma de ver o país (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vários Brasis. Povos tradicionais e povos indígenas, por exemplo, não cabem nem na categoria “pobres” nem na categoria “trabalhadores”. Mas, ao fazer grandes hidrelétricas na Amazônia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras indígenas, assim como teve desempenho pífio na criação de reservas extrativistas e unidades de conservação, ao condenar os povos tradicionais ao etnocídio ou à expulsão para a periferia das cidades, é em pobres que são convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construção objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de ver o Brasil e o mundo – encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui), que o PT não foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrentá-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.

O PT no governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatório, baseado em grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissível num momento em que a ação do homem como causa do aquecimento global só é descartada por uma minoria de céticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditáveis escolhas de Dilma Rousseff. A síntese das contradições – e também das traições – do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte. Sobre a usina hidrelétrica já pesa a denúncia de que só a construtora Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100 milhões em propinas para o PT e para o PMDB. É para Belo Monte que o país precisaria olhar com muito mais atenção. É na Amazônia, onde o PT reproduziu a visão da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a exploração, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E é também lá que a falácia de que quem critica o PT é porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.

A sorte do PT é que a Amazônia é longe para a maioria da população e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma visão de mundo urbana que não reconhece no outro nem a diferença nem o direito de ser diferente. Do contrário, as barbaridades cometidas pelo PT contra os trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações tradicionais, e contra uma floresta estratégica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também disso que se lembram aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderiam.

Lembram também que o PT não fez a reforma agrária; ficou aquém na saúde e na educação, transformando “Brasil, Pátria Educadora” num slogan natimorto; avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além da proibição e da repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já disse que “prefere morrer a cumprir pena”; cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por conveniência, é importante lembrar); priorizou a inclusão social pelo consumo, não pela cidadania; recuou em questões como o kit anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na política brasileira e aos velhos clãs do coronelismo, como os Sarney.

Isso é tão ou mais importante do que a corrupção, sobre a qual sempre se pode dizer que começou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que também é verdade. Olhar com honestidade para esse cenário depois de mais de 12 anos de governo petista não significa deixar de reconhecer os enormes avanços que o PT no poder também representou. Mas os avanços não podem anular nem as traições, nem os retrocessos, nem as omissões, nem os erros. É preciso enfrentar a complexidade, por toda as razões e porque ela diz também sobre a falência do sistema político no qual o país está atolado, para muito além de um partido e de um mandato.

Há algo que o PT sequestrou de pelo menos duas gerações de esquerda e é essa a sua herança mais maldita. E a que vai marcar décadas, não um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa construção um projeto de vida, concentradas em lutas específicas. Essas pessoas se sentem traídas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas não traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em seus últimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experiências de participação política que se abrem nesse momento histórico muito particular. Os mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes sentem-se traídos como alguém que não tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. É algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim ou pelo menos nas suas últimas décadas. É um fracasso também pessoal, o que suas palavras expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se diante de um tipo de morte.

O PT, ao trair alguns de seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levará tempo para virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas políticas. É verdade. Mas o PT tinha um lugar único no espectro partidário da redemocratização, ocupava um imaginário muito particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido “diferente”. Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepção é sempre proporcional à esperança que se tinha depositado naquele que nos decepciona.

É essa herança que precisamos entender melhor, para compreender qual é a profundidade do seu impacto no país. E também para pensar em como esse vácuo pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido, pelo menos não um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém. Quem acredita em bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar entre si – assim como de desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e encontrar caminhos para ocupar esse espaço, porque o momento é limite. O PT deve à sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos já virou fumaça. Não dá para continuar desconectado com a realidade, que é só uma forma estúpida de negação.
Por: Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum


terça-feira, 7 de abril de 2015

O LIVRO DA SELVA

É fácil rir dos selvagens. Sobretudo quando acreditamos sinceramente que não somos como eles. Engano.


Em 2001, o Taleban controlava o Afeganistão e ordenou a destruição dos Budas de Bamiyan, patrimônio cultural da humanidade. Foram as primeiras risadas. De horror.

Em 2015, vieram as segundas. Com o pessoal do Estado Islâmico, no museu iraquiano de Mossul, rebentando às marretadas as peças escultóricas do lugar.

Nos dois casos, a justificativa foi a mesma: o islã radical, que exige submissão completa ao fundamentalismo dos fanáticos, não tolera idolatrias –e, no caso dos Budas, heresias. Rebentar é a solução. E nós?

Verdade: a Inquisição deixou de funcionar há 200 anos. Ninguém é transformado em churrasco por ofender a Santa Madre Igreja, principal motivo pelo qual tantos artistas "corajosos" e "subversivos" gostam de a ofender.

Mas isso não significa que não existam "religiões seculares" (obrigado, Raymond Aron) com seus instintos igualmente censórios. No século 21, a principal religião está na Igreja da Saúde: ofender essa divindade, a única que restou na alma temente dos homens ocidentais, é crime de lesa-majestade.

Que o diga a empresa Disney: daqui para a frente, os estúdios que trabalham para a casa do Mickey Mouse não irão retratar mais fumantes em suas histórias. A saúde está em primeiro lugar. A saúde do público jovem está em primeiríssimo.

O caso é interessante por dois motivos –um pessoal, outro substancial.

O pessoal passa por relembrar todos os filmes Disney a que assisti nos verdes anos sem necessariamente ter imitado o comportamento dos seus personagens mais carismáticos.

Confesso: nunca saltei de edifícios montado em tapetes voadores. Nunca envenenei maçãs para matar alvas donzelas. Nunca confraternizei com tigres ou leões na selva, esperando que eles devolvessem o afeto e cantassem comigo em uníssono. E quando havia personagens fumando, nunca saí da sala com sintomas de privação.

A ideia paternalista de que reagimos a um filme como cachorros de Pavlov é uma fantasia digna de uma obra Disney que carece de base empírica.

Mas existe uma razão substancial que lida com a própria natureza da sétima arte. Se a Disney considera o cigarro uma influência nociva nas cabeças do auditório, o que tenciona a empresa fazer com histórias onde existem personagens vingativos, violentos, preconceituosos ou meramente imbecis?

Será que a Disney tenciona mostrar ao seu público esses vícios nefandos que dão pelo nome de vingança, violência, preconceito e imbecilidade?

Sem falar do óbvio: com narrativas em que os animais ganham voz e trejeitos humanos, não será isso uma lamentável exploração dos bichos, comparável a um espetáculo de circo?

Aliás, falar em circo não é por acaso: informa a imprensa inglesa que, depois de proibir o fumo, a Disney já recebeu inúmeros pedidos para que o próximo "Dumbo", dirigido por Tim Burton, não termine com o elefante no circo –mas em reserva natural apropriada.

Desconheço se Tim Burton pondera esse novo final, para alegria dos defensores dos "direitos dos animais". Em caso afirmativo, espero também que as orelhas do elefante possam ser igualmente reduzidas. Deficiência física não deve ser tema de paródia. O que, naturalmente, exclui de imediato os sete anões.

E se falamos de limitações físicas, convém não esquecer as mentais: a Disney pode conservar Mickey, Minnie e, no limite, o somítico Tio Patinhas. Mas não será hora de deixar o Pateta em paz?

O Pateta e, claro, alguns estereótipos culturais que a Disney espalha pelo mundo sem um pingo de vergonha. Eu, se fosse brasileiro, tomava providências para acabar de uma vez por todas com Zé Carioca (e seu charuto!).

Limpando todas as obras de imagens, ideias ou meras alusões potencialmente ofensivas, é provável que os filmes Disney se transformem em belos aquários, onde nada acontece e tudo é belo e colorido.

É um preço que devemos pagar. Como sucedeu com o Taleban no Afeganistão ou com os jihadistas do Iraque, é importante seguir o livro da selva e remover da paisagem todas as imagens que ofendem o pequeno selvagem que habita em nós.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 6 de abril de 2015

SOBRE PREPARAÇÕES BÉLICAS E ESTRUTURAS SECRETAS - PARTE 2

Como observou Cernea, os comunistas não são dogmáticos. “Comunistas não pensam assim. O apego à letra da doutrina é menos importante que o apego a essa peculiar forma de perturbação mental”. Aqui ela se referiu ao que o Prof. Olavo de Carvalho chama de “mentalidade revolucionária”. E sim, devo concordar com Cernea e Olavo.


As estruturas comunistas ocultas do leste europeu estão prontas para ressurgir.

A correspondente romena
Às vezes é útil olhar para a atual crise através da perspectiva de quem mora no leste europeu. No ano passado me correspondi com a Dra. Anca-Maria Cernea, que foi bondosa o bastante para manter-me informado sobre a situação na Romênia — importante país que flanqueia a Ucrânia. Quis saber em detalhes se alguma outra manipulação russo-comunista acontecia nos outros países do leste europeu enquanto todos os olhos estão voltados para Kiev. Ela fez um interessante comentário sobre o “ateísmo soviético ser a fonte de todas as ações e métodos dos líderes russos hodiernos. Isso merece volumes inteiros de estudos e reflexões”. Segundo ela, o “ateísmo não afeta só a alma, mas também a inteligência”. Ela também observou que os nomes proeminentes da KGB de hoje “parecem bem menos refinados intelectualmente que seus predecessores. Eles são apenas brutos que estavam acostumados a espancar e assassinar prisioneiros políticos em tempos que pessoas como Andropov estavam no comando [...] Essa involução intelectual torna o ambiente mais propício ao uso da violência.”

Anteriormente eu havia perguntado à doutora se o comunismo estava morto no leste europeu. Ela respondeu que “não, não está. Penso que a situação mais apropriada a se comparar seria a de um paciente que possui câncer. Os doutores evitam usar o termo cura. No melhor dos casos eles falam em remissão e ausência de sinais e sintomas que revelem a presença do câncer — não obstante as células podem estar presentes, embora elas não possam ser identificadas a qualquer momento, e ainda assim elas podem causar a doença no futuro.”

É uma poderosa analogia, e Cernea é médica. Ela está familiarizada com as patologias biológicas e políticas. “O comunismo é ideologia e estrutura de poder”, diz. “Ele aparentemente mudou, mas não está morto de maneira alguma. Então, daqui em diante, quando falar de comunismo, falarei num sentido mais extenso que inclui três pontos importantes”. Ela então listou três estruturas do velho bloco comunista que continuam a funcionar:

1) As velhas redes de influência política e econômica do leste europeu que comandam o aparato pós-comunista.

2) Russia como poder militar e a KGB com suas ideologias “pretexto”, como o eurasianismo.

3) A influência comunista sobre a cultura no sentido gramsciano, com o suave poder cultural controlado pela extrema esquerda e suas ideologias virulentamente anticonservadoras e anticristãs.

O famoso “colapso do comunismo”, observou Cernea, “tem de ser entendido através da perspectiva estratégica da mentalidade comunista. É muito importante entender como eles pensam. Assim, poderemos evitar os erros comuns e ingênuos que os ocidentais cometem ao atribuir aos líderes comunistas um pensar racional e normal no que diz respeito à conversão para o livre mercado e a democracia”. Essa conversão, disse, é totalmente compatível com a dialética marixsta-leninista que mudou do terror bolchevique para o NEP, ou do estalinismo para a desestalinização de Khruschev. “As consequências práticas das tentativas comunistas de impor a ilusão ideológica sempre acabam em desastre. Isso foi particularmente óbvio na economia, mas não apenas aí. As consequências catastróficas da economia marxista deveriam fazer as pessoas normais acordarem e pensarem se as premissas não estão erradas em princípio...”

Como observou Cernea, os comunistas não são dogmáticos. “Comunistas não pensam assim. O apego à letra da doutrina é menos importante que o apego a essa peculiar forma de perturbação mental”. Aqui ela se referiu ao que o Prof. Olavo de Carvalho chama de “mentalidade revolucionária”. E sim, devo concordar com Cernea e Olavo. Tudo se resume a destruir a ordem orgânica que se construiu conforme a civilização cresceu durante os séculos. Assim, o comunista é alguém que deseja destruir o horizonte e começar à sua própria maneira um universo reconstituído. O projeto é usurpar o trono de Deus e escravizar os seres humanos. Indisposto a aceitar as circunstâncias humilhantes da existência mortal, o político totalitário reifica a crise da sua própria mediocridade e a transforma numa conflagração universal. O peso da sua débil mortalidade é amenizado conforme ele adquire poder total e o usa para infringir dano em todas aquelas instituições e pessoas que trazem à sua pessoa a lembrança da própria insignificância. Em suma: ele é um destruidor e assassino. É uma criação nos moldes de Lênin, Stálin, Mao, Ceausescu, Castro, Ho Chi Minh, Pol Pot e outros deuses do Panteão Vermelho.

No leste europeu, assim como na América e no Ocidente em geral, o mesmo processo do velho comunismo ainda se alastra e tem como fim um novo surto. Como explicou Cernea, “Os pós-comunistas hodiernos do leste europeu, assim como seus camaradas do resto do mundo, continuam a negar que o comunismo está errado. Eles continuam a evocar o sempiterno pretexto: a teoria estava ok, mas não foi corretamente aplicada; é como sempre disse Iliescu sobre Ceausescu e seu regime, ‘eles simplesmente se auto intitularam líderes, eles simplesmente fingiram que foram eleitos pelo povo, eles simplesmente fingiram que eram comunistas. Eles nada tinham a ver com o socialismo, tampouco com o comunismo científico. Eles não fizeram nada além de sujar o nome do Partido Comunista Romeno; eles somente mancharam a memória daqueles que deram suas vidas pela causa do socialismo no país’. É sempre culpa do fator humano; nunca é o próprio sistema o culpado. É óbvio que eles nunca desistiram do sonho de impor novamente algum tipo de paraíso na Terra que pressupõe uma total concentração de poder em suas mãos.”

Sim, o câncer do comunismo ainda está aí. De acordo com Cernea, 

“A alternância entre o comunismo de tipo controlador-rígido e o comunismo suave que há nas sociedades do leste europeu parece-se com a sequência que há entre a atividade patológica e remissão no curso clínico de um caso de câncer. A parte positiva da remissão do comunismo é, evidentemente, a possibilidade que hajam novos espaços na nossa sociedade; e esse espaço foi aberto no recuo de 1989. Podemos respirar nesse espaço, e isso não dava para fazer antes, pois não havia a mesma margem de manobra. Isso significa muito... Mas simplesmente não há como saber até quando durará essa fase de remissão. A possibilidade de reincidência é constante. Nada garante que a situação não se reverterá. Como falei antes, a Romênia teve momentos em que a volta de uma ditadura comunista linha-dura parecia muito próxima e possível — como a invasão dos mineradores de carvão em Bucareste nos anos de 1990 e depois em 1999. Se não houve recorrência da doença naquele caso, foi em grande parte porque o contexto mundial daquele momento particular não era favorável.”

Imagine se a Rússia começar uma ditadura sobre a Europa. As elites comunistas do velho Pacto de Varsóvia se reafirmariam? Com certeza, a Rússia tem o nome sujo no leste europeu. Como explicou Cernea, “Em todos países do leste europeu a ocupação soviética foi uma experiência horrível. A única parte boa, se é que se pode dizer assim, foi que ela desencadeou uma rejeição instintiva; ficou evidente que era a presença inimiga estrangeira brutal que provocou tão terrível sofrimento nestes países. Há vantagem em ter um inimigo tão claramente repugnante. Na Romênia, no começo do comunismo, tínhamos um fenômeno de grande alcance, que eram os vários grupos anticomunistas armados que viviam nas montanhas e eram maciçamente apoiados pela população. Ao longo dos anos esses grupos foram brutalmente reprimidos, assim como as pessoas que os ajudaram. Houve enormes perdas.”

De acordo com Cernea, a influência russa sobre os partidos políticos do leste europeu 
“é visível apenas aos que estão interessados no problema; isso não é abertamente discutido na mídia. Os políticos que levantam o assunto são taxados de guerreiros da Guerra Fria; as pessoas que exercem essa influência não vestem uniformes do Exército Vermelho e não matam, roubam ou estupram no meio da rua (eles têm mineradores de carvão para fazer isso quando acharem necessário). Eles são bem vestidos; eles falam romeno e empregam os melhores peritos em relações públicas do ocidente. O establishment pós-comunista no nosso país parece civilizado e ocidentalizado. Essas pessoas — filhos e filhas da Nomenklatura comunista — normalmente estudaram nas melhores universidades ocidentais e têm muito mais (e melhores) conexões no Ocidente do que temos nós anticomunistas.”

Sim, Anca-Maria Cernea falou uma profunda verdade, e devemos prestar atenção a ela se quisermos sobreviver. O câncer pode voltar a qualquer momento, e desta vez ele será mais traiçoeiro que antes. “Adian Nastase, por exemplo, é um intelectual elegante”, disse Cernea. 

“Ele é um rico colecionador e connoisseur de arte contemporânea. Ele pertence a uma geração totalmente diferente daquela de Ion Iliescu, que só conseguia falar a língua dos lenhadores e, portanto, incapaz de manter uma conversa com Nastase acerca das diferentes fases artísticas de Picasso. Essa aparência de refinamento ocidental é assaz ardilosa. O mesmo acontece a respeito do sucesso da lavagem cerebral comunista. A velha propaganda comunista estava em óbvia contradição com a realidade; todos podiam ver que era uma mentira, mas sua intenção era mais intimidar que convencer. Mas o marxismo cultural gramsciano, maciçamente importado para os nossos países, é aceito com menos reservas.”

Temos tanto que aprender em tão pouco tempo. Sim, o tempo está acabando. A remissão acabará em breve. Os russos ainda aderem aos preceitos da obra Soviet Military Strategy. As estruturas comunistas ocultas do leste europeu estão prontas para ressurgir. Mesmo agora essas forças estão trabalhando com as estruturas comunistas na América do Sul e do Norte. É o poder russo por trás deles todos; é ele que move a Grande Antítese rumo à Síntese revolucionária.

Por: Jeffrey Nyquist Do site: http://www.midiasemmascara.org/


Tradução: Leonildo Trombela Junior

quarta-feira, 1 de abril de 2015

TEMPOS DE CRISE

Razões para pessimismo não falta. Racionamento de água, energia, petrolão, operação lava-jato, previsão de queda no Pib, popularidade da classe política em níveis muito baixos, preços e juros subindo, endividamento da pessoas físicas em níveis elevados entre outros.

O que é mais grave, a crise econômica, moral ou ética? Várias das maiores autoridades do país estão sob investigação judicial com suspeitas de ilicitudes, conforme publicado nos principais jornais do país. Até o judiciário, supostamente o guardião da legalidade está sob suspeita. Crescentes dúvidas inclusive quanto à imparcialidade do Supremo Tribunal Federal, na sua atual configuração. O Ministério Público parece dar mostras do contrário.



A história vai se repetindo, com os governantes de plantão gerando despesas cada vez maiores. Quando a crise mostra sua cara mais perversa, novamente o cidadão de bem pagador de impostos é quem vai pagar a conta via elevação da carga tributária, taxação de importados, elevação de preços de produtos e serviços públicos, etc..


Teria dito Luiz XIV, Rei da França no século XVII, O Estado Sou Eu. Na atual conjuntura poderíamos dizer que os atuais ocupantes dos maiores cargos públicos via atos dizem O Estado é Meu. Parece que o orgulho de ser brasileiro vai aos poucos desaparecendo. Seria o país do futuro virando um país no descaminho? 

Porém é exatamente nas crises que aparecem as maiores oportunidades para quem se prepara para ela, não obstante haver grandes desafios.

Em épocas favoráveis é fácil crescer, podendo até tornar alguns displicentes e acomodados. Salários podem crescer acima da inflação e da produtividade. Mesmo assim lucros crescem, bem como a arrecadação de impostos. Desequilíbrios nas contas públicas deixam de merecer atenção.

Quando o ciclo virtuoso, que sempre termina cobra seu preço, a insustentabilidade destas situações se tornam visíveis. Para que o salário cresça acima da inflação a produtividade obrigatoriamente tem que crescer também acima da inflação e não menos do que o aumento salarial. Para ganhar mais o trabalhador tem que produzir mais, do contrário o produto ou serviço ficará cada vez mais caro e a venda vai cair, a empresa perde dinheiro, participação de mercado e o trabalhador seu emprego. A produtividade brasileira cresce menos do que os salários e isto é insustentável. O modelo de crescimento pelo consumo se esgotou. A próxima onda de crescimento somente virá pela via do investimento e após reformas necessárias. Investimento acontece em ambiente em que há confiança, o que não existe neste momento no país.

No modelo ideal caberia aos governos em suas várias instâncias, apenas as obrigações constitucionais, deixando a produção totalmente reservada à iniciativa privada, que via concorrência faz produtos e serviços melhores com preços mais baixos.

Um país cresce e se torna rico, sendo competitivo, justo, com estado pequeno forte e transparente.

Crises enfraquecem os incautos e fortalecem os que se preparam para estes momentos. Isto vale para as pessoas e para as organizações. Inovação, melhoria de processos, copiar o que outros já fazem bem feito, foco nas necessidades dos clientes, qualificação, criação de oportunidades aos colaboradores, geração de valor, são apenas algumas das atividades praticadas por organizações atentas. Como consequência colhem crescimento contínuo. Momentos de crises são as melhores oportunidades de vencer, ganhar participação de mercado, eliminar concorrentes despreparados e incompetentes. Estará entre os vencedores os que mais rapidamente se adaptarem às novas e cada vez mais rápidas mudanças inevitáveis.

Em momentos de crises, mudanças drásticas e rápidas podem acontecer, criando oportunidades para alguns e grandes riscos para outros. Ser um eterno aprendiz é uma defesa importante hoje e sempre. Fazer melhor hoje do que ontem, melhor amanhã do que hoje e assim sucessivamente.

Tudo isto pode ser muito difícil ou divertido, depende de cada um. O nível de abertura para novas abordagens fará grande diferença. 

Como será a vida das pessoas com alto grau de abertura às novidades cada vez mais rápidas? 

Como será a vida das pessoas com conhecimento presumido e baixo grau de abertura para novidades? 

É esperar para ver.

Por: Aloysio Tiscoski

segunda-feira, 30 de março de 2015

LEIA ESTE ARTIGO ANTES DE RECLAMAR DOS PREÇOS DOS OVOS DE PÁSCOA


Sim, você tem razão, os ovos de páscoa são realmente muito caros. Mas só há um culpado por isso: você. Leia esse artigo antes de sair por aí reclamando.


Ovo de Páscoa Alpino, 700g: R$ 65,00. 750g de Alpino em barras: R$ 26,80. Ficou indignado? É pra ficar. Pagamos mais de três vezes o preço do chocolate para tê-lo em formato de ovo. Tá certo que o formato diferente traz um prazer diferenciado, associações psicológicas, tem uma produção mais robusta, etc. Mas três vezes mais caro? Imagine o incremento na sua felicidade se, com o mesmo dinheiro, comprasse chocolate para durar até junho?

Algumas sórdidas pessoas defendem esse diferencial de preços. Dizem que uma casa é muito mais cara que a pilha de tijolos necessária para construí-la. Veja: construir uma casa exige conhecimento, tempo e dedicação. Já fazer chocolate em formato de ovo, para quem já sabe fazer chocolate, é fácil. Basta a fôrma do ovo. Além disso, barra e ovo satisfazem basicamente o mesmo desejo, ao contrário da casa e da pilha de tijolos. Não tem como defender, o preço é exorbitante, revoltante. O culpado por isso deveria se envergonhar.

E o culpado é você. Você, sem nenhuma coação ou coerção, compra um produto barato tornado caro exclusivamente por ter um formato bizarro. Você sai de casa, pega fila, abre a carteira e praticamente implora para a Cacau Show levar todo seu dinheiro. Sim, é isso mesmo que você faz, ainda que as fantasias que passam dentro da sua cabeça – e que você erroneamente considera serem seu “verdadeiro eu” – digam outra coisa. São seus atos que determinam o preço atual, e é com eles que você pode afetar o comportamento da empresa.

Nem todas as nossas ações, contudo, afetam-na. Deitar na cama e sentir raiva do preço do ovo? Isso não afeta o comportamento da empresa. Reclamar no facebook? Não afeta o comportamento da empresa. Ir ao mercado, comprar os ovos de presente e ainda levar um de Nhá Benta só pra você? Isso afeta. O ato mostra que, de acordo com seu próprio juízo, dadas as circunstâncias atuais, o ovo vale mais do que o preço cobrado. Ficar com aquele dinheiro e sem ovo é pior do que ficar com ovo e sem o dinheiro. Para a empresa, seu desejo é uma ordem. Ela fica sabendo, aliás, que cobrou pouco.


Este é um bom momento para lembrar uma profunda verdade que só a ciência econômica traz pra você: o preço de um bem – seu valor no mercado – não tem nada a ver com os custos de produção. Barra e ovo, afinal, têm custos similares. O que define o preço é a escassez relativa do bem, ou seja, a importância que os consumidores dão aos desejos que ele é capaz de satisfazer. A relação de causa e efeito é o contrário do que a maioria pensa: é a expectativa de demanda pelo produto final que determina o valor dos insumos da produção. Se ano que vem, por algum motivo insondável, ninguém mais quiser chocolate no formato ovo, sabe o que acontece com o preço das formas para produzir ovos de Páscoa? Isso mesmo.

As empresas, essas malvadas, gostariam de cobrar ainda mais caro. Elas gostariam que todo dia fosse Páscoa e que os brasileiros fossem viciados em ovos de chocolate todos os dias do ano. Gostariam, só que não podem. Quem determina o que elas podem ou não cobrar são os desejos dos consumidores; se ela cobra a mais ou a menos, seu lucro cai. E como ela quer lucrar, isso não faz o menor sentido. Talvez o que realmente nos revolte não seja o preço em si, mas o que ele revela sobre nós mesmos: que estamos dispostos a pagá-lo.

O lucro significa que a empresa se antecipou a uma demanda real e relativamente pouco atendida da população. É também um convite para outros gananciosos malvados produzirem ovos. Por isso mesmo a produção artesanal e caseira tem crescido. Pequenas empresas e doceiros autônomos tentam entrar no jogo. Infelizmente não é fácil, primeiro por conta das regulamentações estatais feitas sob medida para as grandes corporações do setor alimentício: encarecem e dificultam a produção de modo que só os big players consigam se adequar às regras.

O outro fator nessa concentração do mercado em poucas marcas é, novamente, você. A maioria dos consumidores não quer fugir do tradicional e confiável. O ovo artesanal feito pela tia do coleguinha do filho é mais barato, quiçá melhor, mas vai saber… E se vier feio? E se for ruim? E se ficar parecendo que você não deu muito valor ao presente? Já se vislumbra uma Páscoa destruída, o sentimento do fracasso e outras coisas terríveis que é melhor nem pensar.

Por trás dessa necessidade de conseguir um chocolate de marca adequada e em formato de ovo para o grande dia (pois se adiasse em uma semana sairia muito mais barato), está um dos motores mais poderosos de nossas ações menos inteligentes: a introjeção da expectativa social.


Você, leitora, quando chegar o domingo, ficará desapontada se receber barras normais ao invés de um ovo; mesmo que sejam muitas. Não vai tirar foto pro Instagram. Os olhos do seu filhinho, pai, não irão brilhar, mesmo que você explique a esperteza do negócio. Ou melhor, me corrijo: talvez a criança, o homem e a mulher todos entendessem e até preferissem essa compra mais econômica e duradoura, mas o medo que você tem de fugir à regra, fazer menos que o socialmente esperado e ser julgado por isso falará mais alto.

Você poderia comprar barras. Poderia comprar depois do domingo de Páscoa. O prazer seria o mesmo e o rombo na conta muito menor. Mesmo assim, ainda nos próximos dias, antes do fatídico domingo, você estará lá no supermercado, lamentando a própria burrice, mas comprando. Sim, é burrice, não significa nada, é uma convenção arbitrária e cara; mas você não quer falhar; você precisa se adequar à expectativa alheia, ou melhor, à expectativa que você tem da expectativa alheia. Interesses poderosos se alimentam desse sentimento.

Por isso, deixo para você que se revolta com os preços dos ovos e quer ver mudança neste mundo meu apoio e também um conselho. Recomendo, aproveitando a data, um pouco da culpa católica. Enquanto estiver à caça do ovo ideal nestes dias que antecedem a páscoa, talvez quando for deixar para comprá-lo na sexta-feira santa, talvez até na manhã do domingo, oferecendo o dobro ou o triplo do preço já exorbitante, sentirá dentro de si aquele ódio amargo contra a ganância dessas empresas. Nesse momento, pare, medite na lição espiritual deste texto, bata no peito e repita comigo: mea culpa, mea maxima culpa.

Ou então você pode libertar sua mente e ter uma Páscoa em termos que façam sentido para você, aceitando de olhos abertos o preço das próprias escolhas. Pode ainda entrar na dança e aprender a fazer e vender seus próprios ovos de Páscoa ou criar novas e inesperadas formas de celebrar a data. E daí talvez você descubra a relação entre lucrar e não se curvar à expectativa alheia.

Por: Joel Pinheiro  Paulista, formado em Economia pelo Insper e mestre em Filosofia pela USP. Do site: http://spotniks.com

SOBRE PREPARAÇÕES BÉLICAS E ESTRUTURAS SECRETAS - PARTE 1

“Como se viu nos capítulos anteriores sobre a natureza e metodologia necessárias à guerra moderna, é praticamente impensável vencê-la sem a minuciosa e oportuna preparação do país e das forças armadas.”

V. D. Sokolovskii, Soviet Military Strategy, p. 281

Um artigo recente no The European diz que as sanções que a EU impôs à Rússia foram mal concebidas. “A política de sanções não está funcionando de maneira alguma”, diz o artigo. As sanções falharam porque Putin “controla as percepções” da população russa. Enquanto isso, sentimentos anti-guerra estão ganhando espaço na Alemanha e em toda Europa. A propaganda russa está gradualmente virando o jogo. Isso revela com clareza que o Ocidente não tem estratégia nenhuma, enquanto a Rússia é totalmente estratégica.

O capítulo 7 da clássica obra do marechal Sokolovskii, Soviet Military Strategy, é intitulada “Preparação de um país para repelir agressões”. É possivelmente o capítulo mais importante do livro, pois explica os passos necessários caso a vitória for o que se pretende assegurar. O objetivo dessa preparação inicial é tomar a iniciativa estratégica. A própria sociedade deve estar pronta para “resistir” a um “ataque nuclear maciço do inimigo, minimizando as perdas” e mantendo, enquanto isso, “o moral em alta e o anseio de vitória no seio da população”.

Há três “linhas mestras” na preparação de uma guerra de acordo com os estrategistas soviéticos: (1) preparação das forças armadas; (2) preparação da economia nacional e (3) preparação da população. No que diz respeito à preparação das forças armadas, é necessário construir um arsenal de mísseis com ogivas nucleares. Essas são as armas principais de uma guerra; todas as outras têm importância secundária. Até hoje a Rússia mantém o mais avançado arsenal nuclear do mundo, e agora já se reconhece que a Rússia possui superioridade nuclear no campo de batalha europeu.

No que diz respeito à preparação da economia nacional para guerra, a Rússia continua a observar os princípios postulados pelo livro de Sokolovskii. Hoje as indústrias militares foram transferidas para cavernas subterrâneas, bunkers e túneis. Isso é algo que foi trabalhado por anos pelos russos. Cidades subterrâneas secretas, tal como a que está localizada sob a montanha Yamantau, possivelmente possuem mísseis nucleares e fábricas de ogivas. Yamantau é um dos vários locais subterrâneos superprotegidos que podem, com efeito, dar à Rússia bases militares-industriais virtualmente inatingíveis na ocasião de uma guerra global.

Seja importante o quanto for a preparação das forças armadas ou da economia nacional, os estrategistas soviéticos sempre insistiram que a população em geral não deve ser deixada de lado nas preparações bélicas. Guerras modernas não são travadas apenas por forças militares. Elas são travadas pelo povo inteiro. Deve-se ensinar a população a proteger-se de um ataque nuclear e a se mobilizar como uma milícia capaz de realizar várias funções de emergência. Mas o mais importante de tudo isso é a “preparação política do moral do povo”. Essa preparação é considerada decisiva (v. pp. 458-459 da tradução inglesa de Soviet Military Strategy). A preparação da população para a guerra traduz-se em doutrinação ideológica. Um espírito de patriotismo deve ser inculcado: “amor pela Pátria e... instigar no povo a prontidão para suportar qualquer dificuldade da guerra pelo bem da vitória”. A estrita doutrinação que retrata a perversidade inimiga é indispensável. “Ódio ao inimigo deve incitar o desejo de destruir as forças armadas e o potencial industrial-militar do agressor e conquistar a vitória completa em uma guerra justa”. Ao mesmo tempo, o povo “deve estar imbuído da crença no poder das nossas Forças Armadas e nutrir amor por eles”.

Hoje essa é a retórica da mídia russa. A América é culpada pela guerra na Ucrânia. Diz-se que a América planeja a destruição da Rússia. Ao mesmo tempo os russos dizem que seu maquinário bélico é invencível (NBC News noticia: “Vladimir Putin diz que o poderio militar russo não tem adversário à altura”). O moral político do povo russo está sendo reforçado através de mensagens positivas desse tipo. Por outro lado, na Europa ocidental só há discórdia e confusão. Não há uma voz de autoridade jactando-se da força militar da OTAN. O povo está cheio de incerteza e medo. A ideia de uma independência ucraniana foi posta em questão. Enquanto estas palavras foram escritas, o parlamento russo esteve considerado se declarava a unificação alemã em 1990 como ilegal.

Como afirma o texto de Soviet Military Strategy: “A preparação política do moral do povo para a guerra é dirigida [...] por todas organizações públicas e governamentais do país e por todo o sistema educacional e de informações públicas. Para esse propósito, todos os instrumentos de propaganda e agitação são usados...” (E sim, isso inclui o parlamento, que sempre foi o carimbo das velhas estruturas soviéticas — escondidas por trás de falsos partidos políticos e falsas regras parlamentares e falsas constituições.)

A razão para trazer à tona um velho livro militar soviético é para mostrar que a Rússia ainda está seguindo as velhas ideias soviéticas. Ao mesmo tempo, a América não considera seriamente preparar-se ela mesma para uma guerra. O lado americano não coloca suas principais indústrias militares sob montanhas e não ensina sua população os princípios de defesa civil nuclear (como os russos fazem). Mais crítico ainda é o fato que o povo americano jamais recebeu qualquer ensinamento escolar sobre a ameaça russa. Com raras exceções, as escolas americanas não ensinam seus alunos sobre quem são os inimigos da América. Isso sequer foi feito no auge da Guerra Fria. Na verdade, os marxistas estavam ocupados infiltrando-se nas escolas americanas e universidades durante os anos 1970 e 1980. Era mais provável que os alunos americanos recebessem uma doutrinação marxista mais sólida (que aquela repassada nos países comunistas) do que uma orientação apropriada acerca da ameaça comunista aos Estados Unidos. E assim, jamais houve similaridade entre as preparações bélicas russas e americanas. Esse é um fato que deveria causar profundo espanto, pois ele desmente a conhecida propaganda do todo-poderoso complexo militar-industrial americano.

Infelizmente, hoje em dia não há uma séria preparação bélica nos EUA. A América entrou em uma suposta guerra contra o “terrorismo”. Enquanto isso os russos espreitam-se no subterrâneo e preparam-se para um tipo diferente de guerra — posicionando misseis, navios de guerra e forças terrestres. Que já entramos em uma fase de pré-guerra deveria estar abundantemente claro. O general da OTAN, Frederick Hodges, disse recentemente em entrevista ao Wall Street Journal: “Acredito que os russos estão se mobilizando agora para uma guerra que eles pensam que vai acontecer em cinco ou seis anos”. O ex-chefe da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, alertou acerca da propabilidade de os russos atacarem um dos estados bálticos. “Isso não se trata da Ucrânia”, disse Rasmussen ao Daily Telegraph no começo de fevereiro. “Putin quer reestabelecer a Rússia à sua antiga posição de grande potência”.

Contudo, Rasmussen e Hodges foram modestos em suas estimativas. Não se trata de restaurar a grandeza passada da Rússia. Trata-se de uma mudança brusca no balanço das forças que fará uma reviravolta completa na ordem global. É esse o jogo que está sendo jogado. É essa a estratégia que está sendo usada. Tratam-se de intenções revolucionárias que querem transformar o mundo. Mas nossos generais e estadistas continuam a pensar pequeno e acreditam apenas no que está diante dos seus olhos. É necessário que vejam a coisa com os olhos de um estrategista. Deve-se reconhecer o padrão, a nuance, a relação entre ações do passado e do presente. Só assim pode o observador ver o que está para vir.

Quando o Secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patrushev, diz que a América está “tentando envolver a Federação Russa num conflito entre Estados” com fins de instigar uma mudança de regime em Moscou, ele está criando o pretexto e a cortina de fumaça para uma vasta mobilização militar russa que vai muito além da restauração da URSS. “Os americanos estão tentando [...] desmembrar nosso país através dos eventos na Ucrânia” diz Patrushev. Então o que merece a América em resposta? Afinal, a América está tentando “desmembrar” a Rússia. Então o certo e apropriado é que se desmembre a América. É isso que está dizendo Patrushev; é esse o significado real dos seus dizeres. Quando Rasmussen diz que toda a coisa “não se trata da Ucrânia” temos de concordar. Ainda assim ele não percebeu qual é o verdadeiro fim da mobilização russa. O verdadeiro alvo não é a OTAN, mas a América. E quando a América for derrotada, todos os países da Terra curvar-se-ão perante a Rússia.

Há todas as razões do mundo para suspeitar do que está acontecendo na Ucrânia, pois a crise em Kiev acaba por servir de pretexto contínuo para a mobilização militar e serve de justificativa para atacar os Estados Unidos, especialmente se os americanos derem armas para Kiev. A crise é fabricação de Putin, que manda ameaças aos montes para a Europa. Ele pode testar o Artigo 5 da OTAN; ele pode forçar a situação até surgir um racha na aliança. Os alemães por acaso querem suas cidades devastadas? E poloneses e romenos?

E quanto à América?

Mesmo na atual ocasião de mobilização russa, o lado americano se implode unilateralmente e espontaneamente. Veja a manchete: Sevier o corte orçamentário, Rússia e China superarão nossa tecnologia militar,diz oficial do alto escalão do Pentágono. Prepare-se para China e Rússia superar-nos militarmente, pois esse é o resultado do que vem acontecendo. O Vice-Secretário de Defesa, Robert Work, disse ao Congresso que os cortes orçamentários estão acabando com a vantagem militar tecnológica americana em relação à Rússia e China. E por que o presidente insiste em tal fórmula? Por que ele se recusa a negociar uma solução orçamentária mais sensata com os republicanos no Congresso?

O ex-prefeito de New York, Rudy Giuliani, disse ao New York Post que Obama foi influenciado por um comunista, Frank Marshall Davis, desde os nove anos de idade. Giuliani também falou do papel do Rev. Jeremiah Wright. “Ele passou 17 anos na igreja de Jeremiah Wright, e esse é o sujeito que disse ‘Deus amaldiçoe a América, e não Deus abençoe a América’... [e] Obama jamais deixou essa igreja”, disse Giuliani. Parece que o Prefeito Giuliani fez uma importante observação que deveria ter sido feita por vários outros políticos há muito tempo. Mas eles são todos covardes, incapazes de abrir suas bocas exceto para falar coisas patéticas e sem importância.

É evidente que não há chance de o país se colocar ao lado do ex-prefeito nova-iorquino. Muito provavelmente o Partido Republicano se distanciará de Giuliani e continuará no caminho da mediocridade. Isso mostra com clareza que não somos mais americanos, mas sim que “somos do mundo”. Essa mentira abjeta, que conta uma história que o próprio povo não pode contar de si, é agora a base do pensamento nacional — que sequer é nacional. Somos consumidores, cidadãos do planeta. Esse é a vaidade do momento que pode levar milhões à morte. O perigoso contrassenso é perigoso, e não importa o quão confortável ele faça você se sentir. O conforto, junto de um tratado desarmamentista, fará com que você seja alvejado por uma bomba nuclear.

Por:Jeffrey Nyquist  Do site: http://www.midiasemmascara.org


Tradução: Leonildo Trombela Junior


sexta-feira, 27 de março de 2015

PRAZO DE VALIDADE

Aquela história da mentira infindavelmente repetida que se torna verdade é ela própria uma mentira infindavelmente repetida, que pode ser usada com algum sucesso se você não acredita nela mas leva aos mais desastrosos resultados quem acredita. Na maior parte dos casos, ela não passa de uma autopersuasão de avestruz, boa para induzir um cretino a caminhar com uma autoconfiança de sonâmbulo em terreno minado. O próprio dr. Joseph Goebbels, a quem se credita a invenção dessa frase, terminou muito mal.


Chavões e frases feitas são afirmações gerais de validade muito relativa, a que você apela como premissas autoprobantes para sustentar outras afirmações que em geral não têm validade nem mesmo relativa. São as ferramentas de eleição do automatismo mental, criadas para você pensar que está pensando quando na verdade está apenas falando. São o Petit Larousse do psitacismo.

O Príncipe de Maquiavel, o Manifesto Comunista e as obras de Antonio Gramsci são depósitos clássicos onde os necessitados sempre encontram as fórmulas de que necessitam para realizar, de novo e de novo, a proeza de não entender coisíssima nenhuma.

O prestígio do maquiavelismo é algo que não cessa de me deslumbrar. Como é possível que tantas pessoas aparentemente inteligentes continuem seguindo com devoção de coroinhas as lições de sucesso de um bobão cronicamente fracassado?

E como é possível alguém continuar acreditando na teoria marxista da luta de classes depois que Lênin demonstrou, por palavras e atos, que se queriam mesmo uma revolução proletária era preciso realizá-la sem proletários?

Desde que Jim Fixx, o inventor dos exercícios aeróbicos, morreu de ataque cardíaco em pleno jogging, aos 52 anos de idade, comecei a desconfiar que todas as fórmulas infalíveis são um perigo para a humanidade. A verdade é matéria de intelecção direta, o ato mais individual e intransferível que existe. Tão logo se cristaliza numa fórmula uniformemente repetível, a fórmula se torna o melhor pretexto para não ter intelecção nenhuma.

O sinal mais visível de esgotamento de uma corrente de idéias é quando seus porta-vozes insistem em apegar-se aos seus chavões consagrados justamente nas horas de desespero e confusão em que essas chavões se relevam mais deslocados da situação concreta, mais incapazes de descrever o que está se passando.

Quando noventa e três por cento dos brasileiros expressam claramente seu desprezo ao governo Dilma, não falta nos altos escalões do esquerdismo quem diga que isso é a “elite” voltada contra “o povo”. Nunca imaginei que, mesmo no mais excelso patamar de desenvolvimento econômico concebível, pudesse uma nação ter sete por cento de povo e noventa e três por cento de elite.

Em plena efervescência geral contra a roubalheira petista, Frei Betto, André Singer e mais dois bonecos de ventríloquo se reúnem na Apeoesp para discutir “a ameaça conservadora aos direitos sociais”, quando é patente que em todos os protestos populares anti-Dilma ninguém disse uma palavra contra “direito social” nenhum, exceto o direito social de meter a mão nos cofres públicos.

Quando milhões de brasileiros estavam batendo panelas em protesto contra o último discurso da presidenta, um líder petista, com ares de quem revela preciosa inside information, afirmou “haver indícios” de que os partidos de oposição haviam “financiado o panelaço”. Até agora me pergunto como, por que meios, mediante quais artifícios bancários esotéricos seria possível financiar um panelaço.

E, é claro, não poderia faltar quem, rastreando as pistas mais sutis e inefáveis, visse no panelaço a mão sinistra do governo de Washington. William F. Engdahl, o Emir Sader americano, nosso já velho conhecido (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/100503dc.html ehttp://www.olavodecarvalho.org/semana/100623dc.html), jura até que o “Movimento Passe Livre” foi inventado pelo sr. Joe Biden para “desestabilizar o governo Dilma Rousseff”, quando no Brasil até as crianças sabem que foi criado pelo próprio governo Dilma Rousseff para desestabilizar a administração estadual paulista.

Em suma, aconteça o que acontecer, o cérebro da esquerda, em avançado estado de decomposição, já não sabe senão repetir os mesmos chavões de sessenta, setenta anos atrás, desejando ardentemente que a mentira repetida não apenas seja acreditada, mas adquira, pela força mágica da repetição, a virtude transfigurante de uma profecia auto-realizável.

É verdade que a debacle intelectual não traz necessariamente a derrota política. Ao contrário. A própria história do PT mostra que é possível um partido alcançar o cume do sucesso político justamente numa época em que, intelectualmente, o seu discurso já estava morto e enterrado. Mas, quando a glória política começa a declinar, não há sinal de impotência mais deplorável e patético do que o esforço de apegar-se, retroativamente, a um discurso já mil vezes desmoralizado. As mentiras repetidas podem, às vezes, passar por verdades. Mas, como todos os utensílios, têm um prazo de validade limitado.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comércio. 
Do site: http://www.midiasemmascara.org    http://olavodecarvalho.org

A FILOSOFIA DO HOMEM COMUM

1. O capitalismo tal como é e tal como é visto pelo homem comum


O surgimento da economia como nova forma de conhecimento foi um dos eventos mais significativos da história da humanidade. Ao preparar o caminho para a empresa capitalista privada, ela transformou, em poucas gerações, todos os acontecimentos humanos de forma mais radical do que milhares de anos anteriores haviam conseguido. Do dia em que nascem até o dia em que morrem, os habitantes de um país capitalista são beneficiados a cada minuto pelos empreendimentos maravilhosos do modo capitalista de pensar e de agir. 

A coisa mais impressionante com relação à mudança sem precedentes das condições universais proporcionadas pelo capitalismo é o fato de ele ter sido realizado por um pequeno número de autores e por uma quantidade pouco maior de homens de estado que assimilaram os ensinamentos desses autores. Não apenas as massas indolentes mas também a maioria dos homens de negócios que, por meio do seu comércio, tornaram eficientes os princípios do laissez-faire não conseguiram compreender as formas essenciais como agem esses princípios. Mesmo no apogeu do liberalismo, somente alguns tiveram conhecimento integral do funcionamento da economia de mercado. A civilização ocidental adotou o capitalismo por recomendação de uma pequena elite. 

Houve, nas primeiras décadas do século XIX, muitas pessoas que perceberam o seu desconhecimento dos problemas em questão como uma grave falha e desejaram corrigi-la. No período decorrido entre Waterloo e Sebastopol, nenhum livro foi mais avidamente consumido na Grã-Bretanha do que os tratados sobre economia. Mas a moda logo passou. O assunto era intragável para o leitor comum. 

A economia é, por um lado, tão diferente das ciências naturais e da tecnologia e, por um outro, da história e da jurisprudência, que parece estranha e antipática ao iniciante. Sua peculiaridade heurística é vista com desconfiança pelos que pesquisam em laboratórios, arquivos ou bibliotecas. Sua peculiaridade epistemológica parece absurda para os fanáticos limitados do positivismo. As pessoas gostariam de encontrar num livro de economia aquilo que se enquadra perfeitamente com a imagem preconcebida que têm do que a economia deve ser, isto é, uma disciplina moldada de acordo com a estrutura lógica da física ou da biologia. Ficam confusas e desistem de lutar seriamente com problemas cuja análise requer um forte esforço mental. 

O resultado dessa ignorância é que as pessoas atribuem todo o aperfeiçoamento das condições econômicas ao progresso das ciências naturais e da tecnologia. Em seu modo de ver, prevalece no decorrer da história da humanidade uma tendência automática no sentido do avanço progressivo das ciências naturais experimentais e de sua aplicação na solução dos problemas tecnológicos. Essa tendência é irresistível e inerente ao destino da humanidade, e sua ação se exerce independentemente da organização política e econômica da sociedade. Ainda no modo de ver dessas pessoas, os inéditos progressos tecnológicos dos últimos duzentos anos não foram causados ou favorecidos pelas políticas econômicas da época, não foram uma conquista do liberalismo clássico, do livre comércio, dolaissez-faire e do capitalismo. Prosseguirão, portanto, sob qualquer outro sistema de organização econômica da sociedade. 

As doutrinas de Marx foram bem aceitas simplesmente porque adotaram essa interpretação popular dos acontecimentos e a recobriram com um véu pseudofilosófico que as tornou agradáveis tanto ao espiritualismo hegeliano quanto ao rude materialismo. No esquema de Marx, as "forças materiais produtivas" são uma entidade sobre-humana independente da vontade e das ações dos homens. Seguem seu próprio caminho que é determinado pelas impenetráveis e inevitáveis leis de um poder mais alto. Transformam-se misteriosamente e forçam a humanidade a ajustar sua organização social a essas transformações; porque as forças materiais produtivas evitam apenas uma coisa: ser aprisionado pela organização social da humanidade. A matéria essencial da história consiste na luta das forças materiais produtivas para se livrarem das algemas sociais pelas quais estão agrilhoadas. 

Outrora, ensina Marx, as forças materiais produtivas estavam contidas na forma da manufatura e, assim, harmonizaram as questões humanas de acordo com o padrão do feudalismo. Quando, posteriormente, impenetráveis leis que determinam a evolução das forças materiais produtivas substituíram a manufatura pela fábrica a vapor, o feudalismo teve que ceder lugar ao capitalismo. Desde então, as forças materiais produtivas se desenvolveram ainda mais e sua forma atual exige de modo imperativo a substituição do capitalismo pelo socialismo. Quem tentar impedir a revolução socialista está diante de uma árdua tarefa. É impossível deter a maré do progresso histórico. 

As ideias dos chamados partidos de esquerda diferem entre si de várias maneiras. Concordam, porém, em um ponto. Todos consideram o aperfeiçoamento material progressivo como um processo automático. O membro do sindicato norte-americano acha que o seu padrão de vida é garantido. O destino determinou que ele deve desfrutar do conforto que não estava ao alcance mesmo das pessoas abastadas das gerações anteriores e que ainda não está ao alcance de quem não é norte-americano. Não lhe ocorre que o "individualismo grosseiro" do mundo dos negócios possa ter desempenhado algum papel no surgimento do que se chama o "estilo de vida americano". A seus olhos, "administrar" corresponde às injustas pretensões dos "exploradores" que planejam despojá-lo do patrimônio que lhe cabe por nascença. Ele acha que, no curso da evolução histórica, há uma tendência incoercível ao contínuo aumento da "produtividade" do seu trabalho; julga evidente que os frutos desse progresso pertencem-lhe exclusivamente e por direito. Teria sido por seu mérito que — na era do capitalismo — (o quociente) entre o valor dos produtos gerados pelas indústrias processadoras e o número de mãos empregadas a produtividade tendeu a aumentar. 

A verdade é que o aumento da assim chamada produtividade do trabalho deve-se ao emprego de melhores ferramentas e máquinas. Cem operários numa fábrica moderna produzem numa unidade de tempo muito mais do que cem operários costumavam produzir nas oficinas dos artesãos pré-capitalistas. Tal progresso não depende de uma maior destreza, competência ou empenho da parte de cada operário. (De fato a competência do artesão medieval era muito superior à de inúmeras categorias das atuais manufaturas.) Decorre do emprego de ferramentas e de máquinas mais eficientes que, por sua vez, resultam da acumulação e do investimento de mais capital. 

Os termos capitalismo, capital e capitalista foram empregados por Marx e são hoje empregados pela maioria das pessoas — inclusive pelas agências oficiais de propaganda do governo dos Estados Unidos — com conotação infamante. Essas palavras, porém, indicam com pertinência o principal fator cuja ação produziu todos os empreendimentos maravilhosos dos últimos duzentos anos: a melhoria sem precedentes do padrão médio de vida para uma população constantemente maior. O que distingue as condições industriais modernas nos países capitalistas das condições das eras pré-capitalistas assim como das que existem hoje nos países chamados subdesenvolvidos é o volume de oferta de capital. Nenhum progresso tecnológico funciona se o capital necessário não for previamente acumulado por poupança. 

Poupar, acumular capital é a atividade que transformou, passo a passo, a complicada procura de alimento pelo homem das cavernas em formas modernas da indústria. Os arautos dessa evolução foram as ideias que criaram a estrutura institucional no interior da qual a acumulação de capital foi preservada através do principio da propriedade privada dos meios de produção. Cada passada em direção à prosperidade é efeito da poupança. Os mais engenhosos inventos tecnológicos seriam praticamente inúteis se os bens de capital indispensáveis ao seu uso não fossem acumulados pela poupança. 

Os empresários empregam os bens de capital tornados disponíveis pelos poupadores para a satisfação mais econômica das necessidades mais urgentes dentre as necessidades ainda não satisfeitas dos consumidores. Junto com os tecnólogos, na busca de aperfeiçoar os métodos de processamento, os empresários, próximos aos poupadores, desempenham papel ativo no curso dos acontecimentos, o que é chamado de progresso econômico. O resto da humanidade aproveita das atividades dessas três classes de pioneiros. Mas, quaisquer que sejam suas ações, eles apenas se beneficiam das mudanças para as quais nada contribuíram. 

O aspecto principal da economia de mercado está no fato de ela distribuir a maior parte das melhorias conseguidas pelos esforços das três classes progressistas — os que poupam, os que investem em bens de capital e os que elaboram novos métodos para a aplicação dos bens de capital — à maioria das pessoas não progressistas. A acumulação de capital que ultrapassa o aumento da população, por um lado, eleva a produtividade marginal do trabalho e, por outro, barateia os produtos. O processo do mercado oferece ao homem comum a oportunidade de colher os frutos fornecidos pelos feitos de outras pessoas. Ele força as três classes progressistas a servir da melhor maneira possível à maioria não progressista. 

Todos têm a liberdade de se juntarem às fileiras das três classes progressistas da sociedade capitalista. Elas não são castas fechadas. Ser membro delas não é privilégio concedido ao indivíduo por uma autoridade maior ou privilégio herdado de um antepassado. Também não são clubes, e seus membros não têm o direito de impedir a entrada de nenhum recém-chegado. O indispensável para tornar-se capitalista, empresário ou projetista de novos métodos tecnológicos é ter inteligência e força de vontade. O herdeiro de um milionário goza de certa vantagem pois começa em condições mais favoráveis que outros. Mas sua tarefa na disputa pelo mercado não é fácil e pode, às vezes, tornar-se mais cansativa e menos recompensadora do que a de um recém-chegado. Ele tem de reorganizar sua herança de modo a ajustá-la às mudanças das condições do mercado. Assim, por exemplo, os problemas que o herdeiro de um "império" ferroviário teve de enfrentar, nas últimas décadas, foram certamente mais complicados do que os encontrados por alguém que, vindo do nada, tenha entrado no transporte rodoviário ou aéreo. 

A filosofia popular do homem comum deturpa de modo lamentável todos esses fatos. No entender de Fulano de Tal, todas essas novas indústrias que lhe fornecem produtos desconhecidos de seu pai surgiram por obra de uma entidade mítica chamada progresso. A acumulação de capital, o empresariado e a inventividade tecnológica em nada contribuíram para a geração espontânea da prosperidade. Se alguém tem de ser favorecido com o que Fulano de Tal julga ser um aumento da produtividade do trabalho, deve ser o operário na linha de montagem. Infelizmente, nesta terra cheia de pecados há a exploração do homem pelo homem. O mundo dos negócios rapa tudo e deixa, como indica o Manifesto Comunista, ao criador de todas as coisas boas, ao trabalhador manual, apenas "o de que ele necessita para o seu sustento e para a propagação de sua raça". Em consequência, "o operário moderno, em vez de acompanhar o progresso da indústria, afunda cada vez mais... Torna-se um indigente, e a indigência cresce mais rápido do que a população e a riqueza". Os autores dessa descrição da indústria capitalista são considerados nas universidades como os maiores filósofos e benfeitores da humanidade; seus ensinamentos são aceitos com respeito e reverência por milhões de pessoas cujas casas, além de outros acessórios, estão equipadas com aparelhos de rádio e de televisão. 

A pior exploração, segundo professores, líderes "trabalhistas" e políticos, é a efetuada pelos grandes negócios. Eles não percebem que a característica dos grandes negócios é a produção em massa a fim de satisfazer as necessidades das massas, no regime capitalista, os próprios operários são, direta ou indiretamente, os principais consumidores de tudo o que as fábricas estão produzindo. 

No início do capitalismo, ainda havia um considerável lapso de tempo entre o surgimento de uma novidade e o momento em que ela se tornava acessível às massas. Há aproximadamente sessenta anos, Gabriel Tarde tinha razão ao afirmar que uma inovação industrial é a extravagância de uma minoria até tornar-se a necessidade de todos; o que antes era considerado extravagância tornava-se depois um requisito habitual de tudo e de todos. Essa afirmação ainda cabia com respeito à popularização do automóvel. Porém, a produção em larga escala pelas grandes empresas diminuiu e quase eliminou esse lapso de tempo. As modernas inovações só podem ser produzidas com lucro se estiverem de acordo com os métodos da produção de massa e, então, tornarem-se acessíveis a todos no exato momento de seu lançamento. Não houve, por exemplo, nos Estados Unidos, nenhum período, em que se pudesse notar que desfrutar de inovações tais como televisão, meias de náilon ou comida enlatada para bebês era reservado a uma minoria abastada. Os grandes negócios tendem, na verdade, a uma padronização das formas de consumo e de divertimento do povo. 

Ninguém sofre necessidade na economia de mercado pelo fato de algumas pessoas serem ricas. As posses dos ricos não são a causa da pobreza de ninguém. O processo que torna algumas pessoas ricas é, ao contrário, o corolário do processo que aumenta a satisfação das necessidades de muitos. Os empresários, os capitalistas e os tecnólogos prosperam na medida em que melhor atendem aos consumidores. 

2. A frente anticapitalista

Desde o início do movimento socialista e dos esforços para restaurar as políticas intervencionistas das eras pré-capitalistas, tanto o socialismo quanto o intervencionismo ficaram totalmente desacreditados aos olhos dos que entendem de teoria econômica. Mas as ideias dos revolucionários e dos reformadores encontraram respaldo junto à grande maioria de pessoas ignorantes levadas exclusivamente pelas fortes paixões humanas de inveja e de ódio. 

A filosofia social do Iluminismo, que preparou o caminho para a efetivação do programa liberal — liberdade econômica, consumada na economia de mercado (capitalismo), e no seu corolário constitutivo, o governo representativo —, não propôs a extinção dos três velhos poderes: monarquia, aristocracia e Igreja. Os liberais europeus preconizavam a substituição do absolutismo real pela monarquia parlamentar, e não o estabelecimento de um governo republicano. Queriam abolir os privilégios dos aristocratas, mas não destituí-los de seus títulos, brasões e patrimônio. Lutavam para garantir a todos a liberdade de consciência e para terminar com a perseguição de dissidentes e hereges, mas também preocupavam-se em conceder a todas as Igrejas e seitas a mais perfeita liberdade para a consecução de seus objetivos espirituais. Assim, os três grandes poderes do ancien regime foram preservados. Podia-se esperar que príncipes, aristocratas e clérigos, que infatigavelmente declaravam seu conservadorismo, estivessem preparados para fazer oposição ao ataque socialista dirigido aos valores da civilização ocidental. Afinal de contas, os arautos do socialismo não esconderam que, sob o totalitarismo socialista, não sobrava lugar para o que eles chamaram, de remanescentes da tirania, do privilégio e da superstição. 

Entretanto, até nesses grupos privilegiados, o ressentimento e a inveja prevaleceram sobre o raciocínio isento. Praticamente eles ficaram de braços dados com os socialistas, desprezando o fato de o socialismo propor também o confisco de seus bens e o de não poder haver nenhuma liberdade religiosa sob um regime totalitário. O Hohenzollern na Alemanha inaugurou uma política que foi chamada por um observador norte-americano de socialismo monárquico[1]. Os autocráticos Romanoffs da Rússia usaram o sindicalismo trabalhista como arma contra os esforços "burgueses" no sentido de estabelecer um governo representativo.[2] Em todos os países europeus, os aristocratas virtualmente cooperaram com os inimigos do capitalismo. Por toda parte, eminentes teólogos tentaram desacreditar o sistema de livre empresa e, como consequência, apoiar tanto o socialismo quanto o intervencionismo radical. Alguns dos mais destacados líderes do protestantismo atual — Barth e Brunner na Suíça, Miebuhr e Tillich nos Estados Unidos, e o último arcebispo de Canterbury, William Temple — condenam abertamente o capitalismo e ainda atribuem às supostas falhas do capitalismo a responsabilidade por todos os excessos do bolchevismo russo. 

É de se perguntar se Sir William Harcourt estava certo quando, há mais de 60 anos, proclamou: Agora somos todos socialistas. O fato é que hoje, governos, partidos políticos, professores e escritores, ateus militantes e teólogos cristãos são praticamente unânimes em rejeitar apaixonadamente a economia de mercado e em louvar os supostos benefícios da onipotência do estado. A geração presente está sendo educada num ambiente preso às ideias socialistas. 

A influência da ideologia pró-socialista contribui para o modo como a opinião pública, quase sem exceção, explica as razões que induzem as pessoas a filiar-se aos partidos socialistas ou comunistas. Ao lidar com a política interna, supõe-se que "natural e necessariamente" os que não são ricos são favoráveis aos programas radicais — planejamento, socialismo, comunismo —, ao passo que apenas os ricos têm motivos para votar pela preservação da economia de mercado. Esta suposição dá como evidente a principal ideia socialista segundo a qual os interesses econômicos das massas são prejudicados pela ação do capitalismo, em proveito exclusivo dos "exploradores", e que o socialismo elevará o padrão de vida do homem comum. 

Contudo, as pessoas não desejam o socialismo porque sabem que o socialismo vai melhorar suas condições de vida, nem rejeitam o capitalismo porque sabem que é um sistema nocivo a seus interesses. São socialistas porque creem que o socialismo vai melhorar suas condições de vida e odeiam o capitalismo porquecreem que ele as prejudica. São socialistas porque estão cegas pela inveja e pela ignorância. Recusam-se obstinadamente a estudar economia e desprezam a devastadora crítica que os economistas fazem ao planejamento socialista porque, a seus olhos, por ser uma teoria abstrata, a economia é simplesmente absurda. Fingem acreditar apenas na experiência. Mas também obstinadamente recusam-se a tomar conhecimento de inegáveis fatos da experiência, como, por exemplo, que o padrão de vida do homem comum é incomparavelmente mais elevado na América capitalista do que no paraíso socialista soviético. 

Ao lidar com a situação dos países economicamente atrasados, os indivíduos mostram o mesmo raciocínio errôneo. Acham que esses povos devem simpatizar "naturalmente" com o comunismo porque estão atingidos pela pobreza. É óbvio que as nações pobres querem livrar-se da penúria, na busca de melhora das suas condições insatisfatórias, elas devem, portanto, adotar o sistema de organização econômica da sociedade que melhor atenda a esse objetivo; devem decidir a favor do capitalismo. Iludidas, porém, por hipotéticas ideias anticapitalistas, elas tornam-se favoráveis ao comunismo. De fato, é bem paradoxal que os líderes desses povos orientais, ao mesmo tempo em que invejam a prosperidade das nações ocidentais, rejeitam os métodos que trouxeram prosperidade ao ocidente e se deixam fascinar pelo comunismo russo que mantém pobres os russos e seus adeptos. E, mais paradoxal ainda, é o fato de os norte-americanos, que desfrutam dos produtos gerados pela empresa capitalista exaltarem o sistema soviético e considerarem perfeitamente "natural" que os países pobres da Ásia e da África prefiram o comunismo ao capitalismo. 

As pessoas podem discordar quanto a saber se todos devem estudar economia a fundo. Mas uma coisa é certa. O homem que fala em público ou escreve sobre a oposição entre capitalismo e socialismo, sem estar bem familiarizado com tudo o que a economia tem a dizer sobre o assunto, não passa de um tagarela irresponsável. 



NOTAS

[1] Cf. Elmer Roberts, Monarchical Socialism in Germany, New York, 1913.

[2] Cf. Mania Gordon, Workers Before and After Lenin, New York, 1941, pp. 30e seg.

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Ludwig von Mises  foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico.  Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política.  Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico.  Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de "praxeologia".