terça-feira, 7 de abril de 2015

O LIVRO DA SELVA

É fácil rir dos selvagens. Sobretudo quando acreditamos sinceramente que não somos como eles. Engano.


Em 2001, o Taleban controlava o Afeganistão e ordenou a destruição dos Budas de Bamiyan, patrimônio cultural da humanidade. Foram as primeiras risadas. De horror.

Em 2015, vieram as segundas. Com o pessoal do Estado Islâmico, no museu iraquiano de Mossul, rebentando às marretadas as peças escultóricas do lugar.

Nos dois casos, a justificativa foi a mesma: o islã radical, que exige submissão completa ao fundamentalismo dos fanáticos, não tolera idolatrias –e, no caso dos Budas, heresias. Rebentar é a solução. E nós?

Verdade: a Inquisição deixou de funcionar há 200 anos. Ninguém é transformado em churrasco por ofender a Santa Madre Igreja, principal motivo pelo qual tantos artistas "corajosos" e "subversivos" gostam de a ofender.

Mas isso não significa que não existam "religiões seculares" (obrigado, Raymond Aron) com seus instintos igualmente censórios. No século 21, a principal religião está na Igreja da Saúde: ofender essa divindade, a única que restou na alma temente dos homens ocidentais, é crime de lesa-majestade.

Que o diga a empresa Disney: daqui para a frente, os estúdios que trabalham para a casa do Mickey Mouse não irão retratar mais fumantes em suas histórias. A saúde está em primeiro lugar. A saúde do público jovem está em primeiríssimo.

O caso é interessante por dois motivos –um pessoal, outro substancial.

O pessoal passa por relembrar todos os filmes Disney a que assisti nos verdes anos sem necessariamente ter imitado o comportamento dos seus personagens mais carismáticos.

Confesso: nunca saltei de edifícios montado em tapetes voadores. Nunca envenenei maçãs para matar alvas donzelas. Nunca confraternizei com tigres ou leões na selva, esperando que eles devolvessem o afeto e cantassem comigo em uníssono. E quando havia personagens fumando, nunca saí da sala com sintomas de privação.

A ideia paternalista de que reagimos a um filme como cachorros de Pavlov é uma fantasia digna de uma obra Disney que carece de base empírica.

Mas existe uma razão substancial que lida com a própria natureza da sétima arte. Se a Disney considera o cigarro uma influência nociva nas cabeças do auditório, o que tenciona a empresa fazer com histórias onde existem personagens vingativos, violentos, preconceituosos ou meramente imbecis?

Será que a Disney tenciona mostrar ao seu público esses vícios nefandos que dão pelo nome de vingança, violência, preconceito e imbecilidade?

Sem falar do óbvio: com narrativas em que os animais ganham voz e trejeitos humanos, não será isso uma lamentável exploração dos bichos, comparável a um espetáculo de circo?

Aliás, falar em circo não é por acaso: informa a imprensa inglesa que, depois de proibir o fumo, a Disney já recebeu inúmeros pedidos para que o próximo "Dumbo", dirigido por Tim Burton, não termine com o elefante no circo –mas em reserva natural apropriada.

Desconheço se Tim Burton pondera esse novo final, para alegria dos defensores dos "direitos dos animais". Em caso afirmativo, espero também que as orelhas do elefante possam ser igualmente reduzidas. Deficiência física não deve ser tema de paródia. O que, naturalmente, exclui de imediato os sete anões.

E se falamos de limitações físicas, convém não esquecer as mentais: a Disney pode conservar Mickey, Minnie e, no limite, o somítico Tio Patinhas. Mas não será hora de deixar o Pateta em paz?

O Pateta e, claro, alguns estereótipos culturais que a Disney espalha pelo mundo sem um pingo de vergonha. Eu, se fosse brasileiro, tomava providências para acabar de uma vez por todas com Zé Carioca (e seu charuto!).

Limpando todas as obras de imagens, ideias ou meras alusões potencialmente ofensivas, é provável que os filmes Disney se transformem em belos aquários, onde nada acontece e tudo é belo e colorido.

É um preço que devemos pagar. Como sucedeu com o Taleban no Afeganistão ou com os jihadistas do Iraque, é importante seguir o livro da selva e remover da paisagem todas as imagens que ofendem o pequeno selvagem que habita em nós.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

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