Uma das grandes questões de investigação histórica, que eu tenho abordado nessas páginas e em outros lugares, é exatamente como o mundo moderno se tornou tão diferente do que era antes. Desde por volta de 1750, houve um aumento de 16 vezes da riqueza real per capita em uma escala global, algo completamente sem precedentes que tem mudado a vida de todos no planeta para melhor.
Em seu último trabalho, Bourgeois Dignity: Why Economics Can’t Explain the Modern World, Deirdre McCloskey argumenta que o fator crítico foi uma mudança em como as atividades produtivas, tais como o comércio, eram prezadas. Ao invés de serem vistas como algo inferior, vergonhoso e desonroso, elas tornaram-se respeitáveis, dignas e, acima de tudo, virtuosas. Isso deu ao comércio, aos comerciantes e aos fabricantes (aqueles que trabalhavam com as próprias mãos) o respeito crucial dado anteriormente apenas aos aristocratas, padres e até camponeses. Eu acho que McCloskey dá importância demais a este fator, mas o fenômeno que ela identifica foi sem dúvida real e teve relevância considerável.
McCloskey identifica a República Holandesa como o lugar em que o desvio cultural começou no início do século dezessete. No caso europeu isso foi sem dúvida verdade. Entretanto não foi único. Outro desvio posterior, mas independente foi ainda mais autoconsciente e deliberado. Aconteceu em uma das sociedades pós-modernas mais fascinantes, o Japão de Tokugawa (McCloskey discute as semelhanças surpreendentes entre a Europa e o Japão nesse período).
De 1467 até 1570, o Japão passou pelo que ficou conhecido como Sengoku, ou um período de sua história conhecido como “estados em guerra”. A autoridade central era fraca a não-existente e as guerras eram praticamente constantes. Entre 1568 e 1603 houve o Momoyama, ou unificação, período em que o Japão foi unificado por vários líderes astutos. O último deles, Tokugawa Ieyasu, derrotou seus rivais na Batalha de Sekigahara em 1600 e estabeleceu o Tokugawa Shogunate, que iria dominar o Japão até 1868. O Japão de Tokugawa foi, simultaneamente, altamente conservador e ainda assim dinâmico. Os Tokugawa Shoguns, especialmente depois de 1630, baniram praticamente quase todo o contato com o mundo exterior (o lado perdedor em Sekigahara geralmente apoiava maiores relações). Internamente eles buscaram encorajar e executar um conservadorismo rigoroso. Um aspecto disso era uma firme insistência nas hierarquias sociais tradicionais de honra e status: imperador, shogun, daimyo, samurai, camponês, artesão, comerciante. Em geral, a região rural era vista como moralmente superior à cidade. Outro aspecto foi um renascimento do interesse no Confucionismo, particularmente pelo samurai, com o desenvolvimento de um código moral e uma filosofia elaborada conhecida como bushido – o caminho do guerreiro.
O outro lado do Japão de Tokugawa, entretanto, foi o rápido desenvolvimento econômico. A população cresceu rapidamente depois de 1690, e isso ocorreu com uma dramática urbanização: no final do século dezoito a capital Edo (atual Tóquio) e outros centros como Osaka e Kyoto estavam entre as maiores cidades do planeta. Houve também um grande crescimento do comércio interno e da manufatura, assim como algum grau de comércio com o mundo exterior via uma pequena colônia de mercadores holandeses em uma ilha artificial no porto de Nagasaki. Isso também acompanhou desenvolvimentos culturais interessantes. A classe mercante no Japão não apenas se preocupou com os negócios e o prazer material, aceitando seu status inferior, como geralmente é suposto. Ao invés disso, eles também exploraram Confúcio e outras ideias. Ao fazer isso, eles desenvolveram sua própria filosofia e cultura, conhecida como chonindo – o caminho do aldeão.
A essência do chonindo foi desenvolvida e articulada por uma série de pensadores do fim do século dezessete nos centros mercantis do Japão e especialmente em Osaka (Osaka tinha sido o centro da clã Toyotomi, os rivais do Tokugawa e o lado perdedor em Sekigahara).
O evento crucial em muitas formas foi a fundação da academia Kaitokudo em Osaka em 1726 por Miyake Sekian e Nakai Shuan. Essa era uma instituição educacional privada, fundada por grandes mercadores e casas comerciais de Osaka, para a exploração dos ideiais Confucianos e em particular o estabelecimento da conexão entre o trabalho produtivo, o comércio e a virtude. Os fundadores e professores de Kaitokudo argumentavam que o trabalho duro, as habilidades, o trabalho artesanal e manual eram virtuosos e formas de excelência humana. Mais dramaticamente, dada a tradicional hostilidade em direção ao lucro em boa parte do pensamento Confuciano, eles argumentaram que o lucro era por si só virtuoso, e que sua busca não era apenas compatível com uma vida moral, mas moral em si mesmo. O argumento mais profundo era que não havia contradição entre as virtudes tradicionais de contenção, lealdade, honra e magnanimidade e a vida de trabalho e comércio. Ao invés disso, todas essas virtudes eram ambas necessárias para o sucesso nesse tipo de vida e personificada na maneira de viver tal vida. O que era errado era o comportamento desonesto e predatório em qualquer forma de vida.
Outro aspecto da vida urbana no Japão de Tokugawa, que tinha uma íntima relação com tudo isso, era a noção de “mundo flutuante”, como representado no gênero artístico do Ukiyo-E, as conhecidas xilogravuras da vida urbana. Em seu sentido material, o “mundo flutuante” referenciava-se aos setores de prazer e entretenimento das novas cidades do Japão. Como tal, ele é geralmente visto como um culto ao hedonismo e algo que se opõe tanto ao bushido e ao chonindo. Às vezes isso era verdade, mas geralmente havia uma conexão entre os ideais do mundo flutuante e os do chonindo. O elemento comum era a crença, também encontrada na Europa Iluminista, que esse mundo material era bom, não amaldiçoado, e que o prazer físico e o bem-estar eram admiráveis e valiam a pena buscar ao invés de barreiras à virtude. A conexão com o chonindo era através da ideia que, na verdade, um maior conforto material e prazeres materiais encorajavam a virtude (enquanto desencoraja o comportamento predatório ou vingativo) e eram o resultado do seguimento das virtudes dos comerciantes ou cidadãos.
Podemos pensar que atualmente os argumentos de pessoas como Adam Smith na Europa ou os professores de Kaitokudo no Japão não são importantes porque são verdades muito óbvias e sem controvérsias. Nada pode estar mais longe da verdade. Ao invés disso, eles agora são tão ultrapassados e obsoletos como quando os comerciantes japoneses se juntaram e montaram sua academia em Osaka quase 200 anos atrás. Graças ao enfrentamento de uma cultura hostil, eles eram em muitas formas mais explícitos e sistemáticos em seus argumentos que suas contrapartidas europeias (Indiscutivelmente, eles também tinham uma tradição intelectual mais conveniente para trabalhar em muitas formas). Hoje, muitos dos argumentos por uma economia e sociedade livre são feitos com base na eficiência. Tais argumentos podem ser verdade, mas não convencem quando encarados com uma rejeição moral à ideia de lucro e ao comércio. O argumento que uma economia livre é uma economia moral é um que precisa ser mais usado do que nunca.
Devemos ler pessoas como Ito Jinsai, Nishikawa Joken, Miyake Sekian, Nakai Shuan, Tominaga Nakamoto, Goi Ranju, Nakai Chikuzan, Nakai Riken, Kusama Naokata e Yamagata Banto tanto quanto lemos Adam Smith, David Hume, Lorde Kames e Milton Friedman.
Tradução de Matheus Pacini. | Artigo Original
Por: Stephen Davies, diretor do setor educacional do Instute of Economic Affairs. Graduou-se na Universidade de St Andrews, na Escócia, em 1976, e ganhou seu doutorado pela mesma instituição em 1984. E autor de vários livros, incluindo Empiricism and History (Palgrave Macmillan, 2003) e foi co-editor com Nigel Ashford do Nigel Ashford of The Dictionary of Conservative and Libertarian Thought (Routledge, 1991).
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