domingo, 12 de abril de 2015

O FASCISMO E MARXISMO CULTURAL

Como visto na aula anterior, Marx já havia identificado uma problemática cultural na alienação do proletariado, ao dizer que a religião é o ópio do povo.

Como visto na aula anterior, Marx já havia identificado uma problemática cultural na alienação do proletariado, ao dizer que a religião é o ópio do povo. Isso foi analisado de forma mais sistemática por Antonio Gramsci, que vivenciou toda a crise teórica do comunismo após a I Guerra.Esta crise do marxismo gerou 2 filhos: o fascismo e o marxismo cultural, cada um deles com uma proposta bastante clara para chegar aos seus objetivos de dominação.

O fascismo, que também é um filho bastardo do comunismo, foi o caminho encontrado por Mussolini e Hitler para implantar a revolução em suas nações. Ambos queriam a mesma coisa que Lênin e Stálin, ou seja, uma sociedade sem mercado livre, “justa”, com “igualdade” e um estado forte, obtido através de uma ditadura totalitária. Achavam que a ideologia de classe não era um chamariz atraente o suficiente para fomentar a revolução marxista. Hitler e Mussolini perceberam, na I Guerra, um sentimento patriótico que levou o povo a lutar, a defender os “interesses burgueses” e criaram o fascismo: enquanto o marketing de Stálin falava do proletariado, do trabalhador, da lógica de classes, Hitler e Mussolini falavam dos sentimentos nacionais, de raça, ou seja, dos princípios norteadores do fascismo.

Por outro lado Antonio Gramsci, grande propugnador do marxismo cultural, colocou como projeto para a implantação do socialismo e do marxismo a destruição lenta e gradativa da cultura ocidental. A esse processo Gramsci chamou de “modificação do senso comum”. Para que houvesse o predomínio da mentalidade marxista, não havia a necessidade de uma grande estrutura que sustentasse o saber. Bastava apenas uma ideologia convincente, numa espécie de jogo de marketing. Para o marxismo, sem sombra de dúvida, não existe a verdade, mas um jogo de marketing[1].

Como visto, tanto o fascismo como o marxismo cultural faziam basicamente as mesmas coisas com a simples diferença de usar uma propaganda diferente para alcançar os mesmos objetivos. A mentalidade revolucionária funciona assim, “metamorfoseando” seu marketing de acordo com a época. Por exemplo, Stálin pretendia implantar o socialismo através de uma sociedade ateia, marcada pela perseguição à Igreja; os novos marxistas perceberam que perseguir a Igreja é algo sempre danoso ao ideal revolucionário, pois quanto mais cristãos são mortos, mais mártires são criados e mais forte fica o cristianismo. Com o passar do tempo perceberam que o caminho mais seguro para mudar a mentalidade do mundo é o de entrar na Igreja e mudá-la, desde dentro[2].

Os marxistas sabem que a Igreja é sustentada por uma lógica burguesa, que tem “apego” ao certo e ao errado, ao moral e ao imoral e usarão isso contra ela. Eles não têm uma opinião clara sobre qualquer tema: quando algo ajuda a revolução, são favoráveis; quando atrapalha, abominam[3].

Exatamente por isso, o marxismo tem um sistema racional versátil, revolucionário e dialético. Gramsci já alertava para a não existência do bem ou do mal, tendo como um de seus inspiradores a figura de Maquiavel, ao dizer que tudo aquilo que Maquiavel fez a favor do Príncipe, precisava ser feito a favor do partido comunista. Existe aquilo que é oportuno, aquilo que ajuda ou não a revolução. Tudo o que existe de realidade racional é fruto de uma criação humana. Não existe verdade, que determine um agir.

Isso é bastante coerente da parte dos marxistas, pois só haveria uma ordem a ser seguida no agir se houvesse um intelecto criador. Como são ateus, defendem que o intelecto criador não existe e, portanto, não há ordem a ser seguida ou verdade que determine o agir humano.

Só para esclarecer esta ideia, dizer que a ordem que existe no mundo não é obra de um Criador não foi mérito dos marxistas. Por incrível que pareça, a visão tradicional de que a ordem que existe no mundo é criacional, racional foi combatida por obra de um cristão piedoso chamado Immanuel Kant.

Para Kant, o mundo em si, os objetos, o númeno[4], o que está fora da mente humana é irracional, caótico. O que realmente existe é desconhecido, pois o homem só tem acesso a um fenômeno, que é compreensível ao intelecto graças às categorias mentais que condicionam (e possibilitam) o pensamento. Na Crítica da Razão Pura, por exemplo, Kant mostra que a ordem da física newtoniana não está no númeno, na coisa em si e também não foi colocada nas coisas pelo Criador. Na verdade, a ordem foi imposta à realidade pelo intelecto. A física de Newton funciona não porque o mundo é assim, mas porque a mente humana a fez assim. Kant, assim, é um grande exemplo de paralaxe cognitiva[5].Resumindo, para Kant a realidade é absolutamente caótica e irracional. Quem cria a racionalidade é o intelecto humano.

O marxista também pensa dessa forma, não por concordar com o pensamento kantiano, mas por afirmar que a ordem imposta ao mundo irracional é a que traduz o interesse de uma classe, especificamente, o da classe burguesa. Segundo o marxismo, existe uma superestrutura (baseada na religião judaico-cristã, na filosofia grega e no direito romano) que justifica o status quo, a situação opressora na qual a sociedade se encontra. Esta superestrutura cria uma cultura que busca defender seus interesses de classe. As pessoas, inoculadas por esta cultura, passam também a defender os interesses da classe burguesa.

Concluindo, é necessário entender que os agentes da luta cultural possuem visões de mundo diferentes. Assim, para que a revolução cultural aconteça é necessário incutir na cabeça dos cristãos a ideia de que o cristão não odeia nada, de que ele deve defender a paz custe o que custar.A Igreja, à medida que vai assimilando as ideias revolucionárias, passa a ser uma sociedade igualitária e que, por engenharia social, quer implantar, neste mundo, uma terra sem males[6]. Os marxistas sabem que sem transformação da religião numa força socialista, a revolução não irá acontecer.
Por: Padre Paulo Ricardo  Do site: https://padrepauloricardo.org/

Referências

Existe uma coisa muito importante que é sempre preciso ter diante dos olhos: para se compreender bem o pensamento marxista, é necessário ter a certeza de que a verdade não existe. Enquanto houver fixação na verdade, na lógica, não será possível compreender ou ser um bom marxista. O marxista vê o mundo a partir da irracionalidade. E isso é uma demonstração de certa coerência, pois, já que, segundo a sua filosofia, Deus não existe, tudo o que existe é irracional.

A Igreja Católica tradicional é uma instituição hierárquica, com uma economia (ação) sacramental que tem por finalidade última levar o homem para o céu. Para destruí-la, é necessário transformá-la numa sociedade igualitária, sem uma economia sacramental, transformando tudo numa engenharia social, buscando imanentizar a escatologia. O céu foi trazido para este mundo pelos marxistas.

Por exemplo, os homossexuais: na Rússia são abominados, pois atrapalham na implantação da mentalidade do homo sovieticus, homem forte, que possibilita a revolução; no Ocidente, são essenciais, pois são usados como meio para destruir a ética judaico-cristã.

Segundo o dicionário Michaelis: substantivo masculino (do grego νοούμενoν, noûmenon) Filos 1 A coisa em si, por oposição ao fenômeno ou às coisas tais como aparecem e são conhecidas.2 Fato concebido pela consciência, mas não confirmado pela experiência. 3 Objeto cuja existência é abstrata e problemática.

A paralaxe (do grego παράλλαξις, alteração) cognitiva é o deslocamento, na obra de um pensador, entre o eixo da especulação teórica e o da experiência concreta que ele tem da realidade. Tal conceito é apresentado pelo filósofo Olavo de Carvalho, tanto em seus escritos (cf. http://www.olavodecarvalho.org/semana/040710globo.htm) como em seu programa Trueoutspeak (cf. trecho do programa do dia 19 de fevereiro de 2007 postado no youtube: http://www.youtube.com/watch?v=EjaTyPbVxog). Exatamente por isso, o pensamento kantiano é inconciliável com a mensagem cristã.

Quando o papa João Paulo II se encontrou com o padre Ernesto Cardenal, ministro de um governo comunista, repreendeu veementemente o padre diante das câmeras de todo o mundo. O padre defendia a existência de duas igrejas: uma popular e outra romana, da hierarquia. A romana propaga a ideologia do magistério, com uma superestrutura imperialista e opressora. A outra igreja, do padre Ernesto Cardenal, seria uma igreja popular, que, na verdade não existe, mas é simplesmente instrumento de implantação da ideologia partidária.

sábado, 11 de abril de 2015

APRENDENDO COM O POVÃO

A queda abrupta na audiência da TV Globo ilustra algo que venho dizendo aqui há semanas: a revolta popular não é só contra meia dúzia de políticos ladrões, nem só contra a sra. Dilma Rousseff, o PT ou mesmo o Foro de São Paulo: é contra toda a elite que os protegeu e os legitimou no poder à força de mentiras e desconversas.

Sempre de joelhos ante as modas estrangeiras mais idiotas, e manipulados por intelectuais ativistas que, a despeito da sua mediocridade, sempre deslumbraram as suas mentes ainda mais medíocres, os donos dos nossos meios de comunicação puseram todos os seus formidáveis recursos a serviço de uma “revolução cultural” cuja simples existência ignoravam e que foi, aliás, concebida precisamente para ser levada a cabo por idiotas úteis que a ignoravam.

Antonio Gramsci é bastante explícito quanto a esse ponto: não se trata de “conquistar corações e mentes”, como afirmou esse asno pomposo que ocupa o Ministério da Educação, mas, bem ao contrário, de fazer com que “todos sejam socialistas sem sabê-lo”, de dominar o “senso comum” a tal ponto que massas inteiras da população repitam chavões e slogans sem ter a menor idéia da sua origem e da sua função num plano estratégico de conjunto.

A diferença entre o antigo militante proletário conquistado para a causa do comunismo e o moderno servidor da revolução cultural é tão imensurável que, por si, basta para ilustrar a elasticidade psicopática da mente revolucionária, sempre pronta a trocar de atitude, de discurso e de valores cada vez que julga isso necessário para o aumento do seu poder. O primeiro decorava manuais de marxismo-leninismo, era hipersensível ao menor desvio da ortodoxia partidária e proclamava orgulhosamente sua condição de comunista militante, sacrificando bens, vida, honra e liberdade, tudo pela causa. Em volta dele existiam, é claro, alguns idiotas úteis sem cultura marxista, que se associavam à luta por motivos subjetivos totalmente estranhos ao marxismo, que levavam o militante genuíno às gargalhadas.

Na militância gramsciana, as proporções inverteram-se: o grosso da contingente compõe-se de idiotas úteis, os militantes doutrinados reduziram-se a uma discreta elite dirigente que não faz a menor questão de que seus seguidores saibam por que a seguem.

Os motivos subjetivos, que antes eram apenas acréscimos acidentais ao corpo da luta revolucionária, tornaram-se a propaganda oficial, que na mesma medida perdeu toda unidade e coerência, estilhaçando-se numa poeira alucinante de chavões e cacoetes mentais desencontrados, bons para todos os temperamentos e preferências, incluindo a expressão histérica das insatisfações mais fúteis que o marxista puro-sangue de antigamente desprezava como “pequeno-burguesas”.

A pessoa e os feitos do sr. Jean Wyllys ilustram esse estado de coisas da maneira mais didática que se pode imaginar. Na sua ânsia de juntar num front comum tudo quanto lhe pareça anti-ocidental e anticristão, ele exige que as escolas esmigalhem de vez os cérebros das crianças com aulas simultâneas de gayzismo e de islamismo. Cada pequeno brasileiro será portanto informado de que ele deve fazer aquilo que, se ele fizer, será punido com pena de morte.

Às vezes as pessoas clamam contra a “doutrinação marxista” nas escolas, mas “doutrinação” é eufemismo: os tempos da doutrinação já passaram. O que ali se faz é infinitamente mais destrutivo do que qualquer doutrinação. Pascal Bernardin, no livro Maquiavel Pedagogo (v. https://www.facebook.com/maquiavel.pedagogo/videos), descreveu em minúcias como as técnicas adotadas na educação das crianças hoje em dia são calculadas para induzir mudanças de comportamento sem passar pela aprovação consciente. Não se trata de “conquistar corações e mentes”, mas de adestrar os corpos no aprendizado da macaquice.

O apelo à consciência é cada vez mais reduzido, ao ponto de que aquele que passou por esse treinamento se torna incapaz de perceber as mais grotescas incoerências no seu discurso, mesmo quando elas tornam irrealizável na prática aquilo que ele proclama como seu sonho e ideal. O sr. Jean Wyllys é o produto perfeito e acabado de um sistema de ensino montado para produzir idiotas úteis em escala industrial.

É evidente que, abolido o confronto ideológico explícito, dissolvida a ortodoxia marxista num farelo de esterótipos para todos os gostos, cada freguês podendo escolher à vontade os “direitos humanos”, a “anti-homofobia”, o “anti-racismo”, o culto de uma lendária superioridade espiritual do Oriente, a mitologia indigenista, a liberação das drogas, os delírios da New Age, o ressentimento feminista, o islamismo ou tudo isso de uma vez, o mero fato de um sujeito ser pessoalmente um bilionário capitalista, e eventualmente o dono de uma rede de canais de TV, não o torna imune, no mais mínimo que seja, à contaminação de uma lepra mental que assume todas as formas e o assalta por todos os lados.

Foi assim que os donos da mídia, sem percebê-lo nitidamente, e até mesmo negando-o peremptoriamente, se tornaram servidores da “revolução cultural” que os abomina e despreza ao ponto de imaginá-los – pasmem! – responsáveis pelos movimentos de protesto anti-PT. O sr. João Pedro Stedile proclamando “A Globo fez tudo isso”, ao mesmo tempo que os manifestantes escorraçavam os repórteres da Globo a cusparadas – eis uma cena representativa da confusão monstruosa que o gramscismo produziu na mente brasileira.

Enquanto os “intelectuais” e “formadores de opinião" mostravam cada vez mais nada entender do que estava acontecendo, exemplificando eles próprios o estado de turva inconsciência reinante, o povão, quase por milagre, apreendeu a unidade oculta por trás dos rostos cambiantes e inumeráveis do seu inimigo, e se voltou contra ele com uma determinação e uma coragem admiráveis.

Domingo ele vai nos dar mais uma lição a respeito.
Por: Olavo de Carvalho
Publicado no Diário do Comércio. Do site: www.midiasemmascara.org

AS VIRTUDES DO COMÉRCIO: LIÇÕES DO JAPÃO

Uma das grandes questões de investigação histórica, que eu tenho abordado nessas páginas e em outros lugares, é exatamente como o mundo moderno se tornou tão diferente do que era antes. Desde por volta de 1750, houve um aumento de 16 vezes da riqueza real per capita em uma escala global, algo completamente sem precedentes que tem mudado a vida de todos no planeta para melhor.


Em seu último trabalho, Bourgeois Dignity: Why Economics Can’t Explain the Modern World, Deirdre McCloskey argumenta que o fator crítico foi uma mudança em como as atividades produtivas, tais como o comércio, eram prezadas. Ao invés de serem vistas como algo inferior, vergonhoso e desonroso, elas tornaram-se respeitáveis, dignas e, acima de tudo, virtuosas. Isso deu ao comércio, aos comerciantes e aos fabricantes (aqueles que trabalhavam com as próprias mãos) o respeito crucial dado anteriormente apenas aos aristocratas, padres e até camponeses. Eu acho que McCloskey dá importância demais a este fator, mas o fenômeno que ela identifica foi sem dúvida real e teve relevância considerável.

McCloskey identifica a República Holandesa como o lugar em que o desvio cultural começou no início do século dezessete. No caso europeu isso foi sem dúvida verdade. Entretanto não foi único. Outro desvio posterior, mas independente foi ainda mais autoconsciente e deliberado. Aconteceu em uma das sociedades pós-modernas mais fascinantes, o Japão de Tokugawa (McCloskey discute as semelhanças surpreendentes entre a Europa e o Japão nesse período).

De 1467 até 1570, o Japão passou pelo que ficou conhecido como Sengoku, ou um período de sua história conhecido como “estados em guerra”. A autoridade central era fraca a não-existente e as guerras eram praticamente constantes. Entre 1568 e 1603 houve o Momoyama, ou unificação, período em que o Japão foi unificado por vários líderes astutos. O último deles, Tokugawa Ieyasu, derrotou seus rivais na Batalha de Sekigahara em 1600 e estabeleceu o Tokugawa Shogunate, que iria dominar o Japão até 1868. O Japão de Tokugawa foi, simultaneamente, altamente conservador e ainda assim dinâmico. Os Tokugawa Shoguns, especialmente depois de 1630, baniram praticamente quase todo o contato com o mundo exterior (o lado perdedor em Sekigahara geralmente apoiava maiores relações). Internamente eles buscaram encorajar e executar um conservadorismo rigoroso. Um aspecto disso era uma firme insistência nas hierarquias sociais tradicionais de honra e status: imperador, shogun, daimyo, samurai, camponês, artesão, comerciante. Em geral, a região rural era vista como moralmente superior à cidade. Outro aspecto foi um renascimento do interesse no Confucionismo, particularmente pelo samurai, com o desenvolvimento de um código moral e uma filosofia elaborada conhecida como bushido – o caminho do guerreiro.

O outro lado do Japão de Tokugawa, entretanto, foi o rápido desenvolvimento econômico. A população cresceu rapidamente depois de 1690, e isso ocorreu com uma dramática urbanização: no final do século dezoito a capital Edo (atual Tóquio) e outros centros como Osaka e Kyoto estavam entre as maiores cidades do planeta. Houve também um grande crescimento do comércio interno e da manufatura, assim como algum grau de comércio com o mundo exterior via uma pequena colônia de mercadores holandeses em uma ilha artificial no porto de Nagasaki. Isso também acompanhou desenvolvimentos culturais interessantes. A classe mercante no Japão não apenas se preocupou com os negócios e o prazer material, aceitando seu status inferior, como geralmente é suposto. Ao invés disso, eles também exploraram Confúcio e outras ideias. Ao fazer isso, eles desenvolveram sua própria filosofia e cultura, conhecida como chonindo – o caminho do aldeão.

A essência do chonindo foi desenvolvida e articulada por uma série de pensadores do fim do século dezessete nos centros mercantis do Japão e especialmente em Osaka (Osaka tinha sido o centro da clã Toyotomi, os rivais do Tokugawa e o lado perdedor em Sekigahara).

O evento crucial em muitas formas foi a fundação da academia Kaitokudo em Osaka em 1726 por Miyake Sekian e Nakai Shuan. Essa era uma instituição educacional privada, fundada por grandes mercadores e casas comerciais de Osaka, para a exploração dos ideiais Confucianos e em particular o estabelecimento da conexão entre o trabalho produtivo, o comércio e a virtude. Os fundadores e professores de Kaitokudo argumentavam que o trabalho duro, as habilidades, o trabalho artesanal e manual eram virtuosos e formas de excelência humana. Mais dramaticamente, dada a tradicional hostilidade em direção ao lucro em boa parte do pensamento Confuciano, eles argumentaram que o lucro era por si só virtuoso, e que sua busca não era apenas compatível com uma vida moral, mas moral em si mesmo. O argumento mais profundo era que não havia contradição entre as virtudes tradicionais de contenção, lealdade, honra e magnanimidade e a vida de trabalho e comércio. Ao invés disso, todas essas virtudes eram ambas necessárias para o sucesso nesse tipo de vida e personificada na maneira de viver tal vida. O que era errado era o comportamento desonesto e predatório em qualquer forma de vida.

Outro aspecto da vida urbana no Japão de Tokugawa, que tinha uma íntima relação com tudo isso, era a noção de “mundo flutuante”, como representado no gênero artístico do Ukiyo-E, as conhecidas xilogravuras da vida urbana. Em seu sentido material, o “mundo flutuante” referenciava-se aos setores de prazer e entretenimento das novas cidades do Japão. Como tal, ele é geralmente visto como um culto ao hedonismo e algo que se opõe tanto ao bushido e ao chonindo. Às vezes isso era verdade, mas geralmente havia uma conexão entre os ideais do mundo flutuante e os do chonindo. O elemento comum era a crença, também encontrada na Europa Iluminista, que esse mundo material era bom, não amaldiçoado, e que o prazer físico e o bem-estar eram admiráveis e valiam a pena buscar ao invés de barreiras à virtude. A conexão com o chonindo era através da ideia que, na verdade, um maior conforto material e prazeres materiais encorajavam a virtude (enquanto desencoraja o comportamento predatório ou vingativo) e eram o resultado do seguimento das virtudes dos comerciantes ou cidadãos.

Podemos pensar que atualmente os argumentos de pessoas como Adam Smith na Europa ou os professores de Kaitokudo no Japão não são importantes porque são verdades muito óbvias e sem controvérsias. Nada pode estar mais longe da verdade. Ao invés disso, eles agora são tão ultrapassados e obsoletos como quando os comerciantes japoneses se juntaram e montaram sua academia em Osaka quase 200 anos atrás. Graças ao enfrentamento de uma cultura hostil, eles eram em muitas formas mais explícitos e sistemáticos em seus argumentos que suas contrapartidas europeias (Indiscutivelmente, eles também tinham uma tradição intelectual mais conveniente para trabalhar em muitas formas). Hoje, muitos dos argumentos por uma economia e sociedade livre são feitos com base na eficiência. Tais argumentos podem ser verdade, mas não convencem quando encarados com uma rejeição moral à ideia de lucro e ao comércio. O argumento que uma economia livre é uma economia moral é um que precisa ser mais usado do que nunca.

Devemos ler pessoas como Ito Jinsai, Nishikawa Joken, Miyake Sekian, Nakai Shuan, Tominaga Nakamoto, Goi Ranju, Nakai Chikuzan, Nakai Riken, Kusama Naokata e Yamagata Banto tanto quanto lemos Adam Smith, David Hume, Lorde Kames e Milton Friedman.
Tradução de Matheus Pacini. | Artigo Original
Por: Stephen Davies, diretor do setor educacional do Instute of Economic Affairs. Graduou-se na Universidade de St Andrews, na Escócia, em 1976, e ganhou seu doutorado pela mesma instituição em 1984. E autor de vários livros, incluindo Empiricism and History (Palgrave Macmillan, 2003) e foi co-editor com Nigel Ashford do Nigel Ashford of The Dictionary of Conservative and Libertarian Thought (Routledge, 1991).

sexta-feira, 10 de abril de 2015

COMO O GOVERNO DA ITÁLIA GEROU A MÁFIA


Além de seus ótimos vinhos, de suas praias agradáveis e de suas deliciosas mulheres, a Itália é também muito conhecida por algo menos edificante — a máfia.

Ainda mais interessante do que entender como essa tão poderosa "máquina" conseguiu entrar e se incrustar na sociedade italiana de maneira tão forte e significativa, é compreender o papel da máfia perante o governo central da Itália.

De um lado, é fácil dizer que a máfia e o sistema econômico corrupto dentro do qual ela funciona são moralmente errados e contraproducentes para o país. De outro, sua presença pode ser de alguma valia para a economia de um país em determinadas situações, algo que é ainda mais verdade no caso da Itália.

Para entender como a corrupção se infiltrou nos altos escalões da sociedade italiana, é essencial entender o progresso da Itália ao longo do século XX, tanto política quanto economicamente.

A força de organizações criminosas como a "máfia siciliana", a "Camorra" (da região de Nápoles), e a 'Ndrangheta(da região da Calábria) sempre esteve relacionada às suas ligações com o setor da construção civil (por meio docontrole dos sindicatos), tipicamente por meio de um canal direto com o governo italiano. Só que essas "associações" cresceram exponencialmente ao longo dos últimos 50 anos, criando impérios que já são claramente visíveis em todos os grandes setores da economia.

O estado italiano: um parceiro confiável da máfia

O crescimento da máfia foi aditivado pelo modelo político e econômico vigente na Itália durante a segunda metade do século XX após a Segunda Guerra Mundial. 

Por quase quarenta anos, a Itália foi governada por um único partido político, o Democrazia Cristiana (que foi abolido em 1994 em decorrência da Operação Mãos Limpas). O motivo dessa supremacia partidária na política foi a oposição da população à crescente força do Partido Comunista Italiano (o maior da Europa Ocidental durante as décadas de 1970 e 80), o qual era visto como uma crescente, perigosa e cada vez mais concreta ameaça. A maioria das pessoas temia que tal partido tomasse o poder e implantasse um governo central de estilo soviético. Esse sentimento foi especialmente endêmico durante o ápice da Guerra Fria. Consequentemente, o partido Democracia Cristã vencia seguidamente as eleições.

Durante esse período em que a política italiana foi dominada por um único partido político, as ligações entre políticos e empresários se tornaram arraigadas, e isso estimulou o crescimento do crime organizado.

Em troca de propinas, os políticos asseguraram aos membros do crime organizado que as autoridades supostamente responsáveis por combatê-los, e que também recebiam subornos para fazer vista grossa, seriam as mesmas por um longo período de tempo. Isso tornou toda a operação bem menos custosa e muito mais previsível. 

Quando despida de toda a propaganda em contrário, a máfia nada mais é — quando age dentro de certos códigos de conduta — do que um grupo de empreendedores cuja atividade é fornecer a determinados consumidores bens e serviços cujo acesso no mercado legal foi ou proibido ou dificultado pelo governo. No caso italiano, a máfia ofertava bens que ou estavam racionados após o término da guerra ou que eram pesadamente tributados (como cigarros). Operando em um ambiente de instituições fracas, a máfia foi uma consequência natural dos desejos dos consumidores.

E a corrupção daí resultante reestruturou a economia da Itália quase que completamente.

Ainda no século XIX, essas associações corruptas ocorriam apenas nas regiões sul da Itália. Dado que o sul da Itália sempre foi uma das sociedades menos produtivas de toda a Europa Ocidental, muito por causa da falta de confiança que impera na região, arranjos como a máfia conseguiram facilmente ganhar muita influência por lá, pois a máfia provê um mínimo de ordem social para seus membros, e a população em geral não oferece muita resistência à sua existência.

No entanto, com o fortalecimento do canal direto com o governo central, a máfia cresceu de maneira acelerada e, consequentemente, foi se expandindo para o norte do país, nas regiões mais industrializadas e muito mais desenvolvidas. O que antes era um fenômeno local e restrito tornou-se nacional. A máfia adentrou todos os grandes setores industriais do país, se entranhou nas instituições e criou uma intrincada rede de corrupção entre políticos, sindicatos, empresários e empreendimentos.

Como consequência dessa total infiltração, ainda em voga, o crime organizado se espalhou pela Itália como uma forma de câncer que se tornou intratável e que já progrediu até um estágio em que, se ele for removido, a economia italiana — já combalida — certamente irá se desintegrar. 

Ou seja, mesmo que a cirurgia seja um sucesso total, o paciente irá morrer.

O fato de que a corrupção sempre esteve profundamente enraizada nas estruturas políticas, sociais e econômicas da Itália faz com que seja ainda mais difícil para o país cumprir com suas obrigações perante a União Europeia. Será um grande desafio para a Itália sair de sua atual recessão tendo um sistema tão corrupto e insalubre. A dívida pública do país está acima de 130% do PIB. Uma das obrigações para um país permanecer membro da zona do euro é manter seu endividamento público abaixo de 60% do PIB, e o déficit orçamentário anual abaixo de 3% do PIB. Embora a meta para o déficit esteja quase cumprida, o país não está nem perto de cumprir o primeiro critério (muito embora, para sermos justos, poucos países da zona do euro estão).

Um dos motivos do desarranjo das contas públicas, que levaram a dívida pública para os atuais 130% do PIB, é justamente a já enraizada ordem político-econômica. Há muitos interesses poderosos que seriam afetados caso uma genuína austeridade fosse adotada, o que torna qualquer medida desse tipo virtualmente impossível.

Para piorar, os partidos políticos relevantes estão todos dentro do próprio governo. Ao passo que nos outros países ocidentais as finanças estão uma bagunça porque os próprios eleitores não aceitam abrir mão de benesses, na Itália, os políticos que votam o orçamento são os mesmos que irão diretamente utilizar esse dinheiro para beneficiar a si próprios e aqueles que estão politicamente ligados a eles.

A instabilidade econômica da Itália não apenas está destruindo sua economia desde dentro, mas também por fora. Investidores externos (outros europeus, americanos, árabes, chineses etc.) não querem ter de lidar com um esquema tão corrupto. Isso cria uma instabilidade totalmente perceptível: não há qualquer possibilidade real de crescimento econômico, tanto por causa desse descontrole governamental quanto por causa de escassez de investimento estrangeiro. 

No ano passado, a Itália conseguiu atrair apenas 1,4% do seu PIB em investimento estrangeiro direto, bem abaixo da média europeia, de 3,3%.

O que pode ser feito?

O partido Liga Norte (Lega Nord) recentemente propôs que as regiões do norte do país, mais produtivas e mais prósperas, se separassem das regiões do sul, mais pobres e mais estagnadas. As regiões sul são onde as máfias estão mais fortemente concentradas. Não obstante, a corrupção é endêmica e está por todo o país.

O fato é que a Itália precisa da ajuda da Europa. O que impede que a corrupção se espalhe ainda mais pelo país é o fato de que o sistema italiano é de alguma forma restringido por um sistema ainda maior: a União Europeia. O Pacto de Estabilidade e Crescimento, que determina que os governos mantenham suas finanças em ordem, cria alguma pressão que obriga o governo italiano a pelo menos manter seus déficits sob controle. Ao longo das décadas de 1970 e 80, esse insalubre sistema político-empresarial conseguiu transformar a Itália no país mais fortemente endividado da Europa. Pressões externas da UE obrigaram o governo italiano a colocar suas finanças em uma trajetória um pouco mais sustentável. 

Entre o surgimento do euro e crise financeira de 2008, a dívida do governo italiano em relação ao PIB caiu 20%, e a inflação de preços anual, que apresentou uma média superior a 10% durante as décadas de 1970 e 80, caiu para menos de 3% na década de 2000. Ajudou nesse processo a criação da moeda única em 2002. Incapaz de imprimir dinheiro para financiar diretamente seus gastos, o governo italiano (assim como outros países inflacionistas do sul da Europa) foi forçado a ser mais responsável com o dinheiro dos pagadores de impostos do país. 

A Itália realmente está em uma situação difícil. A corrupção controlada pela máfia e que perpassa todo o país — do governo aos empresários — está tão profundamente arraigada, que tornou praticamente impossível qualquer reforma econômica. A única maneira de fazer uma reforma na Itália seria eliminando o governo central. O sistema que hoje existe é resultado de um poder político que cresceu de maneira irrestrita ao longo de quarenta anos, e que hoje se tornou onipresente. (Ironicamente, tal resultado foi em resposta ao temor de um poder político irrestrito ainda maior, na forma do comunismo). Se esse sistema indesejável não puder ser modificado, os italianos terão de mudar a única coisa que ainda podem mudar — o lugar em que vivem.

Os italianos mais jovens, especialmente os mais ambiciosos e capacitados, estão maciçamente deixando o país, uma tendência que foi intensificada desde o início da recessão de 2009. Deixar sua pátria pode acabar sendo um pequeno preço a se pagar caso o resultado seja a abolição do falido sistema vigente. Apenas isso pode fazer com que uma Itália melhor surja das cinzas.
Emilio Parodi estuda Comércio Internacional na Universidade de St. Louis, no campus de Madri
David Howden é professor assistente de economia na Universidade de St. Louis, no campus de Madri, e vencedor do prêmio do Mises Institute de melhor aluno da Mises University. Do site: http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2053

quinta-feira, 9 de abril de 2015

A DESTRUIÇÃO DO REAL


Uma radiografia da destruição do real - ou: não há economia forte com uma moeda doente


Os americanos estão rindo à toa. E às nossas custas. Tanto o café da manhã quanto o churrasco deles ficaram bem mais baratos. Do pão ao café, passando pelo bacon e pela carne de boi, tudo barateou para eles

Quem foi o responsável por isso? Nós brasileiros. E, como consequência dessa nossa "gentileza", esses mesmos alimentos ficaram bem mais caros para nós.

Com o esfacelamento do real perante todas as moedas do mundo — e ainda mais intensamente perante o dólar —, a aquisição de trigo, café, soja, açúcar, laranja e carne do Brasil ficou muito mais barata para os americanos e estrangeiros em geral. 

Consequentemente, os produtores brasileiros dessas commodities passaram a vendê-las em maior quantidade para o mercado externo, gerando uma diminuição da sua oferta no mercado interno e um aumento dos seus preços. 

Fartura para os estrangeiros, carestia para nós.

Os preços da carne bovina, por exemplo, que foram até motivo de debate na campanha eleitoral, seguemcrescendo. E, nesse caso, a desvalorização do câmbio tem um efeito duplo: de um lado, ela aumenta as exportações e reduz a oferta interna; de outro, ela encarece o preço da soja (a soja é uma commodity precificada em dólar. Se o real se desvaloriza perante o dólar, o preço da soja em reais aumenta). E, dado que o farelo de soja é utilizado como ração para bovinos, o encarecimento da soja encarece todo o processo de produção. (Apenas neste mês de março, a tonelada do farelo de soja subiu de R$ 1.070 para R$ 1.250)

Consequentemente, os preços da carne são pressionados tanto pela diminuição da oferta quanto pelo encarecimento da produção. Por trás de tudo, está o câmbio.

E o problema é que a desvalorização cambial não se restringe apenas ao setor alimentício ou às commodities. Tampouco a desvalorização cambial, ao contrário do que muitos pensam, afeta apenas os preços de bens importados. 

A desvalorização cambial é um fenômeno que gera carestia generalizada em praticamente todos os bens e serviços do mercado interno, pois ela gera um efeito em cascata. 

Além de encarecer alimentos (em decorrência dos fenômenos acima descritos), remédios (85% da química fina é importada), e todos os importados (de eletroeletrônicos e utensílios domésticos a roupas e mobiliários), a desvalorização cambial também encarece os preços das passagens aéreas (querosene é petróleo, e petróleo é cotado em dólar), das passagens de ônibus (diesel também é petróleo), e até mesmos os preços dos alugueis e das tarifas de energia elétrica (ambos são reajustados pelo IGP-M, índice esse que mensura commodities e matérias-primas, ambas sensíveis ao dólar). 

E o aumento do aluguel e o encarecimento da eletricidade, por sua vez, afetam os custos de todos os estabelecimentos comerciais, os quais terão de elevar os preços de seus produtos e serviços (o cabeleireiro e a manicure cobrarão mais caro, assim como o dentista e a oficina mecânica). 

E todos esses aumentos generalizados farão com que os autônomos que atuam no setor de serviços — o eletricista e o encanador comem pão e carne, cortam cabelo, pagam conta de luz e levam seus carros para consertar — também tenham de aumentar seus preços.

Ou seja, não há escapatória: uma desvalorização cambial mexe com toda a estrutura de preços da economia.

Por que uma moeda fraca afeta negativamente toda a economia

A saúde de uma economia é totalmente dependente da saúde de sua moeda. Dado que o dinheiro representa a metade de toda e qualquer transação econômica, a robustez da moeda irá determinar a saúde de toda a economia. Se a moeda enfraquece, a economia vai junto. Se a moeda fica doente, a economia também adoece. 

Não há como uma economia se fortalecer se a sua moeda está enfraquecendo.

Classicamente, o dinheiro tem a função de ser um meio de troca. Mas, além de facilitar as transações econômicas, o dinheiro também tem a função de mensurar o valor dos bens e serviços. Ao vender ou comprar qualquer bem ou serviço — seja um carro, um apartamento ou uma mão-de-obra —, você o precifica em unidades monetárias. O dinheiro é a régua com a qual você faz essa mensuração. Toda a riqueza material que possuímos é mensurada pela nossa moeda. 

Daí os economistas clássicos, à sua época, defenderem a ideia de que a moeda, para ser eficaz, deveria ser a mais estável possível. Tais economistas corretamente compreenderam que ter uma moeda fiduciária, não lastreada por nada, e cujo valor flutuasse constantemente seria o equivalente a utilizar unidades de medida que flutuassem diariamente. 

Imagine o que ocorreria se a definição de metro, grama e minuto fosse alterada diariamente? Num dia, o metro tem 100 centímetros; no dia seguinte, o metro se desvaloriza e passa a valer 95 centímetros. Depois, se valoriza e passa a ter 107 centímetros. Como seria possível fazer qualquer obra dessa maneira?

Assim como um metro flutuante e um minuto flutuante gerariam vários erros de construção, de cálculo e de planejamento, um dinheiro flutuante gera uma enorme quantidade de investimentos insensatos, uma grande desarmonia nas transações e um profundo caos no cálculo econômico.

Por isso, ao longo da história humana, o ouro sempre foi a mercadoria naturalmente escolhida para servir como meio de troca e unidade de conta. Sua tradicional estabilidade como unidade de conta fez dele uma escolha natural para definir aquilo que hoje conhecemos como dinheiro.

(Em dezembro de 2008, um arqueólogo britânico descobriu, nos arredores de Jerusalém, aproximadamente 300 moedas de ouro datadas de 600 d.C., todas elas emitidas pelo imperador bizantino Heráclio, e todas elas valendo o mesmo tanto que valiam há 1.400 anos, se não mais.)

Hoje, infelizmente, a teoria econômica que se tornou dominante — e que é adotada por quase todos os governos — inverteu completamente essa lógica. Os economistas de hoje não mais veem o dinheiro como uma unidade de conta que deve ser a mais estável possível. Não. Eles querem flutuar o metro, o minuto e o grama. Eles querem ter uma régua, um relógio e uma balança que sejam diariamente alterados. E eles genuinamente acreditam que isso gera desenvolvimento econômico.

Os economistas de hoje acreditam que uma unidade de conta sem qualquer âncora, totalmente volúvel e flutuante, turbina a atividade econômica. Pior ainda: dentre esses economistas, há aqueles que vão ainda mais além e dizem abertamente que, quanto mais distorcida for nossa unidade de conta, maior será a nossa criação de riqueza e maior será nosso desenvolvimento. "Destrua a moeda, e surgirão uma Apple, uma Microsoft e uma Google", parece ser o lema. 

A crença, sem nenhuma lógica, é a de que uma moeda desvalorizada, sem poder de compra, irá estimular as pessoas a produzir mais e melhor, e a investir com mais sapiência. "Altere fortemente a definição de metro, minuto e grama, e amanhã viramos uma Suíça".

Eis o principal problema com esse raciocínio: quando investidores investem, eles estão, na prática, comprando um fluxo de renda futura. Para que investidores invistam capital em atividades produtivas, eles têm de ter um mínimo de certeza e segurança de que terão um retorno que valha alguma coisa.

Mas se a unidade de conta é diariamente distorcida e desvalorizada, se sua definição é flutuante, há apenas caos e incerteza. Se um investidor não faz a menor ideia de qual será a definição da unidade de conta no futuro (sabendo apenas que seu poder de compra certamente será bem menor), o mínimo que ele irá exigir serão retornos altos em um curto espaço de tempo.

É exatamente por isso que, em países cuja moeda tem histórico de alta desvalorização, (alta inflação de preços), são raros os investimentos vultosos de longo prazo. É por isso que, em países cuja moeda tem histórico de alta desvalorização, os juros são altos. É por isso que, em países cuja moeda tem histórico de alta desvalorização, os bens produzidos são de baixa qualidade. É por isso que, em países cuja moeda tem histórico de alta desvalorização, as pessoas são mais pobres. 

E é exatamente por isso que uma moeda forte e estável é indispensável para o crescimento econômico. Quando a moeda é estável, investidores têm mais incentivos para se arriscar e financiar ideias novas e ousadas; eles têm mais disponibilidade para financiar a criação de uma riqueza que ainda não existe. O investimento em tecnologia é maior. O investimento em soluções ousadas para a saúde é maior. O investimento em infraestrutura é maior. O investimento em ideias para o bem-estar de todos é maior. 

Já quando a moeda é instável — ou passa por períodos de forte desvalorização —, os investidores preferem se refugiar em investimentos tradicionais e mais seguros, como imóveis e títulos do governo. Não há segurança para investimentos de longo prazo, que são os que mais criam riqueza.

Uma moeda instável desestimula investimentos produtivos. E, consequentemente, age contra o crescimento econômico. 

É por isso que nenhum país que tem moeda instável e com baixo poder de compra produz bens de qualidade e que são altamente demandados pelo comércio mundial. Todos os bens de qualidade são produzidos em países com inflação baixa e moeda forte. Apenas olhe a qualidade dos produtos alemães, suíços, japoneses, americanos, coreanos, canadenses, cingapurianos etc.

Uma moda fraca e instável, portanto, não apenas afeta todos os preços internos de um país (se a moeda está fraca, então será necessária uma maior quantidade dela para adquirir o mesmo bem), como também enfraquece toda a economia.

Não há escapatória: moeda fraca, investimentos baixos, economia fraca, carestia alta. Sem exceção.

A prática no Brasil

Toda essa longa digressão foi para explicar o que está ocorrendo no Brasil. Nossa moeda está doente. E essa doença da moeda é, sem dúvida, o grande catalisador da insatisfação generalizada com o governo Dilma. 

Este artigo exibe 20 gráficos que mostram que, durante o governo Dilma, o real se tornou uma moeda assustadoramente instável e fraca, tendo se desvalorizado até mesmo perante as moedas do Haiti, do Paraguai e da Bolívia. 

Mas mensurar o real perante outras moedas igualmente fiduciárias ainda não conta toda a história. Para ver a verdadeira saúde da moeda é necessário compará-la ao ouro — mais especificamente, a evolução do preço do ouro nesta moeda.

O ouro sempre foi a constante historicamente usada para mensurar objetivamente a robustez de uma moeda. Se o preço do ouro está subindo, a moeda está enfraquecendo; se o preço do ouro está caindo, a moeda está se fortalecendo. 

No que mais, dado que o ouro é uma commodity que é literalmente transacionada diariamente e a todo o momento, o preço do ouro representa um indicador instantâneo que expõe, antes de todas as outras estatísticas posteriormente coletadas, os erros (e os acertos) da política monetária.

E como se comportou o real, desde sua criação, perante o ouro? O gráfico abaixo mostra o preço, em reais, de um grama de ouro desde 1º de julho de 1994 (ignore aquelas linhas verticais; é defeito do algoritmo do Banco Central):



Gráfico 1: preço, em reais, de um grama de ouro.

O gráfico revela informações muito interessantes:

1) Quando nasceu, eram necessários R$ 10,50 para comprar 1 grama de ouro. Hoje, são necessários R$ 120. Isso significa que o real já se desvalorizou 91% desde sua criação.

2) Houve dois períodos em que o real foi relativamente estável perante o ouro: de julho de 1994 a dezembro de 1998, e de janeiro de 2004 a agosto de 2008. 

3) Esses dois períodos foram justamente aqueles em que o percentual de pobreza extrema mais caiu: 30% de 1993 a 1998, e 50% de 2003 a 2008.

4) Também foi durante estes dois períodos que a inflação de preços acumulada em 12 meses mais caiu: de 5.000% em junho de 1994 para 1,65% em dezembro de 1998, e de 17% em maio de 2003 para 3% em abril de 2007 (depois subindo para 6% em meados de 2008, em grande parte por causa da grande carestia mundial vivenciada pelos alimentos e pelo petróleo naquela época).

5) Já os dois períodos de maior descontrole foram os de 1999 a 2002, quando o preço do ouro quadruplicou e a pobreza extrema aumentou quase 10% (ver os dois links do item 2), e de meados de 2008 até hoje, em que o preço do ouro subiu 2,8 vezes. E, embora a pobreza extrema ainda tenha sido reduzida de 2008 até 2012, seu ritmo de queda foi bem mais lento (ver links do item 2). E, em 2013, a pobreza extrema voltou a subir.

6) Como era de se esperar, o investimento explodiu logo após a criação do real, chegando a 24% do PIB no segundo semestre de 1994, taxa até então insuperada. E se manteve em torno dos 20% até 1998. Depois, caiu 9% de 2000 a 2003. Já de 2003 a 2008, nova disparada, com um aumento de 25% (de 15,3% para 19,1% do PIB). A partir de 2008, no entanto, e como era de se esperar só de olhar o gráfico, o investimento estagnou.

7) Quando a moeda começa a se desvalorizar mais intensamente, ocorre aquilo que Mises chamou de "corrida para ativos reais": os investidores, em vez de aplicar seu capital em investimentos produtivos e criativos, passam a investir em ativos que oferecem proteção contra a desvalorização da moeda. Investimento em imóveis é a forma mais tradicional no Brasil. Não é de se surpreender, portanto, que a explosão nos preços dos imóveis no Brasil tenha ocorrido entre 2006 e 2012 (período em que o preço do ouro aumentou 3,5 vezes).

8) O atual momento de forte desvalorização do real, que gerou contração nos investimentos, sintetiza bem o descontentamento com o atual governo. O grama do ouro nunca esteve tão caro na história do real, e o ritmo da desvalorização só perde para o de janeiro de 1999. A população está perdendo seu poder de compra aceleradamente.

Não é à toa que a confiança do empresariado despencou forte e está no menor nível da série histórica:



9) No entanto, caso a atual desvalorização do real (veja a extremidade direita do gráfico 1) se mantenha, não descarte uma ressurreição na atividade imobiliária para fins puramente especulativos e de proteção de riqueza.

Vale repetir: quando a moeda se torna instável e se desvaloriza fortemente, o investimento deixa de ter fins produtivos e passa a se concentrar em atividades puramente especulativas, com o intuito de proteger a riqueza.

Nos Estados Unidos

Agora vejamos os Estados Unidos.

Lá, é possível perceber fenômenos idênticos. O gráfico a seguir mostra a evolução do preço de uma onça (31,1 gramas) de ouro em dólares:


Gráfico 2: preço, em dólares, de uma onça (31,1 gramas) de ouro

Algumas breves constatações:

1) Até 1971, o dólar era ancorado ao ouro. Em agosto de 1971, o presidente Nixon aboliu essa âncora, e o dólar passou a flutuar.

2) Como mostra o gráfico, a década de 1970 foi a década perdida dos EUA, principalmente o período 1976-1980, com a famosa estagflação do governo de Jimmy Carter.

3) Imediatamente após a flutuação do dólar, ocorreram nada menos do que 3 recessões em apenas 8 anos (áreas cinzas).

4) No entanto, de 1983 a 2000, o preço do dólar se manteve relativamente estável em relação ao ouro. Naturalmente, esses foram os anos da pujança americana. Alto crescimento, fartos investimentos, baixa inflação de preços, padrão de vida inigualável, pujança tecnológica, domínio econômico global. A quantidade de pessoas empregadas em relação à população total alcançou um nível que não mais foi superado. Vale observar que grandes empresas tecnológicas como Microsoft, Intel e Apple, embora tivessem sido criadas em décadas anteriores, só realmente se expandiram forte na década de 1980, quando abriram seu capital. Adicionalmente, aCisco foi criada na década de 1980, e a Google, em 1998. E não nos esqueçamos da incrível Amazon, fundada em 1994.

5) A partir de 2002, o dólar começa a se desvalorizar fortemente. A Guerra do Iraque, iniciada em março de 2003, acelerou ainda mais a desvalorização. Entre 2002 e 2008, o preço da onça de ouro pula de US$ 300 para quase US$ 1.000. E, como explicou Mises, isso gerou uma corrida para ativos reais, que culminou na bolha imobiliária. As pessoas pegavam empréstimos, compravam imóveis e revendiam a preços ainda maiores. É por isso que há quem diga que a bolha imobiliária americana nada mais foi do que uma inevitável reação das pessoas à desvalorização do dólar.

6) Embora o gráfico possa enganar, vale ressaltar que a desvalorização do dólar no período 2008 a 2012 foi percentualmente bem menor que a do período 2002—2008.

7) Caso a atual tendência de estabilidade do dólar se mantenha, a economia americana tem tudo para se recuperar em definitivo.

8) Observe que, de 2003 a meados de 2008, nossa moeda foi muito mais bem gerida que o dólar. Daí a grande popularidade de Lula (leia-se: Henrique Meirelles).

Um breve comentário sobre o salário mínimo no Brasil

Recentemente, a imprensa anunciou com estardalhaço que o poder de compra do salário mínimo em janeiro deste ano foi o maior desde 1965. Só que a fonte desse "estudo" é o próprio Banco Central, o mais interessado em propagandear notícias a seu favor. 

Utilizando uma metodologia completamente convoluta, a mesma instituição que está nos agraciando com um IPCA de quase 8% se autopromoveu desavergonhadamente e a mídia docilmente reportou sem contestar. Desnecessário dizer que, se tal notícia fosse realmente verídica, a aprovação do governo Dilma entre a população que ganha salário mínimo não seria a pior desde o final do governo Collor.

Portanto, façamos o que é certo: comparemos o salário mínimo à commodity que historicamente sempre foi utilizada para mensurar a robustez de uma moeda.

O gráfico a seguir mostra, em termos diários, quantos gramas de ouro o salário mínimo (veja aqui os valores) comprava.



Gráfico 3: quantos gramas de ouro um salário mínimo compra

Veja como a história fica bem diferente.

1) O maior valor do salário mínimo foi alcançado em agosto de 1998. Naquela época, um salário mínimo comprava 12,38 gramas de ouro. Não é de se estranhar, portanto, que Fernando Henrique tenha sido o único presidente a se reeleger no primeiro turno.

2) O crescente valor do salário mínimo (estipulado pelo governo) de 1994 a 1998 explica por que o desemprego naquela época foi alto. Nada mais do que a velha teoria econômica em ação.

3) A abrupta queda no poder de compra do salário mínimo de 1999 a 2002 (terminou 2002 comprando apenas 5 gramas de ouro) destruiu a reputação de FHC entre os mais pobres.

4) De 2003 a meados de 2008, o poder de compra do salário mínimo dobrou. Mas, ainda assim, era equivalente ao valor do primeiro semestre de 1997, e bem abaixo do poder de compra alcançado em meados de 1998. No entanto, tamanha recuperação foi o suficiente para garantir a elevada popularidade de Lula.

5) Durante todo o governo Dilma, o poder de compra do salário mínimo tem sido um dos mais baixos da história do real. Isso ajuda a explicar o baixo desemprego (que, estatisticamente, é o mais baixo da história do real). De novo, nada mais do que a velha teoria econômica em ação.

Conclusão

O artigo foi iniciado falando sobre como nós estamos garantindo a boa, farta e barata mesa dos americanos, e à custa de nosso próprio estômago. A extremidade direita dos gráficos 1 e 2 explica a história. Não é que o dólar esteja se valorizando (ele está, é fato); o real é que está sendo impiedosamente destruído.

A desvalorização do real é um fenômeno que gera uma bonança para os consumidores estrangeiros e carestia para todos os consumidores nacionais. Nossa renda efetiva cai, nosso poder de compra cai, a confiança despenca, os investimentos desabam, a economia degringola, a pobreza aumenta. E nossos produtos, inclusive alimentos, são mandados para fora a um volume maior. 

É justamente por isso que é irônico ver economistas de esquerda defendendo desvalorização da moeda como forma de estimular o crescimento econômico. Além de não fazer nenhum sentido econômico (adulterar a unidade de conta da economia não gera crescimento; ao contrário, gera desinvestimento), é difícil imaginar uma medida mais anti-povo do que essa. 

A população foi às ruas protestar não só por causa da corrupção. Ela foi às ruas porque a moeda está sendo destruída a um ritmo que mais parece a aceleração de um Fórmula 1, e isso afeta diretamente a qualidade de vida, o bem-estar e robustez da economia. 

A conta de luz subiu 50%. O dólar está em R$ 3,25. O país está em recessão. O desemprego chegou. A tabela do imposto de renda não foi corrigida para compensar a perda do poder de compra da moeda. Encher o tanque ficou bem mais caro. A Petrobras não consegue publicar seu balanço há seis meses por conta de um esquema de corrupção que desviou, por baixo, R$ 88 bilhões de seus cofres. O BNDES empresta bilhões de reais paraditaduras e se nega a prestar contas desses empréstimos. O ex-presidente ameaçou colocar um exército paralelo nas ruas para coibir quem pensa diferente. O governo paga pessoas para se manifestarem a seu favor.

E, no entanto, se você reclama de algo, você só o faz porque é da "elite branca" que odeia pobres.

Chegamos a um ponto em que nem sequer podemos mais reclamar da destruição da nossa moeda e da perda do nosso poder de compra. Não mais podemos reclamar que o governo está, mais uma vez, desarranjando a economia e nossa qualidade de vida. Se você faz isso, você é rotulado de "elite branca". E por pessoas que juram que isso é um argumento.

Voltamos ao jardim de infância.

Aqui vai uma dica para Michel Temer: quer se tornar popular quando assumir o governo? Estabilize a moeda em relação ao ouro. As consequências são incríveis. Não é teoria. É empiria.
Por: Leandro Roque, editor e tradutor do site do Instituto Ludwig von Mises Brasil.
Do site: http://www.mises.org.br




quarta-feira, 8 de abril de 2015

A MAIS MALDITA DAS HERANÇAS DO PT

Mais brutal para o Partido dos Trabalhadores pode ser não a multidão que ocupou as ruas em 15 de março, mas aquela que já não sairia de casa para defendê-lo em dia nenhum.


O maior risco para o PT, para além do governo e do atual mandato, talvez não seja a multidão que ocupou as ruas do Brasil, mas a que não estava lá. São os que não estavam nem no dia 13 de março, quando movimentos como CUT, UNE e MST organizaram uma manifestação que, apesar de críticas a medidas de ajuste fiscal tomadas pelo governo, defendia a presidente Dilma Rousseff. Nem estavam no já histórico domingo, 15 de março, quando centenas de milhares de pessoas aderiram aos protestos, em várias capitais e cidades do país, em manifestações contra Dilma Rousseff articuladas nas redes sociais da internet, com bandeiras que defendiam o fim da corrupção, o impeachment da presidente e até uma aterradora, ainda que minoritária, defesa da volta da ditadura. São os que já não sairiam de casa em dia nenhum empunhando uma bandeira do PT, mas que também não atenderiam ao chamado das forças de 15 de março, os que apontam que o partido perdeu a capacidade de representar um projeto de esquerda – e gente de esquerda. É essa herança do PT que o Brasil, muito mais do que o partido, precisará compreender. E é com ela que teremos de lidar durante muito mais tempo do que o desse mandato.

Tenho dúvidas sobre a tecla tão batida por esses dias do Brasil polarizado. Como se o país estivesse dividido em dois polos opostos e claros. Ou, como querem alguns, uma disputa de ricos contra pobres. Ou, como querem outros, entre os cidadãos contra a corrupção e os beneficiados pela corrupção. Ou entre os a favor e os contra o governo. Acho que a narrativa da polarização serve muito bem a alguns interesses, mas pode ser falha para a interpretação da atual realidade do país. Se fosse simples assim, mesmo com a tese do impeachment nas ruas, ainda assim seria mais fácil para o PT.

Algumas considerações prévias. Se no segundo turno das eleições de 2014, Dilma Rousseff ganhou por uma pequena margem – 54.501.118 votos contra 51.041.155 de Aécio Neves –, não há dúvida de que ela ganhou. Foi democraticamente eleita, fato que deve ser respeitado acima de tudo. Não existe até esse momento nenhuma base para impeachment, instrumento traumático e seríssimo que não pode ser manipulado com leviandade, nem mesmo no discurso. Quem não gostou do resultado ou se arrependeu do voto, paciência, vai ter de esperar a próxima eleição. Os resultados valem também quando a gente não gosta deles. E tentar o contrário, sem base legal, é para irresponsáveis ou ignorantes ou golpistas.

No resultado das eleições ampliou-se a ressonância da tese de um país partido e polarizado. Mas não me parece ser possível esquecer que outros 37.279.085 brasileiros não escolheram nem Dilma nem Aécio, votando nulo ou branco e, a maior parte, se abstendo de votar. É muita gente – e é muita gente que não se sentia representada por nenhum dos dois candidatos, pelas mais variadas razões, à esquerda e também à direita, o que complica um pouco a tese da polarização. Além das divisões entre os que se polarizariam em um lado ou outro, há mais atores no jogo que não estão nem em um lado nem em outro. E não é tão fácil compreender o papel que desempenham. No mesmo sentido, pode ser muito arriscado acreditar que quem estava nos protestos neste domingo eram todos eleitores de Aécio Neves. A rua é, historicamente, o território das incertezas – e do incontrolável.

Há lastro na realidade para afirmar também que uma parte dos que só aderiram à Dilma Rousseff no segundo turno era composta por gente que acreditava em duas teses amplamente esgrimidas na internet às vésperas da votação: 1) a de que Dilma, assustada por quase ter perdido a eleição, em caso de vitória faria “uma guinada à esquerda”, retomando antigas bandeiras que fizeram do PT o PT; 2) a de votar em Dilma “para manter as conquistas sociais” e “evitar o mal maior”, então representado por Aécio e pelo PSDB. Para estes, Dilma Rousseff não era a melhor opção, apenas a menos ruim para o Brasil. E quem pretendia votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor da esquerda e também do país e do povo brasileiro, ou ainda um covarde, acusações que ampliaram, às vésperas das eleições, a cisão entre pessoas que costumavam lutar lado a lado pelas mesmas causas. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político.

Faz sentido suspeitar que uma fatia significativa destes que aderiram à Dilma apenas no segundo turno, que ou esperavam “uma guinada à esquerda” ou “evitar o mal maior”, ou ambos, decepcionaram-se com o seu voto depois da escolha de ministros como Kátia Abreu e Joaquim Levy, à direita no espectro político, assim como com medidas que afetaram os direitos dos trabalhadores. Assim, se a eleição fosse hoje, é provável que não votassem nela de novo. Esses arrependidos à esquerda aumentariam o número de eleitores que, pelas mais variadas razões, votaram em branco, anularam ou não compareceram às urnas, tornando maior o número de brasileiros que não se sentem representados por Dilma Rousseff e pelo PT, nem se sentiriam representados por Aécio Neves e pelo PSDB.

Esses arrependidos à esquerda, assim como todos aqueles que nem sequer cogitaram votar em Dilma Rousseff nem em Aécio Neves porque se situam à esquerda de ambos, tampouco se sentem identificados com qualquer um dos grupos que foi para as ruas no domingo contra a presidente. Para estes, não existe a menor possibilidade de ficar ao lado de figuras como o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) ou de defensores da ditadura militar ou mesmo de Paulinho da Força. Mas também não havia nenhuma possibilidade de andar junto com movimentos como CUT, UNE e MST, que para eles “pelegaram” quando o PT chegou ao poder: deixaram-se cooptar e esvaziaram-se de sentido, perdendo credibilidade e adesão em setores da sociedade que costumavam apoiá-los.

Essa parcela da esquerda – que envolve desde pessoas mais velhas, que historicamente apoiaram o PT, e muitos até que ajudaram a construí-lo, mas que se decepcionaram, assim como jovens filhos desse tempo, em que a ação política precisa ganhar horizontalidade e se construir de outra maneira e com múltiplos canais de participação efetiva – não encontrou nenhum candidato que a representasse. No primeiro turno, dividiram seus votos entre os pequenos partidos de esquerda, como o PSOL, ou votaram em Marina Silva, em especial por sua compreensão da questão ambiental como estratégica, num mundo confrontado com a mudança climática, mas votaram com dúvidas. No segundo turno, não se sentiram representados por nenhum dos candidatos.

Marina Silva foi quem chegou mais perto de ser uma figura com estatura nacional de representação desse grupo à esquerda, mais em 2010 do que em 2014. Mas fracassou na construção de uma alternativa realmente nova dentro da política partidária. Em parte por não ter conseguido registrar seu partido a tempo de concorrer às eleições, o que a fez compor com o PSB, sigla bastante complicada para quem a apoiava, e assumir a cabeça de chapa por conta de uma tragédia que nem o mais fatalista poderia prever; em parte por conta da campanha mentirosa e de baixíssimo nível que o PT fez contra ela; em parte por equívocos de sua própria campanha, como a mudança do capítulo do programa em que falava de sua política para os LGBTs, recuo que, além de indigno, só ampliou e acentuou a desconfiança que muitos já tinham com relação à interferência de sua fé evangélica em questões caras como casamento homoafetivo e aborto; em parte porque escolheu ser menos ela mesma e mais uma candidata que supostamente seria palatável para estratos da população que precisava convencer. São muitas e complexas as razões.

O que aconteceu com Marina Silva em 2014 merece uma análise mais profunda. O fato é que, embora ela tenha ganhado, no primeiro turno de 2014, cerca de 2,5 milhões de votos a mais do que em 2010, seu capital político parece ter encolhido, e o partido que está construindo, a Rede Sustentabilidade, já sofreu deserções de peso. Talvez ela ainda tenha chance de recuperar o lugar que quase foi seu, mas não será fácil. Esse é um lugar vago nesse momento.

Há uma parcela politizada, à esquerda, que hoje não se sente representada nem pelo PT nem pelo PSDB, não participou de nenhum dos panelaços nem de nenhuma das duas grandes manifestações dos últimos dias, a de 15 de março várias vezes maior do que a do dia 13. É, porém, muito atuante politicamente em várias áreas e tem grande poder de articulação nas redes sociais. Não tenho como precisar seu tamanho, mas não é desprezível. É com essa parcela de brasileiros, que votou em Lula e no PT por décadas, mas que deixou de votar, ou de jovens que estão em movimentos horizontais apartidários, por causas específicas, que apontam o que de fato deveria preocupar o PT, porque esta era ou poderia ser a sua base, e foi perdida.

A parcela de esquerda que não bateria panelas contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderia, aponta a falência do PT em seguir representando o que representou no passado. Aponta que, em algum momento, para muito além do Mensalão e da Lava Jato, o PT escolheu se perder da sua base histórica, numa mistura de pragmatismo com arrogância. É possível que o PT tenha deixado de entender o Brasil. Envelhecido, não da forma desejável, representada por aqueles que continuam curiosos em compreender e acompanhar as mudanças do mundo, mas envelhecido da pior forma, cimentando-se numa conjuntura histórica que já não existe. E que não voltará a existir. Essa aposta arriscada precisa que a economia vá sempre bem; quando vai mal, o chão desaparece.

Fico perplexa quando lideranças petistas, e mesmo Lula, perguntam-se, ainda que retoricamente, por que perderam as ruas. Ora, perderam porque o PT gira em falso. O partido das ruas perdeu as ruas – menos porque foi expulso, mais porque se esqueceu de caminhar por elas. Ou, pior, acreditou que não precisava mais. Nesse contexto, Dilma Rousseff é só a personagem trágica da história, porque em algum momento Lula, com o aval ativo ou omisso de todos os outros, achou que poderia eleger uma presidente que não gosta de fazer política. Estava certo a curto prazo, podia. Mas sempre há o dia seguinte.

Não adianta ficar repetindo que só bateu panela quem é da elite. Pode ter sido maior o barulho nos bairros nobres de São Paulo, por exemplo, mas basta um pequeno esforço de reportagem para constatar que houve batuque de panelas também em bairros das periferias. Ainda que as panelas batessem só nos bairros dos ricos e da classe média, não é um bom caminho desqualificar quem protesta, mesmo que você ou eu não concordemos com a mensagem, com termos como “sacada gourmet” ou “panelas Le Creuset”. Todos têm direito de protestar numa democracia e muitos dos que ridicularizam quem protestou pertencem à mesma classe média e talvez tenham uma ou outra panelinha Le Creuset ou até pagou algumas prestações a mais no apartamento para ter uma sacada gourmet, o que não deveria torná-los menos aptos nem a protestar nem a criticar o protesto.

Nos panelaços, só o que me pareceu inaceitável foi chamar a presidente de “vagabunda” ou de “vaca”, não apenas porque é fundamental respeitar o seu cargo e aqueles que a elegeram, mas também porque não se pode chamar nenhuma mulher dessa maneira. E, principalmente, porque o “vaca” e o “vagabunda” apontam a quebra do pacto civilizatório. É nesses xingamentos, janela a janela, que está colocado o rompimento dos limites, o esgarçamento do laço social. Assim como, no domingo de 15 de março, essa ruptura esteve colocada naqueles que defendiam a volta da ditadura. Não há desculpa para desconhecer que o regime civil militar que dominou o Brasil pela força por 21 anos torturou gente, inclusive crianças, e matou gente. Muita gente. Assim, essa defesa é inconstitucional e criminosa. Com isso, sim, precisamos nos preocupar, em vez de misturar tudo numa desqualificação rasteira. É urgente que a esquerda faça uma crítica (e uma autocrítica) consistente, se quiser ter alguma importância nesse momento agudo do país.

Também não adianta continuar afirmando que quem foi para as ruas é aquela fatia da população que é contra as conquistas sociais promovidas pelo governo Lula, que tirou da miséria milhões de brasileiros e fez com que outros milhões ascendessem ao que se chamou de classe C. Pessoas as quais é preciso respeitar mais pelo seu passado do que pelo seu presente ficaram repetindo na última semana que quem era contra o PT não gostava de pobres nos aeroportos ou estudando nas universidades, entre outras máximas. É fato que existem pessoas incomodadas com a mudança histórica que o PT reconhecidamente fez, mas dizer que toda oposição ao PT e ao governo é composta por esse tipo de gente, ou é cegueira ou é má fé.

Num momento tão acirrado, todos que têm expressão pública precisam ter muito mais responsabilidade e cuidado para não aumentar ainda mais o clima de ódio – e disseminar preconceitos já se provou um caminho perigoso. Até a negação deve ter limites. E a negação é pior não para esses ricos caricatos, mas para o PT, que já passou da hora de se olhar no espelho com a intenção de se enxergar. De novo, esse discurso sem rastro na realidade apenas gira em falso e piora tudo. Mesmo para a propaganda e para o marketing, há limites para a falsificação da realidade. Se é para fazer publicidade, a boa é aquela capaz de captar os anseios do seu tempo.

É também por isso que me parece que o grande problema para o PT não é quem foi para as ruas no domingo, nem quem bateu panela, mas quem não fez nem uma coisa nem outra, mas também não tem a menor intenção de apoiá-lo, embora já o tenha feito no passado ou teria feito hoje se o PT tivesse respeitado as bandeiras do passado. Estes apontam o que o PT perdeu, o que já não é, o que possivelmente não possa voltar a ser.

O PT traiu algumas de suas bandeiras de identidade, aquelas que fazem com que em seu lugar seja preciso colocar máscaras que não se sustentam por muito tempo. Traiu não apenas por ter aderido à corrupção, que obviamente não foi inventada por ele na política brasileira, fato que não diminui em nada a sua responsabilidade. A sociedade brasileira, como qualquer um que anda por aí sabe, é corrupta da padaria da esquina ao Congresso. Mas ser um partido “ético” era um traço forte da construção concreta e simbólica do PT, era parte do seu rosto, e desmanchou-se. Embora ainda existam pessoas que merecem o máximo respeito no PT, assim como núcleos de resistência em determinadas áreas, secretarias e ministérios, e que precisam ser reconhecidos como tal, o partido traiu causas de base, aquelas que fazem com que se desconheça. Muitos dos que hoje deixaram de militar ou de apoiar o PT o fizeram para serem capazes de continuar defendendo o que o PT acreditava. Assim como compreenderam que o mundo atual exige interpretações mais complexas. Chamar a estes de traidores ou de fazer o jogo da direita é de uma boçalidade assombrosa. Até porque, para estes, o PT é a direita.

A parcela à esquerda que preferiu ficar fora de manifestações a favor ou contra lembra que tão importante quando discutir a corrupção na Petrobras é debater a opção por combustíveis fósseis que a Petrobras representa, num momento em que o mundo precisa reduzir radicalmente suas emissões de gases do efeito estufa. Lembra que estimular a compra de carros como o governo federal fez é contribuir com o transporte privado individual motorizado, em vez de investir na ampliação do transporte público coletivo, assim como no uso das bicicletas. É também ir na contramão ao piorar as condições ambientais e de mobilidade, que costumam mastigar a vida de milhares de brasileiros confinados por horas em trens e ônibus lotados num trânsito que não anda nas grandes cidades. Lembra ainda que estimular o consumo de energia elétrica, como o governo fez, é uma irresponsabilidade não só econômica, mas socioambiental, já que os recursos são caros e finitos. Assim como olhar para o colapso da água visando apenas obras emergenciais, mas sem se preocupar com a mudança permanente de paradigma do consumo e sem se preocupar com o desmatamento tanto da floresta amazônica quanto do Cerrado quanto das nascentes do Sudeste e dos últimos redutos sobreviventes de Mata Atlântica fora e dentro das cidades é um erro monumental a médio e a longo prazos.

Os que não bateram panelas contra o PT e que não bateriam a favor lembram que a forma de ver o país (e o mundo) do lulismo pode ser excessivamente limitada para dar conta dos vários Brasis. Povos tradicionais e povos indígenas, por exemplo, não cabem nem na categoria “pobres” nem na categoria “trabalhadores”. Mas, ao fazer grandes hidrelétricas na Amazônia, ao ser o governo de Dilma Rousseff o que menos demarcou terras indígenas, assim como teve desempenho pífio na criação de reservas extrativistas e unidades de conservação, ao condenar os povos tradicionais ao etnocídio ou à expulsão para a periferia das cidades, é em pobres que são convertidos aqueles que nunca se viram nesses termos. Em parte, a construção objetiva e simbólica de Lula – e sua forma de ver o Brasil e o mundo – encarna essa contradição (escrevi sobre isso aqui), que o PT não foi capaz nem quis ser capaz de superar no poder. Em vez de enfrentá-la, livrou-se dos que a apontavam, caso de Marina Silva.

O PT no governo priorizou um projeto de desenvolvimento predatório, baseado em grandes obras, que deixou toda a complexidade socioambiental de fora. Escolha inadmissível num momento em que a ação do homem como causa do aquecimento global só é descartada por uma minoria de céticos do clima, na qual se inclui o atual ministro de Ciência e Tecnologia, Aldo Rebelo, mais uma das inacreditáveis escolhas de Dilma Rousseff. A síntese das contradições – e também das traições – do PT no poder não é a Petrobras, mas Belo Monte. Sobre a usina hidrelétrica já pesa a denúncia de que só a construtora Camargo Corrêa teria pagado mais de R$ 100 milhões em propinas para o PT e para o PMDB. É para Belo Monte que o país precisaria olhar com muito mais atenção. É na Amazônia, onde o PT reproduziu a visão da ditadura ao olhar para a floresta como um corpo para a exploração, que as fraturas do partido ao chegar ao poder se mostram em toda a sua inteireza. E é também lá que a falácia de que quem critica o PT é porque não gosta de pobre vira uma piada perversa.

A sorte do PT é que a Amazônia é longe para a maioria da população e menos contada pela imprensa do que deveria, ou contada a partir de uma visão de mundo urbana que não reconhece no outro nem a diferença nem o direito de ser diferente. Do contrário, as barbaridades cometidas pelo PT contra os trabalhadores pobres, os povos indígenas e as populações tradicionais, e contra uma floresta estratégica para o clima, para o presente e para o futuro, seriam reconhecidas como o escândalo que de fato são. É também disso que se lembram aqueles que não gritaram contra Dilma Rousseff, mas também não a defenderiam.

Lembram também que o PT não fez a reforma agrária; ficou aquém na saúde e na educação, transformando “Brasil, Pátria Educadora” num slogan natimorto; avançou muito pouco numa política para as drogas que vá além da proibição e da repressão, modelo que encarcera milhares de pequenos traficantes num sistema prisional sobre o qual o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, já disse que “prefere morrer a cumprir pena”; cooptou grande parte dos movimentos sociais (que se deixaram cooptar por conveniência, é importante lembrar); priorizou a inclusão social pelo consumo, não pela cidadania; recuou em questões como o kit anti-homofobia e o aborto; se aliou ao que havia de mais viciado na política brasileira e aos velhos clãs do coronelismo, como os Sarney.

Isso é tão ou mais importante do que a corrupção, sobre a qual sempre se pode dizer que começou bem antes e atravessa a maioria dos partidos, o que também é verdade. Olhar com honestidade para esse cenário depois de mais de 12 anos de governo petista não significa deixar de reconhecer os enormes avanços que o PT no poder também representou. Mas os avanços não podem anular nem as traições, nem os retrocessos, nem as omissões, nem os erros. É preciso enfrentar a complexidade, por toda as razões e porque ela diz também sobre a falência do sistema político no qual o país está atolado, para muito além de um partido e de um mandato.

Há algo que o PT sequestrou de pelo menos duas gerações de esquerda e é essa a sua herança mais maldita. E a que vai marcar décadas, não um mandato. Tenho entrevistado pessoas que ajudaram a construir o PT, que fizeram dessa construção um projeto de vida, concentradas em lutas específicas. Essas pessoas se sentem traídas porque o partido rasgou suas causas e se colocou ao lado de seus algozes. Mas não traídas como alguém de 30 anos pode se sentir traído em seus últimos votos. Este tem tempo para construir um projeto a partir das novas experiências de participação política que se abrem nesse momento histórico muito particular. Os mais velhos, os que estiveram lá na fundação, não. Estes sentem-se traídos como alguém que não tem outra vida para construir e acreditar num novo projeto. É algo profundo e também brutal, é a própria vida que passa a girar em falso, e justamente no momento mais crucial dela, que é perto do fim ou pelo menos nas suas últimas décadas. É um fracasso também pessoal, o que suas palavras expressam é um testemunho de aniquilação. Algumas dessas pessoas choraram neste domingo, dentro de casa, ao assistir pela TV o PT perder as ruas, como se diante de um tipo de morte.

O PT, ao trair alguns de seus ideias mais caros, escavou um buraco no Brasil. Um bem grande, que ainda levará tempo para virar marca. Não adianta dizer que outros partidos se corromperam, que outros partidos recuaram, que outros partidos se aliaram a velhas e viciadas raposas políticas. É verdade. Mas o PT tinha um lugar único no espectro partidário da redemocratização, ocupava um imaginário muito particular num momento em que se precisava construir novos sentidos para o Brasil. Era o partido “diferente”. Quem acreditou no PT esperou muito mais dele, o que explica o tamanho da dor daqueles que se desfiliaram ou deixaram de militar no partido. A decepção é sempre proporcional à esperança que se tinha depositado naquele que nos decepciona.

É essa herança que precisamos entender melhor, para compreender qual é a profundidade do seu impacto no país. E também para pensar em como esse vácuo pode ser ocupado, possivelmente não mais por um partido, pelo menos não um nos moldes tradicionais. Como se sabe, o vácuo não se mantém. Quem acredita em bandeiras que o PT já teve precisa parar de brigar entre si – assim como de desqualificar todos os outros como “coxinhas” – e encontrar caminhos para ocupar esse espaço, porque o momento é limite. O PT deve à sociedade brasileira um ajuste de contas consigo mesmo, porque o discurso dos pobres contra ricos já virou fumaça. Não dá para continuar desconectado com a realidade, que é só uma forma estúpida de negação.
Por: Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficção Coluna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos e do romance Uma Duas. Site: desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter: @brumelianebrum