sábado, 25 de janeiro de 2014

UMA DOENÇA FRANCESA

Em 2013, um historiador francês, militante da extrema-direita, entrou na Catedral de Notre-Dame, em Paris. Junto ao altar, apontou a arma à cabeça. Disparou. Explicações para o ato?


O casamento gay, leu-se em mensagem do suicida, escrita antes do "happening". A República Francesa tinha aprovado uma lei sobre a matéria e Dominique Venner (eis o nome) considerou a heresia o último prego no caixão da França. Espalhar os miolos em Notre-Dame pareceu-lhe uma forma razoável de defender as suas ideias.

Nos dias seguintes, escreveram-se toneladas de artigos sobre o caso. Todos eles batiam na mesma tecla analfabeta: como é possível explicar que a França - pátria da "tolerância" e da "Revolução Francesa" - ofereça tais espetáculos de radicalismo?

Ri muito com a sabedoria dos articulistas. Primeiro, porque usar as palavras "tolerância" e "Revolução Francesa" na mesma frase é um "gag" digno do pessoal da Porta dos Fundos.
Mas será que o mundo já esqueceu que, em matéria de extremismo político, a França é um caso historicamente patológico?

Sim, a trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade" é excelente para encher a boca dos poetas. Mas a Revolução Francesa, e sobretudo o período do Terror entre 1792 e 1794, foi um carnaval de violência e desumanidade que nenhuma pessoa letrada pode contemplar com cara séria.

Sim, a França garantiu a emancipação dos judeus no século 18, integrando-os na vida nacional como poucos países europeus o fizeram.

Mas será preciso lembrar que tanta "tolerância" converteu-se num dos mais infames fenômenos de antissemitismo quando um oficial francês de origem judaica, Alfred Dreyfus (1859 - 1935), foi injustamente acusado de passar segredos militares para os alemães e condenado a prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa?

A terra da "liberdade, igualdade, fraternidade" é também um país com uma tradição antissemita forte. Uma tradição partilhada pela extrema-direita clássica (bastará ler os textos Charles Maurras ou as proclamações tonitruantes da Frente Nacional da família Le Pen) a que se junta agora o "humorista" (peço desculpa pelo abuso do termo) Dieudonné M'Bala M'Bala.

O caso é conhecido: Dieudonné, que tem em seu repertório piadas negacionistas do Holocausto e um gesto que consiste em fazer a saudação nazista invertida (o chamado "quenelle"), teve vários dos seus shows cancelados em prefeituras de França por decisões judiciais. Parece que Dieudonné incita ao ódio racial com suas tiradas antissemitas e representa um perigo para a ordem pública.

Como é evidente, o "humorista" converteu-se em "mártir" nacional - e a "quenelle" passou a ser gesto disseminado pelo país inteiro. Como se fosse um cumprimento informal entre amigos.
Ponto de ordem: sou contra limitações à liberdade de expressão, mesmo que essa liberdade nos soe ofensiva e grotesca. Proibir Dieudonné de fazer os seus shows aberrantes é conceder-lhe uma importância que normalmente não dedicamos a um delinquente vulgar.

Mas o mais inquietante da história não está nos shows de Dieudonné. Está nos milhares de franceses que, de norte a sul, imitam os seus gestos como se o nazismo ou as câmaras de gás fossem matéria de dúvida ou escárnio. Em que outro país da Europa ocidental essa espécie de "antissemitismo chic" seria praticado com tanto sucesso?

Da próxima vez que escutar a trilogia "liberdade, igualdade, fraternidade", tenha cuidado: depois das guilhotinas, pode haver alguém por perto a fazer a saudação nazista invertida

Por: João Pereira Coutinho Folha de SP

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