terça-feira, 3 de novembro de 2015

DUAS ÉPOCAS

Toda a esfera das atividades “culturais” tornou-se uma farsa subsidiada, um rateio de cargos, benesses, paparicações e verbas estatais entre os “companheiros”


Um dos sinais mais óbvios da autenticidade humana de um movimento político é a sua capacidade de inspirar grandes obras de literatura. Todo movimento revolucionário, no início, tem esse dom, pela simples razão de que há sempre injustiças no mundo e a revolta contra elas é uma tendência natural do coração humano. Os revolucionários apenas se apropriam dela e a utilizam como canal para a conquista do poder. Invariavelmente, tão logo instalados no poder eles multiplicam e reforçam as injustiças em vez de eliminá-las.

Isso não acontece por uma coincidência ou por algum desvio dos ideais revolucionários, mas por efeito incontornável da própria mecânica revolucionária. Quem sobe ao poder em nome de uma sociedade futura, amaldiçoando a sociedade presente na sua totalidade, só se submete ao veredito do futuro e da História, colocando-se portanto acima do julgamento dos vivos. A cristalização do impulso revolucionário numa ditadura totalitária é assim o caminho normal e normativo das revoluções sociais e não uma distorção dos seus propósitos iniciais.

Daí que a literatura de inspiração revolucionária acabe logo cedendo lugar à literatura dos dissidentes, dos prisioneiros de consciência, dos exilados e desiludidos. E invariavelmente a segunda é mais forte e mais inspirada que a primeira, porque não reflete os ideais e slogans de um movimento político, mas a experiência direta dos horrores da revolução consolidada.

Por isso é que, se nos países capitalistas se produz alguma boa literatura comunista, nos países comunistas a única grande literatura que aparece é anticomunista.

Nada do que o comunismo em ascensão produziu na Rússia, nem mesmo A Mãe, de Máximo Gorki, ou O Don Silencioso, de Vladimir Sholokov, pontos altos da literatura soviética, se compara às obras-primas de Joseph Brodsky, Alexander Zinoviev, Alexander Soljenítsin, Ossip e Nadja Mandelstam. 

No caso cubano, a diferença é mais pronunciada ainda. Quem ainda se lembrará de qualquer romance ou poema pró-castrista, se pode ler os livros de Guillermo Cabrera Infante, Severo Sarduy, Reinaldo Arenas e Leonardo Padura? Entre aqueles que não se opuseram frontalmente ao regime, ainda vale a pena ler Alejo Carpentier, que no seu período de burocrata paparicado pela ditadura nunca mais voltou a escrever algo do porte de El Reyno de Este Mundo, de 1949, e José Lezama Lima, Paradiso, de 1966, espancado pela crítica oficial cubana por sua estética “burguesa”.

Na esfera da filosofia e das ciências sociais, a penúria intelectual daquilo que proveio dos países da Cortina de Ferro contrasta de maneira patética com a riqueza e criatividade da produção marxista... nas democracias capitalistas.

Se os movimentos revolucionários inspiram ideias e obras de arte enquanto lutam contra um governo estabelecido, tão logo chegam ao poder dedicam-se com empenho e diligência em secar todas as fontes, em reduzir tudo a um deserto mental mil vezes mais seco e estéril do que qualquer ditadura reacionária jamais logrou instaurar.

No tempo dos militares, a esquerda queixava-se do empobrecimento intelectual do ambiente, ao qual no entanto ela própria, tanto quanto a direita, dava um brilho e um vigor que hoje seriam impensáveis.

Vejam só algumas amostras casuais de livros publicados naquela fase que os esquerdistas, por demagogia ou loucura, descreviam como o fundo do poço cultural.
Por: Olavo de Carvalho Publicado no Diário do Comercio

Nenhum comentário: