quarta-feira, 7 de maio de 2014

O PARADOXO DAS ESQUERDAS


O tempo passa, as sociedades evoluem, as ideias se renovam, mas há coisas que não mudam jamais. O ódio das esquerdas ao livre mercado, por exemplo, é uma delas. Esse ódio, entretanto, tem contornos extremamente contraditórios, pois parte daqueles que, pelo menos da boca para fora, se intitulam defensores dos fracos e dos oprimidos. Afinal, o capitalismo tem como principal virtude oferecer produtos e serviços de forma abundante e a preços accessíveis, transformando os consumidores de baixa-renda nos seus principais beneficiários.

Peguemos, por exemplo, a fúria dos ungidos¹ contra o Walmart. A acusação mais frequente a esse maldito conglomerado — que insiste em vender mais barato que a concorrência — é de que ele paga salários muito baixos aos seus empregados, além de não conceder certos benefícios extras, “exigidos” por sindicatos de trabalhadores. A ladainha é a mesma de sempre: o capitalista ganancioso explora o trabalhador indefeso, pagando-lhe salários injustos.

O que os ungidos nunca dizem é que a empresa da Família Walton costuma empregar muitos jovens, sem qualquer experiência profissional anterior, e idosos, que trabalham para complementar suas aposentadorias. “Esquecem” ainda que, se esses indivíduos não estivessem trabalhando para o Walmart, estariam provavelmente engordando os índices de desemprego, já que em qualquer país livre, como os EUA e outros onde o WM está instalado, ninguém pode obrigar os demais a trabalhar. Os contratos são atos voluntários entre as partes e, portanto, se existe gente interessada em vender serviços a um patrão ganancioso e malvado, é porque as alternativas certamente seriam piores. Porém, nada disso importa diante do indefectível argumento da exploração do trabalhador pelo bicho-papão capitalista, que dá origem à não menos famosa e estapafúrdia teoria da luta de classes, sofisma marxista subjacente à maioria das críticas ao processo capitalista.

A ciência econômica é, frequentemente, contraintuitiva (oposta ao senso comum) e, por isso, quase sempre mal compreendida pela maioria das pessoas (muito por culpa dos próprios economistas, que fazem questão de torná-la ininteligível para os reles mortais). A vanguarda do atraso se vale exatamente dessa dificuldade cognitiva para espalhar desinformação e, de quebra, todas as falácias que lhes interessam.

Ludwig Von Mises foi um dos economistas que fugiu à regra acima. No seu monumental Ação Humana, ele discute o tema do trabalho de forma brilhante e exaustiva, explicando detalhadamente como e porque a labuta só é preferível ao ócio (termo usado aqui no sentido de “não-trabalho”) até onde o produto daquela é mais urgentemente desejado do que satisfação gerada por este. O homem, ao considerar o esforço físico, mental ou psicológico do trabalho, avalia não somente se haveria um fim mais desejável para o emprego de suas energias, mas também, e não menos, se não seria mais conveniente e satisfatório abster-se dele. O ócio seria, portanto, “objeto da ação intencional do ser humano”, ou, nas palavras do autor, um “bem econômico de primeira ordem”, enquanto o trabalho é somente um dos meios utilizados para alcançá-lo.

Qualquer que seja o nível de renda, portanto, a maioria dos homens estará propensa a largar o trabalho no ponto em que não mais considere a sua utilidade como compensação suficiente para o desconforto gerado por ele. Por esse mesmo raciocínio, se houver alguém disposto a pagar para que não façamos nada, o produto do trabalho terá que ser bem mais alto e, consequentemente, compensador, para que nos disponhamos a abandonar o ócio remunerado (vide o resultado de programas como seguro-desemprego, Bolsa-Família e congêneres na oferta de mão-de-obra).

Esta lição simples é constantemente negligenciada pelos ungidos ao vomitar sobre nós os seus sofismas econômicos. Malgrado a fantasia marxista da “mais valia” já tenha sido sobejamente desmentida por inúmeros economistas, a imagem apresentada ao público continua sendo a de que as grandes corporações se beneficiam dos baixos salários pagos aos funcionários ou, em palavras mais exatas, que o capital é o grande vilão do trabalho.

Não é outra a razão por que essa gente é contrária a qualquer avanço econômico ou tecnológico. No passado, espernearam contra inovações que melhoraram muito a vida do ser humano em geral, como a linha de montagem e a mecanização industrial. Hoje, combatem a robótica, os computadores e tudo quanto possa aumentar a produtividade de um trabalhador. Aqui no Brasil, por exemplo, os ungidos lutam contra o agro-negócio e defendem a volta de uma extemporânea agricultura familiar.

O rancor provocado pelo Walmart nos ungidos só pode estar ligado a um latente inconformismo com o fato de que ele consiga abastecer o mercado de forma eficiente, abundante e econômica, algo que as suas utopias socialistas jamais conseguiram. O êxito do WM está diretamente relacionado aos preços baixos que pratica, os quais beneficiam milhões de consumidores, especialmente de baixa renda. Estivessem os ungidos realmente em sintonia com os seus discursos e preocupados com os mais pobres, deveriam ser os primeiros a desejar-lhe vida longa e próspera. No entanto, o sucesso de empresas como esta representa um perigo real para todos aqueles que ainda insistem em enxergar o capitalismo como algo nocivo.

Nota

[*] Uma gente que “acredita estar de posse de alguma sabedoria especial capaz de fazer do mundo um lugar melhor”. (Thomas Sowell, em The Vision of The Anointed: Self-Congratulation as a Basis for Social policy)

Postado em 14 de Abril, 2014.Autor João Luiz Mauad
* Publicado originalmente em 26/08/2010.


terça-feira, 6 de maio de 2014

EM DEFESA DA MERITOCRACIA (parte 2)


No artigo anterior, discuti como a meritocracia pode complementar ou substituir a democracia de forma eficiente e compatível com a natureza humana, e como o livre mercado é nada mais que uma ordem meritocrática.

No caso de associações coletivas (como as famílias, firmas e governos), seja por causa de falhas de mercado ou outros problemas de escolha pública, ou seja, devido à existência de interações sociais que não são aceitas pelo grupo como reguladas por critérios mercantis (pensem em relações de parentesco ou amizade), observamos que as estruturas organizacionais mais eficazes frequentemente recorrem a fórmulas meritocráticas de distribuição de responsabilidades. Tal eficácia pode ser o resultado de lenta evolução social ou de planejamento consciencioso.

Historicamente, modernizações de instituições governamentais como as promovidas, por exemplo, por Mehmed II (Império Otomano), Pedro o Grande (Império Russo) e Napoleão Bonaparte (estados da Europa Continental) se deveram em grande parte à adoção de regimes meritocráticos (ainda que oligárquicos).

Exemplos como os acima, todavia, são raros. Oligarcas não nutrem simpatia pela meritocracia, pois ela impede que outros critérios, como o patrimonialismo e o nepotismo, sejam utilizados na alocação do poder. A meritocracia tende a ser mais facilmente defensável nas sociedades abertas, pois é compatível com o princípio da igualdade de oportunidades ao mesmo tempo em que promove a alocação do poder de acordo com a capacidade individual de exercê-lo, ou seja, contribui para a descentralização eficiente das tarefas.

Já ouvi muitas vezes a afirmação dentro e fora do Brasil de que o sucesso inegável de nações latinas como a França e a Itália é de difícil explicação, pois não se enquadrariam nos paradigmas anglo-saxões ou germânicos de desenvolvimento. Os casos da Suíça e do Canadá são também relevantes, pois é necessário explicar por que as regiões latinas são às vezes mais ricas e cosmopolitas que parcelas significativas das regiões germânicas ou anglo-saxãs. Uma das melhores explicações é na verdade relativamente simples, apesar de amplamente ignorada: o elevado nível de desenvolvimento dessas regiões latinas do mundo está associado à importante presença e aceitação da meritocracia como forma de organização social. Em contraste, o fracasso relativo das nações ibéricas e de suas colônias é o resultado da ausência do componente meritocrático em suas instituições e nas regras formais e informais de interação humana.

Nas sociedades abertas contemporâneas, as ideologias que objetivam a igualdade de resultados são as maiores inimigas da meritocracia. Nos países da Europa continental, grupos populistas se unem contra a meritocracia sob a bandeira do antielitismo, no caso dos socialistas, e do nacionalismo, no caso dos conservadores. Tenho observado que a defesa intransigente dos valores universais republicanos ou confederativos tem sido a maneira mais eficaz de conter os ataques aos princípios meritocráticos. É preocupante por outro lado a complacência que observo já de longa data nos Estados Unidos (e em menor grau no Canadá e no Reino Unido) em relação à destruição das instituições meritocráticas, que nesses países é promovida pelo movimento politicamente correto, pelas políticas multiculturalistas e pela ação afirmativa (“discriminação positiva”), entre outros fenômenos que inevitavelmente produzirão efeitos negativos nestas sociedades no longo prazo.

É particularmente preocupante o caso do Brasil, que já havia importado o que havia de pior no movimento antimeritocrático europeu, sem nunca ter compreendido e incorporado, por outro lado, o ideal da meritocracia republicana ou confederativa, e agora importa, aparentemente com prazer, o que há de pior no movimento antimeritocrático americano. É fundamental reconhecer, como país de cultura predominantemente latina, que se há uma chance de emular países bem sucedidos e culturalmente mais próximos, esta emulação deve passar pelo fortalecimento das instituições meritocráticas brasileiras, ou seja, exatamente o contrário do que têm feito os governantes no Brasil.

Em suma, por ser a meritocracia um dos principais pilares das economias capitalistas de livre mercado, das democracias constitucionais e das sociedades abertas, creio que cabe aos liberais correrem em sua defesa, antes que seja tarde demais.Postado em 18 de Abril, 2014.

* Publicado originalmente em 12/09/2011.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

EM DEFESA DA MERITOCRACIA (Parte 1)


Churchill uma vez celebremente declarou que “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as outras formas que foram experimentadas de tempos em tempos”. É interessante notar que Churchill foi sábio ao excluir formas de governo ainda não experimentadas de sua afirmação. De fato, se comparada aos regimes políticos que durante a história se ofereceram como alternativas aos regimes democráticos, como a monarquia absolutista, a teocracia, o fascismo e o comunismo (entre outras formas de oligarquias) e a eventual anarquia revolucionária, não creio que existam dúvidas entre pessoas politicamente sensatas de que a democracia tenha sido a forma de governo que mais contribuiu para o avanço da humanidade.

Para evitar, porém, que caiamos na armadilha do fetichismo democrático, aqui definido como a crença ingênua de que o “governo do povo, pelo povo e para o povo” (de acordo com Lincoln) seria condição suficiente para que uma nação encontre seu nirvana político, é necessário fazer duas observações a respeito da declaração de Churchill. Primeiro, que quando ele usou o termo “democracia” ele se referiu evidentemente às formas de governo mistas encontradas nas sociedades abertas ocidentais, que jamais representaram democracias puras. Segundo, que a frase mostra que Churchill acreditava que tal “democracia” é um sistema imperfeito de governo, que pode ser aperfeiçoado, como provado pelas inúmeras causas e reformas políticas, nem sempre liberais ou democráticas, diga-se de passagem, que patrocinou como estadista.

Outra crença ingênua do fetichismo democrático é a de que a cura para os problemas das democracias reais passa por torná-las ainda mais democráticas. É perfeitamente possível, porém, que o excesso de democracia seja o verdadeiro problema. É bem sabido, por exemplo, que o poder democrático deve ser moderado por uma constituição (regras formais) e por regras informais que estão acima da vontade da maioria. Por exemplo, numa democracia pura uma maioria formada por pessoas de olhos escuros pode decidir plebiscitariamente pelo extermínio da minoria de olhos claros. Ainda que absurda, a decisão seria democrática e legítima, pois representaria a vontade da maioria expressa pela via do voto. É para evitar tais absurdos e limitar os poderes democráticos que servem os regimes constitucionais e as regras informais de interação social.

Os limites aos poderes democráticos não estão restritos, porém, à existência de regras universais. É fundamental reconhecer o papel alternativo ou complementar na democracia de um dos principais pilares das sociedades abertas: a meritocracia. Regimes meritocráticos alocam poder decisório de acordo com o mérito, definido como o grau de capacitação no exercício de funções socioeconômicas. A aquisição de competência via educação e treino e sua certificação é um típico arranjo meritocrático, onde a capacidade de decidir é reconhecida publicamente via titulação. Infelizmente, a meritocracia tem sido frequentemente esquecida, pouco compreendida, e até mesmo difamada no debate político contemporâneo.

A meritocracia está presente em diversos aspectos de sistemas políticos e econômicos tidos como bem sucedidos. O mercado livre, por exemplo, é uma das mais importantes instituições meritocráticas descentralizadas existentes, um fato ignorado até mesmo por economistas. Nele, aqueles que ofertam bens ou serviços obtém uma contrapartida à sua cessão equivalente ao valor determinado pelo mercado, e aqueles que os demandam os adquirem desde que dispostos a arcar com a necessária contrapartida. O arranjo é meritocrático, pois o poder decisório decorre da capacidade econômica de quem oferta e de quem demanda.

Na segunda parte deste artigo, explicarei como a meritocracia oferece uma alternativa à alocação via mercados livres nos casos onde estes inexistam ou não sejam considerados aceitáveis como regra de alocação. Falarei também sobre o estado da meritocracia nas sociedades abertas, e sobre a importância da meritocracia para países nos quais ela permanece pouco desenvolvida.

Postado em 11 de Abril, 2014.

* Publicado originalmente em 04/05/2011.


sexta-feira, 2 de maio de 2014

UM CONSELHO DE GOETHE


N.doT.: Goethe é um dos personagens mais célebres e cultos da literatura ocidental. Ortega y Gasset era um grande admirador deste escritor; e seu discípulo, Julián Marías, não podia ser diferente. Transponha, leitor, o que ele diz nesse pequeno artigo para a nossa situação e talvez encontre o caminho para sair de nossa “depressão” cultural. Se quiser ler mais sobre o assunto, recomendo o ensaio ‘Pidiendo un Goethe desde dentro’, de José Ortega y Gasset.

Como quase todos os grandes escritores – aqueles que têm intensa “qualidade de página” – Goethe foi capaz de cunhar expressões refulgentes, que podem viver inclusive separadas de seu contexto. Ortega “se disse” muitas vezes por palavras de Goethe, em uma relação infrequente, que um dia tencionei pôr em claro. Uma das frases de Goethe que gostava de repetir era esta: “O que herdaste de teus pais, conquista-o para possui-lo”.

A riqueza ou pobreza vital dos homens depende em incrível medida de que sigam ou não esse conselho goethino. Poder-se-ia medir o grau de realidade de diversos povos segundo essa norma; para alguns, as diferenças em épocas distintas podem ser enormes. Preocupei-me sempre com o que acontece com o que mais me afeta, ou seja, com os espanhóis. E ao dizer isso não esqueço que sua herança não se reduz à Espanha, nem de longe, mas o que através da Espanha se há de receber, assimilar e acaso possuir.

Pessoalmente, esforcei-me ao longo de toda minha vida para conhecer, repensar, comentar e comunicar a esplêndida herança que nos pertence. Se não me equivoco, neste século, quando paradoxalmente essa possessão poderia ser mais completa e fácil, assiste-se a uma renúncia de pavorosa extensão.

É certo que as heranças se podem aceitar “a benefício de inventário[1]”, porque podem consistir em dívidas ou bens mal adquiridos. Esse inventário é essencial quando se trata de história, e por isso é imperativo o conhecimento lúcido e crítico do que nos é transmitido. Porém isso é o que raramente se faz.

É preciso conhecer e possuir a totalidade da tradição espanhola – é claro – com suas raízes, com tudo o que veio de fora, desde o passado remoto que a constitui. Essa “conquista” que pedia Goethe exige que o “próprio”, o imediatamente recebido ou legado, venha acompanhado do circundante e de suas raízes vivificantes. E isso é o que falta com enorme frequência em quase todo o mundo, e é a causa da profunda incultura – se vale a expressão – que é um dos primeiros motivos da decadência, cada dia mais ameaçadora, ainda que eu continue acreditando que é, contudo, evitável.

No caso da Espanha, a situação é de suma gravidade. A ignorância que poderíamos chamar “normal”, o fato de que se sabem poucas coisas, vem reforçada pela preguiça – pecado capital em que raramente se pensa e que explica muitas coisas – e pelo estranho prestígio que hoje tem a ignorância. Porém tudo isso, apesar de muito, é o de menos.

O mais inquietante é o tenaz esforço que se faz por parte de uns ou de outros grupos, aparentemente díspares e ainda opostos, para eliminar grandes porções dessa herança; e o relevo dessas equipes leva-a à sua volatilização total. Se for feito um exame do estado das mentes, descobrir-se-á a freqüência dessa extrema pobreza.

Tem vigência generalizada, se não universal, a idéia de que nada espanhol vale a pena, e como o conhecimento real do estrangeiro – e nem digamos do antigo – é muito escasso, dá-se por suposto que esse é valioso, porém não faz parte da realidade de um sem-número de pessoas. Principalmente daquelas que, por possuírem “duas onças”, como dizia Cervantes, de alguma disciplina secundária, se instalam no pedantismo e desqualificam pontificalmente tudo o que ignoram.

É urgente, creio que em todo o mundo conhecido, superar essa situação, que não conduz a nada desejável. Tenho a impressão de que entre nós se está criando a consciência de que é assim e de que isso produzirá uma intensificação do escárnio destrutivo por parte dos que pensam que em uma Espanha intelectualmente mais rica teriam pouco futuro.

Porém isso, tão necessário e valioso, não é suficiente. Na frase de Goethe há um verbo essencial: “Conquista-o”. Não se trata de mera recepção passiva de uma herança, nem sequer de sua análise ou inventário. Faz falta a conquista, a reação ativa a esse legado. E isso só se pode fazer a partir de uma atitude “criadora”. Quando algo ingressa efetivamente na vida, produz certos efeitos: começa a conviver com o que havia antes, modifica-o, suscita reações em distintos níveis. A simples leitura de um livro, se contiverrealidade, atua sobre o conjunto de todo o anterior e o transforma.

Há um verbo de importância decisiva: “repensar”. Quando algo ingressa na mente, sua posse requer a construção dos movimentos ou processos mentais do autor. O privilégio da poesia é que a forma métrica ou rítmica do verso obriga a refazer o que foi sua criação original. Daí a confiança de Unamuno em seus versos: “Quando me creiais mais morto,/ re-tremerei em vossas mãos”. Logo se verá que o desdém de há umas quantas décadas pelas formas tradicionais do verso era um erro que se está pagando com o esquecimento de grande parte da poesia recente: de muitos poetas nominalmente famosos ninguém recorda um só verso.

Repensar não é forçosamente inovar. Alguns poderão e deverão fazê-lo. A maioria deverá “tornar a pensar” ativamente, a partir si mesmos, o que receberam; assim o possuirão, fá-lo-ão “seu”. Disse muitas vezes que a leitura de um livro de filosofia tem de ser filosófica, assim o leitor se enriquece com uma filosofia que não inventou nem formulou, mas que lhe pertence plenamente.

O conselho de Goethe, se verdadeiramente o repensarmos, se, a partir da nossa situação e da nossa experiência, o repetirmos, torna-se ainda mais interessante e fecundo. E, ao mesmo tempo, experimenta uma importante modificação. “O que herdaste de teus pais, conquista-o para possui-lo”, disse Goethe. Teríamos de entendê-lo com uma ligeira modificação: “Conquista-o para possuir-te”. Não se trata somente do legado, da herança; trata-sede si mesmo, de sua própria realidade. Ao tomar posse da herança, chega-se a ser o que verdadeiramente se é. “Torna-te o que és”, foi o conselho imperecível de Píndaro, renovado por Fichte, contemporâneo de Goethe: “Werde, der dubist”.

É algo mais que informação, cultura, maturidade. Em última instância, o que está em jogo é a nossa realidade. Falta apenas um detalhe, que me parece decisivo. A distinção entre “o que” se é e “quem” se é. É preciso transladar tudo o que eu disse para além do repertório de recursos, daquilo que encontramos e recebemos, para esse núcleo último que consiste em projeto, vocação, necessidade de ser “alguém” e não “algo”, irredutível a tudo, para além de tudo, com absoluta unicidade, conforme a capacidade de cada um; em resumo, para uma pessoa.

Nota:
[1] Segundo o Diccionario de La Lengua Española da Real Academia Espanhola, é a faculdade que a lei concede ao herdeiro de aceitar a herança com a condição de não estar obrigado a pagar aos credores do falecido mais do que o montante total da mesma.

Fonte: MARÍAS, Julián. Un consejo de Goethe. Disponível em: http://www.conoze.com/doc.php?doc=1869>. Acesso: 27 de março de 2014.
Tradução: Rafael Salvi

quinta-feira, 1 de maio de 2014

PROFETAS RUSSOS E OUTRAS NOTAS

Uns cento e tantos anos atrás, os intelectuais russos mais ligados à Igreja Ortodoxa alardeavam a plenos pulmões que no século XX a Rússia iria encabeçar uma grande revolução espiritual destinada a salvar o mundo da corrupção ocidental católico-protestante-judaico-ateística. O que veio foi a Revolução de 1917 e a maior perseguição anticristã de todos os tempos.


A Revolução, por sua vez, prometia um paraíso de paz, liberdade e prosperidade. O que veio foi a transformação da Rússia e de vários países em torno em matadouros humanos como ninguém tinha visto antes nem poderia jamais ter imaginado.

A pergunta decisiva da qual duguinistas e putinistas se evadem como baratas assustadas é a seguinte: Por duas vezes a Rússia já prometeu salvar o mundo e só conseguiu torná-lo mais parecido com o inferno. Vamos dar-lhe um novo crédito de confiança para que ela o faça uma terceira vez?
*** 
Mais um exemplo de quanto valem as promessas russas.

Uma das primeiras decisões de Leon Trotski como ministro das Relações Exteriores da Rússia Soviética, em 1917, foi divulgar o conteúdo de vários tratados secretos altamente comprometedores assinados entre as potências combatentes e iniciar uma campanha mundial pela abolição de todo segredo diplomático. 

Nesse empenho ele recebeu o apoio entusiástico do então presidente dos EUA, Woodrow Wilson, que consagrou a idéia num dos seus famosos “Quatorze Pontos”.

O que Wilson não podia prever, mas Trotski não podia ignorar, é que a república soviética nascida sob a bandeira da transparência já planejava e iria em breve transformar-se num tipo novo de Estado, até então desconhecido: o Estado integralmente baseado no segredo, o Estado moldado e dirigido pela polícia secreta. A URSS elevou até às alturas de grande arte a técnica de ocultar por completo o funcionamento da sua máquina estatal, ao mesmo tempo que vasculhava e exibia o das nações ocidentais com toda a estridência e o fulgor do escândalo. 
***
Ciência é confrontação de hipóteses à luz dos fatos, mas essa comparação é impossível se você não confronta também fatos com fatos, pesando-os com equanimidade. Essa idéia jamais ocorreu à maioria dos historiadores do "regime militar" e está praticamente proibida na mídia nacional. A norma geral é tomar partido de uma hipótese e somar os fatos que a confirmam, sem tentar jamais impugná-la com outros que a contradizem. A simples tentação de comparar já é repelida in limine como pecado mortal. A norma geral é, quando aparece um fato adverso, inventar logo uma hipótese qualquer que pareça neutralizá-lo, e então apegar-se à hipótese em lugar do fato.

Digo isso porque, tendo absorvido intensamente a narrativa esquerdista e acreditado nela com a fé de um devoto entre os meus dezessete e 35 anos, só muito tarde me ocorreu examinar os fatos adversos, e então descobri que praticamente nenhum livro que os mostrasse tinha sido jamais lido ou consultado pelos historiadores bem-pensantes. A imensidão da literatura internacional sobre a KGB, por exemplo, estava totalmente ausente do mercado brasileiro, e mais ainda das bibliografias universitárias. A história da Guerra Fria, vista desde o Brasil, tinha e tem um só personagem: a CIA. O antagonista, a KGB, é só um mito distante. 

Foi sobretudo essa experiência que, contra a minha vontade, e entre espasmos de revolta contra a maldita realidade reacionária, foi minando a minha confiança na esquerda, até reduzi-la, hoje em dia, a zero. Todo intelectual de esquerda que repita essa experiência deixará de ser de esquerda e perderá seu círculo de amigos, talvez até seu emprego, motivo pelo qual cada um foge dela como um rato foge de um gato.
***
Por duas vezes, na semana passada, o sr. José Serra, em entrevistas à Folha e à TV Bandeirantes, reiterou sua crença, genuína ou fingida, em dois dos seus mais queridos mitos de juventude, que ele comunga aliás com toda a esquerda falante deste país: (1) Em 1964 não havia nenhum perigo de tomada do poder pelos comunistas, era tudo uma fantasia direitista. (2) A CIA estava ativíssima nos bastidores da política nacional, tramando e financiando o golpe de Estado com milhões de dólares.

Não o condeno por isso. Se até os historiadores de profissão consagraram essas balelas como dogmas inquestionáveis, por que haveria eu de exigir maior responsabilidade intelectual de um mero político, membro de uma classe cuja ocupação consiste unicamente, como todo mundo sabe, em dar boa impressão?

Se o sr. Serra fosse algo que se assemelhasse ainda que longinquamente a um historiador ou mesmo a um intelectual de qualquer tipo, eu lhe faria duas perguntas:

1. Como pode ele continuar negando o óbvio depois que documentos oficiais do governo soviético vieram a comprovar uma verdadeira invasão de agentes da KGB em todos os escalões do poder no Brasil da época? (Os dados, os nomes, os planos e as instruções estão no vídeo https://www.youtube.com/watch?v=Dbt1rIg8FbI, e logo vem mais.)

2. Como pode ele ter tanta certeza da presença atuante e decisiva da CIA, se todos os historiadores de esquerda somados, escarafunchando tudo durante cinqüenta anos com uma suspicácia anti-americana mórbida e uma irrefreável sêde de escândalos, não conseguiram até hoje descobrir o nome de nenhum, absolutamente nenhum agente da CIA que estivesse comprovadamente lotado no Brasil na época?

Sendo porém o sr. Serra o que é, não vou lhe perguntar é coisa nenhuma. 
Por: Olavo de Carvalho
Publicado no jornal Diário do Comércio.



quarta-feira, 30 de abril de 2014

PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO IRÁ APROFUNDAR DOUTRINAÇÃO NO ENSINO

No país do analfabetismo funcional, novo plano de educação negligencia o mérito, põe a escola contra a família e, em vez de estimular a leitura, policia as palavras, transformando a língua num instrumento de opressão ideológica.


Durante uma audiência pública da Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal, realizada em 22 de outubro do ano passado, o economista e professor Cláudio de Moura Castro, ao término de sua palestra, resolveu apresentar uma proposta ao Plano Nacional de Educação (PNE 2011-2020). Professor visitante de renomadas universidades estrangeiras, Ph.D. em Economia pela Vanderbilt University, nos Estados Unidos, e conceituado pesquisador da educação, com vários livros publicados, Moura Castro, com um ligeiro sorriso no rosto, anunciou: “Já que todo mundo botou um negócio no plano, um artiguinho, eu também quero propor um artiguinho no plano: um bônus para as caboclinhas de Pernambuco e do Ceará conseguirem se casar com os engenheiros estrangeiros, porque aí eles ficam [no País], e aumenta o capital humano no Brasil, aumenta a nossa oferta de engenheiros”.


Cláudio de Moura Castro, economista e pesquisador, denuncia os delírios
do Plano Nacional de Educação. (Foto: Paulo Antunes)
A declaração provocou um manifesto de repúdio de cerca de 50 entidades de todo o País, desde a União Nacional dos Estudantes até o Instituto Paulo Freire, passando pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação, um movimento que congrega cerca de 200 entidades, entre elas o indefectível Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que, por mais estranho que pareça, é um de seus coordenadores. Para essas entidades, a declaração de Moura Castro é “inadmissivelmente machista e discriminatória” e “manifesta um preconceito regional e racial inaceitável”, inclusive sugerindo a subjugação das mulheres por estrangeiros. Elas exigiram uma retratação do professor e prometeram recorrer até a Dilma Rousseff, como se já vivêssemos numa ditadura totalitária e a presidente tivesse poder para autorizar ou não o livre pensamento.
O humor pode não ser o forte do professor Cláudio de Moura Castro e sua declaração revela certo mau gosto. Como carioca, ele poderia propor o bônus para as calipígias passistas das escolas de samba que se expõem muito mais ao olhar estrangeiro do que as caboclinhas do sertão nordestino, poupando Pernam­buco e Ceará de uma referência gratuita. Mas é um exagero considerar uma mera frase infeliz como discriminatória, preconceituosa e machista, até ameaçando o professor com processo judicial, sobretudo quando se conhece o contexto em que foi formulada. Essas entidades participaram da audiência pública no Senado e sabem que Cláudio de Moura Castro, com seu chiste, queria apenas mostrar o quanto o Plano Nacional de Educação não passa de uma absurda colcha de retalhos, que carreou para dentro de si os particularismos dos mais diversos guetos ideológicos, que nada têm a ver com a sociedade brasileira, muito menos com a sala de aula.

Marxismo avança até nas engenharias

O Brasil herdou o ensino retórico de Portugal, calcado nas humanidades, e não consegue formar profissionais técnicos em número suficiente para atender sua indústria. Uma forma de enfrentar esse problema seria priorizar as ciências naturais e exatas no ensino básico, formando nos jovens um espírito prático, voltado para os fatos e não para a retórica, mas esse não é o caminho adotado pelo ensino atual; muito pelo contrário, a educação brasileira é cada vez mais conceitual, afetada, metalinguística, encarquilhada sobre si mesma, num quase completo desprezo pela realidade em torno, salvo quando essa realidade se presta a devaneios ideológicos, como a “resistência” dos sem-terra, a “tradição” dos quilombolas, a “cultura” das favelas, o “empoderamento” dos drogados, entre outras minorias de estimação nas quais se proteja a utopia de boa parte da elite intelectual.

Hoje, mesmo os cursos técnico-profissionalizantes são profundamente contaminados pela retórica ideológica da esquerda. Em grande parte das faculdades de Engenharia, por exemplo, as disciplinas de ciências humanas são calcadas numa bibliografia marxista ou neomarxista, privando o aluno de uma visão plural, que incorpore, também, pensadores liberais ou conservadores. Isso ocorre, sobretudo, nas faculdades de Enge­nharia Ambiental, em que a bibliografia da parte de humanidades do curso parece destinada a inculcar no aluno que o capitalismo é o inimigo por excelência do meio ambiente, esquecendo-se que os regimes totalitários, como o stalinismo ou a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, não têm motivo algum para respeitar a natureza bruta, uma vez que não são capazes de respeitar nem a natureza humana.

É no contexto de uma educação que tenta transformar em instrumento ideológico até as engenharias que Cláudio de Moura Castro saiu-se com seu gracejo sobre os engenheiros e as caboclinhas. Foi uma forma que encontrou de atacar também o holismo obsessivo do ensino brasileiro, que professa uma suposta visão integral de cada fenômeno social e humano, buscando dominar o homem e a natureza por todos os poros e átomos no afã de construir o outro mundo possível, em que tudo deve ser planejado nos mínimos detalhes, como queria a União Soviética no esplendor de sua utopia totalitária. A pedagogia de Paulo Freire é herdeira dessa utopia holística, que transforma o professor em aprendiz e o aluno em mestre, sob o falso pretexto de que o ensino jamais pode ser transmissão de conteúdo e deve dar à embrionária vivência de um adolescente o mesmo peso que o conhecimento acumulado pela humanidade adquiriu em séculos.

Não poderia haver ironia melhor – até em face da teoria de gêneros que se tenta impor na educação, negando os sexos biológicos – do que associar o aumento do número de engenheiros no País à cadeia hormonal das caboclinhas, estimulada pela intervenção holística do Estado através da concessão de bônus. O Plano Nacional de Educação está cheio desse tipo de associação indevida entre aprendizado e fatores sociais diversos, como se aprender a ler e contar fossem atividades indissociáveis da vida cotidiana e não pudessem ser ensinadas sem que antes se revolucionasse todo o contexto social da criança. É esse tipo de mentalidade holística que faz com que o Plano Nacional de Educação se ocupe de ninharias tão absurdas que, já em sua Meta 2, uma das estratégias preconizadas é a renovação e padronização da frota rural de veículos escolares, como se prescrever o modelo e a cor desses veículos, desde a Amazônia aos Pampas, passando pelo Cerrado, fosse tão importante quando dispor de uma boa metodologia de ensino da tabuada, por exemplo.

Plano é “advocacia em causa própria”

É esse tipo de problema que levou o professor Claudio de Moura Castro, em sua palestra no Senado, a chamar o novo Plano Nacional da Educação 2011-2020 de “equivocado e inócuo”. Acertadamente, ele observa que o PNE é um somatório das idiossincrasias de diversos grupos advogando em causa própria, o que resultou num conjunto de mais de 2 mil propostas para a educação, muitas vezes incompatíveis entre si e quase sempre impossíveis de serem postas em prática. Entre as medidas que considera impossíveis, Moura Castro citou uma das estratégias da Meta 12, que pretende elevar para 90% o porcentual de conclusão dos cursos de graduação do ensino superior, quando se sabe que, mesmo nos Estados Unidos, o índice de evasão nas universidades chega a 50%. Outra meta que considerou irreal é a proposta de erradicação do analfabetismo absoluto até 2020, sobretudo – acrescento eu – porque a própria escola construtivista, regida pela aprovação automática, é uma usina de produção de analfabetos que, com alguma sorte, se tornam analfabetos funcionais quando chegam à universidade.

Parafraseando o delírio de Brás Cubas, do célebre romance de Machado de Assis, pode-se dizer que o Plano Nacional de Educa­ção é “uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da ideologia”. O PNE 2011-2020 já é sintoma de uma das mais graves doenças da era lulo-petista: o conferencismo – versão oficial do assembleísmo que o PT levou para as entranhas do Estado ao chegar ao poder em 2002. Se­gundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), desde que Getú­lio Vargas convocou a primeira conferência nacional no Brasil, sobre saúde, no início da década de 40, já foram realizadas 115 conferências nacionais, das quais 74 (64,3%) ocorreram no governo Lula, envolvendo cerca de 10 milhões de pessoas. E com um diferencial: antes, as conferências quase sempre se restringiam a setores como a saúde; com Lula, passaram a contemplar os mais variados setores, sobretudo as minorias.

O PNE é fruto da I Con­fe­rência Nacional de Educação, realizada em 2010 e precedida por conferências municipais e estaduais, contabilizando, no seu sistema de relatoria, 5.300 registros de inserção com propostas dos segmentos participantes. Já o documento-base da II Conferência Nacional de Educação, a ser realizada em novembro deste ano, contabiliza 11.488 registros de inserção, o que significa aproximadamente 30 mil emendas. Como se vê, não é por falta de palpiteiros que a educação brasileira vai mal. Essa segunda conferência estava programada para fevereiro deste ano e já foi precedida de conferências municipais e estaduais, mobilizando a militância de esquerda travestida de movimento social espontâneo. Mas o MEC acabou adiando sua realização para novembro próximo, fato que gerou indignação entre as entidades envolvidas. Segundo elas, o objetivo do adiamento foi esvaziar o poder de pressão da conferência, que iria coincidir com a votação do Plano Na­cional de Educação no Congresso. As entidades defendem o projeto aprovado na Câmara e acusam o governo de apoiar a revisão feita pelo Senado, que excluiu, por exemplo, a polêmica questão de gênero.

O projeto de lei do Plano Na­cional de Educação foi enviado pelo então presidente Lula ao Congresso em dezembro de 2010, com a proposta de “ampliar progressivamente o investimento pú­blico em educação até atingir, no mínimo, o patamar de 7% do PIB” – mas sem data para se concretizar. Em 2012, o projeto foi aprovado na Câmara dos De­pu­tados, que, dominada pelo petismo mais radical, se encarregou de piorar o que já era ruim, estabelecendo um investimento de 7% do PIB em educação até o quinto ano de vigência do plano e, no mínimo, 10% do PIB ao final de dez anos. Com a ressalva: esse investimento seria feito exclusivamente na educação pública, deixando de fora entidades filantrópicas e assistenciais. O Senado manteve esses índices, mas suprimiu a restrição aprovada na Câmara, permitindo o investimento público em entidades assistenciais, entre as quais, é bom lembrar, encontram-se as Apaes, que prestam um relevante serviço para as crianças com deficiência mental.

Ideólogos criam guerras de raça e gênero

Outro ponto polêmico do plano é a questão de gênero, que já constava do projeto original do Executivo, mas de forma menos radical, falando apenas em “implementar políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito e discriminação à orientação sexual ou à identidade de gênero, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão”. Na Câ­mara, acrescentou-se a esse texto a discriminação racial. Como se não bastasse a incitação à guerra de raças, os deputados tornaram o texto mais prolixo, acrescentando novas diretrizes ao plano, entre elas a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”. Percebem a brutal diferença? Não se trata mais de combater a possível discriminação de um aluno homossexual, mas de promover a “igualdade de gênero”, o que significa igualar ao sexo biológico as mais variadas fantasias de desajustados se­xuais, perseguindo o que os ideólogos chamam pejorativamente de “heteronormatividade”, isto é, o sexo papai-e-mamãe, que deve ser discriminado na escola em nome das relações homem-com-homem, mulher-com-mulher, trans-com-todos etc.

Para se ter uma ideia da importância que a maioria petista da Câmara dá à questão, essa diretriz é a terceira, logo depois da “erradicação do analfabetismo” (primeira) e da “universalização do atendimento escolar” (segunda) e à frente de “melhoria da qualidade da educação” (quarta) e “formação para o trabalho e a cidadania” (quinta). O Senado bem que tentou corrigir essa insanidade e, onde a Câmara falava em preconceito de gênero e raça, os senadores falam em “políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito”. Já no trecho em que a Câmara falava em “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, o Senado, agindo com bom senso, sintetizou: “com ênfase na promoção da cidadania”. Agora que o Plano Nacional de Educação voltou à Câmara, o relator do substitutivo oriundo do Senado, deputado Angelo Va­nho­ni (PT-PR), já recomendou, em seu relatório, que o texto aprovado na Câmara seja restabelecido, com a ênfase na questão de gênero – pa­ra gáudio das minorias de estimação do PT e desespero da bancada evangélica, talvez o único setor da sociedade a perceber, até agora, o grande perigo da ditadura gay.

Instituindo a novilíngua orweliana

O preciosismo ideológico da maioria petista na Câmara é tanto que o projeto do Executivo foi reescrito na novilíngua orwelliana: sempre que apareciam expressões como “os estudantes”, “os alunos”, “os profissionais da educação”, foram acrescentadas as partículas “os/as”, tornando o texto ilegível: “os(as) estudantes”, “os(as) alunos(as)”; “os(as) profissionais de educação”. O Senado, primando pela boa técnica legislativa e pelo bom senso antropológico, suprimiu todos esses penduricalhos feministas do texto, para indignação do deputado Ângelo Vanhoni, que, em seu relatório, já recomendou a recomposição da vulgata feminista da Câmara. Caso o Plano Nacional de Educação seja aprovado, em definitivo, com essa redação sexista (isso mesmo: sexista), a nação brasileira corre o risco de ter sua língua sequestrada pelos ideólogos de esquerda. Não tardam e hão de querer revisar o texto da própria Constituição para adicionar-lhe esses penduricalhos de mau gosto.

Um ideólogo nunca é apenas antiético – é também ilógico. Como dizia Durkheim, um mínimo de lógica exige um mínimo de moral e vice-versa. Não adianta lutar contra a natureza da língua, que, mesmo se realizando nos seus falantes, é muito maior do que eles. De que adianta escrever “alu­no(a)”, achando que assim se evita o suposto machismo da língua portuguesa, sem perceber que o gênero masculino do substantivo (“aluno”) aparece como a palavra principal, da qual o gênero feminino é apenas um apêndice, feito uma Eva linguística retirada da costela masculina do idioma? Qual seria a solução para evitar isso? Escrever “aluna(o)”, “amiga(o), “irmãs(os)? Nem as feministas têm coragem suficiente para fazer essa inversão, tanto que os grupos mais radicais preferem subverter completamente a língua, es­crevendo impronunciáveis “a­lunxs”, “amigxs”, “namoradxs”, muito mais para agradar o sexo cambiante dos gays do que para valorizar, de fato, as mulheres.

Uma opção seria variar o gênero da palavra principal. Mas como decidir os critérios para essa escolha? Contabilizando quantos homens e mulheres há na categoria mencionada e optando pelo gênero que fosse a maioria? Ainda assim, o suposto machismo não iria desaparecer – apenas mudaria de lugar, transferindo-se da língua para a sociologia. As funções e profissões socialmente valorizadas, nas quais os homens são a grande maioria, continuariam sendo escritas primeiramente no masculino: neurocirurgião(ã), engenheiro(a), ministro(a), juiz(a); enquanto para as mulheres sobrariam: “doméstica(o)”, “enfermei­ra(o)”, “educadora(or)”. Isso mostra que a língua é complexa demais para caber na lógica mecanicista da luta de classes ou no ressentimento maniqueísta das minorias de estimação.

Ao querer neutralizar as palavras de suas eventuais cargas negativas, a esquerda revela seu espírito totalitário, pois uma língua que não soubesse exprimir desigualdade, preconceito e ódio não seria uma linguagem humana e mataria seus falantes de angústia. A propósito, os ideólogos que não acreditam nas determinações sociais do sexo biológico e acham que tudo é construção de gênero saberiam me dizer se o masculino de “babá” é “babão”? Como se vê, um Plano Nacional de Educação que, no país do analfabetismo funcional, negligencia o mérito, incita a escola contra a família e, em vez de estimular a leitura, policia as palavras, transformando a língua num instrumento de opressão ideológica, nada tem a ver com ensino – é apenas uma doutrinação totalitária que tenta fazer da escola uma incubadora de subversões.
Publicado no Jornal Opção e no site: http://www.midiasemmascara.org/
Por: José Maria e Silva é sociólogo e jornalista.


CAIXINHA MÁGICA

Fatos. O que eu quero que me deem é isto: fatos. Não me venham com outra coisa; fatos, apenas fatos, são necessários na vida. Você só pode formar a mente de animais racionais através de fatos. Fatos: fora os fatos, nada será de utilidade alguma para ninguém, jamais.


Nos tempos duros da Inglaterra de 1850, esse era o evangelho do professor Thomas Gradgrind, personagem do romance Hard Times e destaque na prodigiosa galeria de tipos humanos criados pelo gênio de Charles Dickens. O professor Gradgrind, punido com um desses nomes que só o humor travesso de Dickens sabia inventar, é um personagem cômico — caricatura de uma Inglaterra que começava a se encantar com as estatísticas e com os esforços para explicar o mundo através de números, sem o contágio da imaginação nem emoções individuais, essas grandes criadoras de desordem na existência humana. Tudo bem. Mas a verdade é que às vezes faz falta “um homem de realidades” como Mr. Gradgrind. Sua presença talvez fosse útil para colocar um mínimo de ordem na babilônia mental que desorganiza o debate público no Brasil de hoje.

Sem os fatos, insistia o professor, não é possível definir as diversas coisas que existem neste mundo — requisito indispensável para separar o verdadeiro do falso. Essa trágica história da compra da refinaria de Pasadena, nos Estados Unidos, pela Petrobras é um exemplo perfeito do descaso pelos fatos. Desde que o escândalo veio a público, assiste-se a um embate em que tudo é dissecado, menos o que, no fim das contas, realmente interessa; é como a leitura de um prefácio maior que o livro. A presidente Dilma Rousseff estava certa ou errada em sua conduta quando presidia o Conselho de Administração da Petrobras, em 2006, ocasião em que a empresa comprou por 360 milhões de dólares a metade de uma refinaria que, no ano anterior, havia sido adquirida por cerca de 40 milhões pelos vendedores? Estava meio certa? Meio errada? Certa e errada ao mesmo tempo? De quanto é a sua culpa nesse desastre — 10%, 25%, 50%? E por aí se vai, com questões e mais questões, numa conversa inútil que talvez só acabe no dia do Juízo Universal.

A conversa é inútil porque não é preciso gastar um único neurônio com toda essa metafísica; basta ficar nos fatos e tudo se resolve em menos de um minuto. Com os fatos se chega à definição mais clara do que realmente aconteceu: aconteceu, em português corrente, a transferência de 360 milhões de dólares pertencentes à população brasileira para o bolso de uns vagos belgas, donos de uma certa Astra Oil, em troca de um ativo que um ano antes fora negociado por uma soma nove vezes menor. Com a definição, tornou-se possível separar num instante o verdadeiro do falso. Os fatos mostram que é verdadeiro afirmar: “A presidente Dilma Rousseff cometeu um desatino que ficará registrado na história nacional da incompetência”. Os mesmos fatos mostram que é falso afirmar qualquer outra coisa. É tudo muito simples. Dilma, após oito anos de um silêncio de cemitério, afirmou ao público brasileiro que não recebeu, na ocasião da compra, dados certos e completos por parte da direção executiva da estatal, o grupo que realmente cuida de suas operações — e que não teria dado sua aprovação ao negócio se soubesse direito as condições reais em que ele fora realizado. Fim da história: a presidente confessou que não sabia o que estava fazendo.

Discutir mais o quê, depois disso? Em sua desafortunada reunião, Dilma e os conselheiros da empresa receberam um cadáver; mas não perceberam isso, e não mandaram o defunto para o necrotério, nem chamaram a polícia. Na verdade, quem sempre soube de tudo, e escondeu, foi a direção executiva da Petrobras, toda ela ligada ao PT e à “base aliada” do então presidente Lula. Obviamente, como costuma acontecer nessas desgraças, se­guiu-se um filme de terror, no qual a cena mais emocionante foi a descoberta de que a Petrobras ainda tinha de pagar, pelo contrato, mais uns 800 milhões de dólares a esses admiráveis homens de negócio da Bélgica. Ao saber do desastre, ainda como ministra, Dilma não quis pagar. Infelizmente, suas ordens não valiam e continuam não valendo nada nos Estados Unidos; o caso foi para a Justiça americana, que deu razão à Astra Oil. Providências? Zero. Quando descobriu as cláusulas lesivas à empresa, em 2008, o que ela fez contra os responsáveis? Nada. E depois, como presidente da República? Nada. O ato final é a presente palhaçada do governo para impedir a investigação da história pelo Congresso.

Fiquemos nos fatos — e nessa caixinha mágica de Brasília, da qual saem tantas lições. No caso, aprendemos que o bom, no negócio da refinação, não é refinar petróleo — é vender refinarias para a Petrobras. Por: J. R. Guzzo Publicado na Veja

segunda-feira, 28 de abril de 2014

A QUEM INTERESSA?

Apesar do marketing ufanista para convencer eleitores incautos o governo Rousseff tem sido um retumbante fracasso. Na economia a herança maldita de Lula da Silva aparece claramente na fragilidade que o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) detectou, apontando o Brasil como a segunda economia emergente mais vulnerável.


Bem antes, porém, a economia já cambaleava e tal situação não se deveu apenas a crise mundial, mas a incompetência do governo petista, sobretudo, às mágicas ineficientes do Mr. M ou Senhor Mantega, referendadas pela governanta. E para resumir a fragilidade econômica do gigante Brasil vale a pena citar O Estado de S. Paulo (13/02/2014):
“O crescimento econômico é baixo e o nível de atividade da indústria preocupante; os investimentos não fluem; a inflação está bem acima da meta há mais de três anos; a dívida bruta está alta demais; o rombo externo (déficit em conta corrente) está crescendo; as regras do jogo são frouxas e sujeitas a interferências; a reação do governo não é criar soluções definitivas.”

Diante deste quadro cresce o pessimismo dos empresários, as queixas e cobranças ligadas ao agronegócio, o afastamento dos investidores externos. Todos imaginam que em breve o Brasil será rebaixado pelas agências de classificação de risco o que vai piorar ainda mais a situação.

Acrescente-se o colapso do setor elétrico que ocasiona sérios transtornos e atinge a produção no campo, o que redundará no aumento dos preços de grãos, verduras, café, laranja. O povo vai pagar mais caro pelos alimentos e também na conta da energia que tem faltado, e que Rousseff havia prometido baixar. Contudo, nem o calor excessivo, raios, ou São Pedro castigariam assim o povo caso a ex-ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, tivesse iniciado as obras necessárias no setor e mantivesse a continuidade ou as finalizasse no seu governo.

Outros fatos desmoralizam o governo petista como a ajuda dada ao companheiro e déspota, Fidel Castro. Não me refiro só ao Porto Mariel, mas a importação de médicos cubanos reeditando o sistema de escravidão em pleno século 21. Como ocorreu na Venezuela os médicos começam a se evadir turvando a vitrine política de Rousseff e do ex-ministro da Saúde, Padilha, denominados na gíria de postes do Lula.

Não me deterei aqui em outros aspectos como promessas não cumpridas, péssima situação da Saúde e da Educação, falta de infraestrutura e muito mais. Prefiro me reportar à violência reinante que culminou com o assassinato do cinegrafista Santiago Andrade. Fosse um policial a vítima nada aconteceria, nem uma lágrima cairia dos olhos da ministra Maria do Rosário. Porém, o ato facinoroso atingiu uma classe forte e unida, a dos jornalistas e rapidamente os culpados foram presos.

O advogado dos black blocs, Jonas Tadeu Nunes, disse que “o garoto”, coisa que Caio Silva não é, não passa de um pobrezinho aliciado para promover baderna e o que mais se precisar por R$ 150,00, sendo que os aliciadores seriam partidos, vereadores, deputados, senadores, autoridades.

O advogado não declinou nomes, o que coube ao Caio. Dubiamente ele disse acreditar que partidos que levam bandeiras nos atos de incitamento as badernas são os mesmo que pagam aos vândalos, mas foi incisivo ao declinar o nome dos partidos, linhas auxiliares do PT: PSOL, PSTU, Frente Independente Popular (FIP), além de Elisa Quadros, codinome Sininho, a que apelou para o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) para que seu assessor e advogado libertasse Fábio Raposo, comparsa de Caio no assassinato do cinegrafista.

Então, a pergunta que não quer calar é: a quem interessa acobertar os aliciadores? Por que o governo, responsável pela segurança da nação e que deve estar minimamente informado sobre o que se passa, ainda não coibiu os chefões da baderna, da destruição, do assassinato?

Quanto aos sem-terra, que nas invasões a propriedades produtivas costumam matar animais, impedir funcionários de ir e vir, destruir máquinas e sedes, são uma espécie de red blocs, tentáculos do PT no campo.

Dia 12 deste, incitados por petistas, um exército vermelho tentou invadir o STJ, gritou palavras de ordem em frente da embaixada norte-americana e derrubou as grades do Palácio do Planalto diante de policiais que, mesmo com 30 dos seus feridos, cumpriram sua responsabilidade de proteção.

Então, me lembrei de Eldorado dos Carajás. Em 17 de abril de 1997, um pequeno grupo de policiais viu mais de mil sem-terra correndo em sua direção com pedras, paus e facões. Os policiais atiraram em legítima defesa e mataram 19 dos sem-terra. Dia 12, ao investir contra pequeno grupo de policiais postados diante de milhares de participantes, parece que os líderes petistas ansiavam por uma vítima dos chamados movimentos sociais, já que outra vítima dera errado.

A quem interessa tudo isso num ambiente de degradação econômica e social? Será que se pensa em estado de sítio, para lembrar outros tempos? É outra pergunta que não quer calar. 
Por: Maria Lucia Victor Barbosa   Do site: http://www.maluvibar.blogspot.com.br/


O COMUNISMO REAL

Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e total da sociedade civil e política, sob o pretexto de um “modo de produção” cujo advento continuará e terá de continuar sendo adiado pelos séculos dos séculos.


Nos dicionários e na cabeça do povinho semi-analfabeto das universidades, a diferença entre capitalismo e comunismo é a de um “modo de produção”, ou, mais especificamente, a da “propriedade dos meios de produção”, privada num caso, pública no outro. Mas isso é a autodefinição que o comunismo dá a si mesmo: é um slogan ideológico, um símbolo aglutinador da militância, não uma definição objetiva. Se até os adversários do comunismo a aceitam, isto só prova que se deixaram dominar mentalmente por aqueles que os odeiam – e esse domínio é precisamente aquilo que, no vocabulário da estratégia comunista, se chama “hegemonia”.

Objetivamente, a estatização completa dos meios de produção nunca existiu nem nunca existirá: ela é uma impossibilidade econômica pura e simples. Ludwig von Mises já demonstrou isso em 1921 e, após umas débeis esperneadas, os comunistas desistiram de tentar contestá-lo: sabiam e sabem que ele tinha razão.

Em todos os regimes comunistas do mundo, uma parcela considerável da economia sempre se conservou nas mãos de investidores privados. De início, clandestinamente, sob as vistas grossas de um governo consciente de que a economia não sobreviveria sem isso. Mais tarde, declarada e oficialmente, sob o nome de “perestroika” ou qualquer outro. Tudo indica que a participação do capital privado na economia chegou mesmo a ser maior em alguns regimes comunistas do que em várias nações tidas como “capitalistas”.

Isso mostra, com a maior clareza possível, que o comunismo não é um modo de produção, não é um sistema de propriedade dos meios de produção. É um movimento político que tem um objetivo totalmente diferente e ao qual o símbolo “propriedade pública dos meios de produção” serve apenas de pretexto hipnótico para controle das massas: é a cenoura que atrai o burro para cá e para lá, sem que ele jamais chegue ou possa chegar ao prometidíssimo e inviabilíssimo “modo de produção comunista”.

No entanto, se deixaram a iniciativa privada à solta, por saber que a economia é por natureza a parte mais incontrolável da vida social, todos os governos comunistas de todos os continentes fizeram o possível e o impossível para controlar o que fosse controlável, o que não dependesse de casualidades imprevisíveis mas do funcionamento de uns poucos canais de ação diretamente acessíveis à intervenção governamental.

Esses canais eram: os partidos e movimentos políticos, a mídia, a educação popular, a religião e as instituições de cultura. Dominando um número limitado de organizações e grupos, o governo comunista podia assim controlar diretamente a política e o comportamento de toda a sociedade civil, sem a menor necessidade de exercer um impossível controle igualmente draconiano sobre a produção, a distribuição e o comércio de bens e serviços.

Essa é a definição real do comunismo: controle efetivo e total da sociedade civil e política, sob o pretexto de um “modo de produção” cujo advento continuará e terá de continuar sendo adiado pelos séculos dos séculos.

A prática real do comunismo traz consigo o total desmentido do princípio básico que lhe dá fundamento teórico: o princípio de que a política, a cultura e a vida social em geral dependem do “modo de produção”. Se dependessem, um governo comunista não poderia sobreviver por muito tempo sem estatizar por completo a propriedade dos meios de produção. Bem ao contrário, o comunismo só tem sobrevivido, e sobrevive ainda, da sua capacidade de adiar indefinidamente o cumprimento dessa promessa absurda. Esta, portanto, não é a sua essência nem a sua definição: é o falso pretexto de que ele se utiliza para controlar ditatorialmente a sociedade.

Trair suas promessas não é, portanto, um “desvio” do programa comunista: é a sua essência, a sua natureza permanente, a condição mesma da sua subsistência.

Compreensivelmente, é esse mesmo caráter dúplice e escorregadio que lhe permite ludibriar não somente a massa de seus adeptos e militantes, mas até seus inimigos declarados: os empresários capitalistas. Tão logo estes se deixam persuadir do preceito marxista de que o modo de produção determina o curso da vida social e política (e é quase impossível que não acabem se convencendo disso, dado que a economia é a sua esfera de ação própria e o foco maior dos seus interesses), a conclusão que tiram daí é que, enquanto estiver garantida uma certa margem de ação para a iniciativa privada, o comunismo continuará sendo uma ameaça vaga, distante e até puramente imaginária. Enquanto isso, vão deixando o governo comunista ir invadindo e dominando áreas cada vez mais amplas da sociedade civil e da política, até chegar-se ao ponto em que a única liberdade que resta – para uns poucos, decerto – é a de ganhar dinheiro. Com a condição de que sejam bons meninos e não usem o dinheiro como meio para conquistar outras liberdades. Ao primeiro sinal de que um empresário, confiado no dinheiro, se atreve a ter suas próprias opiniões, ou a deixar que seus empregados as tenham, o governo trata de fazê-lo lembrar que não passa do beneficiário provisório de uma concessão estatal que pode ser revogada a qualquer momento. O sr. Silvio Santos é o enésimo a receber esse recado.

É assim que um governo comunista vai dominando tudo em torno, sem que ninguém deseje admitir que já está vivendo sob uma ditadura comunista. Por trás, os comunistas mais experientes riem: “Ha! Ha! Esses idiotas pensam que o que queremos é controlar a economia! O que queremos é controlar seus cérebros, seus corações, suas vidas.”

E já controlam.

(Publicado no Diário do Comércio.)
* * *
No mundo das idéias abstratas, o único que em geral os doutrinários conservadores e tradicionalistas conhecem, Putin deve ser louvado por sua resistência às "políticas de gênero". Mas louvor e censura são apenas expressões de um estado de ânimo subjetivo. Não creio ter o direito de manter os leitores atentos aos caprichos da minha alminha. Imagino que eles esperem de mim alguma ciência, alguma análise da realidade objetiva. E, na realidade objetiva, a virada conservadora de Putin, coexistindo com a reabilitação de Stálin e a ocupação da Criméia, é apenas uma peça no complicado esquema estratégico eurasiano. Para Putin como para o seu guru Alexandre Duguin, a moral religiosa tradicional só vale porque é um elemento de propaganda anti-ocidental entre outros. No século XIX a Rússia já prometia salvar o mundo da corrupção ocidental. O eurasianismo bebe nessa fonte como bebe no marxismo, no nazismo, no islamismo etc. etc.
Por: Olavo de Carvalho http://olavodecarvalho.org


QUANDO OS CONSERVADORES ADOTAM O ERRO

Pat Buchanan tornou-se um companheiro de viagem e idiota útil.


Ele não pode – e nem poderia – ver que as mentiras de Moscou evoluíram para engolir tanto a direita quanto a esquerda.

O desertor Konstantin Preobrazhensky avisou que a religião conservadora se tornou fio condutor da subversão russa.

Blaise Pascal escreveu que o homem é repleto de erros. “Esse erro é natural”, explicou Pascal, “infausto e indelével. Nada mostra a ele a verdade; tudo o engana”. Em linhas similares, Frederico o Grande disse: “O homem foi feito para o erro. O erro entra em sua mente naturalmente e nós descobrimos apenas algumas verdades após muito esforço”. Os conservadores são especialmente culpados de errar quando se trata da União das Repúblicas Socialistas Soviética, Rússia e o comunismo. Para entender as complexas realidades subjacentes, deve-se primeiro descobrir o caráter enganoso da própria coisa. Um comunista é um ser humano com o poder de uma pessoa. Como outros humanos políticos, ele não muda suas crenças com a mesma frequência que troca de roupa. Ele não desiste facilmente e se torna de repente um capitalista. Por outro lado, é totalmente normal para um comunista se disfarçar de capitalista. Lênin fez isso na década de 1920 e Stálin fez seus arranjos com o capitalismo na década de 1940. Houve uma “coexistência pacífica” nos anos 1950 sob Krushchev, um détente sob Brezhnev e a perestroika com Gorbachev; E hoje, em Moscou, Vladimir Putin finge ser um cristão. Quem seria ingênuo o bastante para acreditar nesta última ilusão? Dentre todos, essa pessoa é Patrick J. Buchanan, que escreveu um artigo intitulado "Deus agora está do lado da Rússia?"

Nessa coluna, Buchanan cita uma passagem de um discurso do presidente Putin: “Muitos dos países euro-atlânticos afastaram-se das suas raízes, inclusive dos valores cristãos”, disse o ditador russo. “Buscam-se as políticas que colocam no mesmo patamar uma família cheia de crianças com uma dupla homossexual; a fé em um Deus e a crença em Satã. Esse é o caminho da degradação”. Buchanan então pergunta se vimos algum líder ocidental “falar desta forma recentemente (?)”. É evidente que não vimos. Buchanan então conclui que “na guerra cultural pelo futuro da humanidade, Putin está armando firmemente a bandeira russa ao lado do cristianismo tradicional”. Ai de mim! Isso certamente seria verdadeiro, caso as palavras fossem sempre usadas para fazer referência direta à realidade. Entretanto, os ditadores russos mentem de maneira tão promíscua e tão copiosa, que não podemos tomar o que eles dizem pelo valor de face.

Buchanan parece ignorar tudo isso – e parece ignorar também a realidade pós-soviética. Como praticamente todos analistas, ele não leu muito, tampouco pensou em profundidade acerca do assunto Rússia. Como vários outros nomes famosos de décadas anteriores, Buchanan tornou-se um companheiro de viagem e idiota útil. O idiota útil é aquele que inconscientemente promove a propaganda russa sob a ingênua suposição de que Moscou é uma força do bem. Todavia, Moscou não é uma força do bem. A Rússia é um regime baseado em mentiras – e Buchanan caiu nelas. Como isso é possível? Buchanan pertence aos conservadores, um grupo que se fragmentou e degenerou ao longo dos anos. William F. Buckley pode ter sido a figura representante dessa tendência fragmentária e degenerativa. Foi Buckley quem iniciou um racha entre os setores conservadores e conservadores antissemitas, sendo que Buchanan (dentre outros) caiu na conta dos segundos de acordo com Buckley. Talvez Buckley tenha detectado em Buchanan uma ambivalência a respeito do hitlerismo; um tempo depois, inclusive, Buchanan expressou a opinião de que a América provocou o Japão antes de Pearl Harbor e que a guerra contra Hitler foi trágica e fútil. A mesma análise agora é aplicada por Buchanan para se referir à Rússia e Putin. Buchanan acredita que o Ocidente está pressionando a Rússia para começar uma Terceira Guerra Mundial. Ele não vê de forma alguma o lado da Rússia. Ela está defendendo a cristandade, diz ele. Ela está defendendo todos aqueles valores que a América abriu mão, tais como a santidade da família. Buchanan esquece que o próprio Putin se divorciou recentemente e que a Rússia foi o primeiro país na história a permitir o aborto sob todas as circunstâncias, tendo o maior número de abortos por mulher em idade fértil do mundo em 2010. Buchanan esquece também que a Rússia é um grande centro internacional do crime organizado, prostituição e tráfico de drogas. Como noticiou a CNN, a pornografia infantil é legal na Rússia, de modo que o país se tornou um abrigo de pedófilos. Moscou não é nem de longe a Brilhante Cidade de Deus que Buchanan quer fazer parecer. É a metrópole da enganação. Moscou apóia os revolucionários comunistas africanos e latino-americanos até hoje.

Como um esquerdista da Guerra Fria, Buchanan também não tem qualquer conhecimento prévio de estratégia, não faz ideia como opera a KGB, como funcionam as “medidas ativas” ou quão profundamente penetrado está o Ocidente de redes de agentes russos. Ele não sabe que a Guerra Fria nunca acabou e que muitos dos desertores disseram isso publicamente. Ele de alguma forma se esqueceu que a Rússia é o único país que pode destruir os EUA em menos de uma hora. Por que eles mantiveram essa capacidade destrutiva e por que se aliaram com a China vermelha? Ele não pensa nisso. Ao acreditar que era verdadeiro o colapso soviético ele confundiu a apresentação do fato com o próprio fato, a aparência com a essência. Um nome não é uma coisa, é apenas seu rótulo. Remover o rótulo soviético não foi um colapso. Foi uma mudança. Um nome foi colocado em lugar do outro, mas a realidade subjacente continuou a mesma. Como ele pôde deixar passar isso? Eis que a respeito da análise de Buchanan, estamos perante um entendimento surpreendentemente materialista do mundo. Na entrevisão de Buchanan, não há um fantasma na máquina – nenhuma teleologia ou ideologia na Grande Besta. Ele não leva em consideração a alma do negócio, pois ele concentra sua atenção nas aparências externas. Para ele, o discernimento se tornou impossível porque ele não sabe detectar as revelações do espírito. Toda a loucura mecanicista newtoniana está em Buchanan, cuja fé cristã não interpenetrou seu intelecto secular. A realidade interna do comunismo e seu significado religioso sempre estiveram além do seu entendimento. Para ele o que vale é o rótulo – um rótulo sem uma realidade subjacente. Sendo assim, tão logo o rótulo foi removido, ele se tornou incapaz de rastrear as futuras maquinações da coisa em si. Para Buchanan, nunca houve um coração ou alma comunista para se considerar. O comunismo, como sistema de crenças, era um mero epifenômeno. O verdadeiro comunismo era uma aparência externa, insignificante internamente. Não tendo discernimento espiritual ele não pôde vislumbrar o empedernido coração da elite soviética. Ele não pode – e nem poderia – ver que as mentiras de Moscou evoluíram para engolir tanto a direita quanto a esquerda. Ele não pode ver que o mal é sempre parte interna e não uma função das expressões externas. Portanto, Buchanan foi engalfinhado pela retórica de Putin. Ele caiu nas novas mentiras que substituíram as velhas.

Quanto a nossa corrupção interna, alguém se lembra que os movimentos radicais gays e feministas eram liderados por comunistas aliados a Moscou? Mas não, é impossível que alguém tenha pretendido levar a cabo uma revolução sexual. É impossível que algum inimigo estivesse tentando enfraquecer nossa moral para fins estratégicos. Graças a Freud, passamos a acreditar no inconsciente a tal ponto que esquecemos completamente de acreditar nas intenções conscientes – especialmente as intenções russas ou comunistas. Embora muitos desertores tenham tentando nos avisar dos planos de longo prazo de Moscou – e desertores mais recentes continuam a fazê-lo – não estamos prontos para acreditar que temos tal tipo de inimigo; isto é, um inimigo com um plano de longo prazo recheado de intenções mortais. Um plano real de longo alcance significaria a continuidade política. Tal continuidade é inimaginável a pessoas que não leram a história. Novamente eu digo: Buchanan não percebe que há uma alma na máquina russa, e almas possuem intencionalidade. Assim, se estivéssemos prestando atenção aos sinais que as ações representam, veríamos que Lênin continua desenterrado. Veríamos que a Rússia e a China estavam se armando enquanto a América estava engajada numa “guerra contra o terror”. Veríamos que a Rússia ainda apoia regimes comunistas e insurgências na África e América Latina. Uma Rússia puramente nacionalista não teria razão para fazer qualquer uma dessas coisas. Apenas se o núcleo soviético tiver se mantido por baixo de uma “mudança de placas” podemos explicar os comportamentos observados. 

Buchanan esqueceu que a Força Estratégica de Mísseis Soviéticos continua em seu lugar, com a única diferença que agora tem uma placa escrita “Federação Russa” no lugar. A troca de um rótulo pelo outro foi superficial; os comunistas já fizeram esse truque antes com Lênin e sua Nova Política Econômica nos anos 1920. Agora a história se repete. Temos documentos do arquivo soviético (nas mãos de Vladimir Bukovsky) mostrando que o “colapso” do comunismo foi parte de um plano (exatamente como o Major da KGB, Anatoliy Golitsyn, havia avisado). Temos o testemunho de outros ex-oficiais da KGB como Victor Kalashnikov, Konstantin Preobrazhensky e Sergei Tretyakov, que também avisaram acerca da contínua subversão russa. Preobrazhensky não apenas avisou que a religião conservadora se tornou fio condutor da subversão russa, mas ele também insistiu que os “oligarcas” capitalistas russos eram testa de ferro da KGB que foram simplesmente elevados ao status de bilionários pela agência. Além disso, seja qual for a extensão da auto ocultação do falso colapso, sabemos que o núcleo comunista oculto continuou a reforçar seus objetivos. Isso é absolutamente certo, levando-se em conta o que podemos ver hoje. A política russa foi política soviética desde o primeiro dia. Subversão e revolução, preparações para a guerra e propaganda antiamericana continuaram mesmo quando Putin estava apertando a mão de George W. Bush e tentando ser prestativo após o 11 de setembro. Até mesmo George W. Bush não acredita mais na honestidade ou sinceridade de Putin, conforme ficou evidente no livro de memórias de Bush onde ele conta sua própria ingenuidade ao lidar com o ditador russo. Mas como alguém disse uma vez, “um imbecil nasce a cada minuto”. O imbecil de hoje é Patrick Buchanan. Apenas espero que ele acorde para a verdade a tempo de ajudar. 
Por: POR JEFFREY NYQUIST http://jrnyquist.com/
Tradução: Leonildo Trombela Junior


domingo, 27 de abril de 2014

BRAZIL, THE COUNTRY OF THE FUTURE - "BRASIL, O PAÍS DO FUTURO"

A DERROTA DE DILMA E O CORISCO

Alguns números da pesquisa Datafolha acenam com a possibilidade de derrota de Dilma. Nem tanto porque o eleitorado já descobriu a oposição, mas porque ainda não a descobriu. Só 1% dos entrevistados desconhecem Dilma –índice que chega a 25% com Aécio e a 42% com Eduardo Campos. Conhecem a presidente "muito bem" 57% –mas só 17% dizem o mesmo do tucano e 8% do peessebista. Não obstante, a rejeição ao trio é de 33%. É óbvio: muitos não votam em Dilma porque sabem quem é ela. Outros tantos não votam em Aécio e Campos porque não sabem quem são eles. E há 72% que querem um governo diferente deste que aí está. Os números perturbaram mais os "Teóricos da Metafísica do Corisco" do que os petistas.


Quem são esses? É aquela gente que recita a música de Sérgio Ricardo de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de Glauber Rocha: "Mais fortes são os poderes do povo", atribuindo a Lula e a seu PT o monopólio da representação popular. Tais analistas ainda não entenderam –ou a repudiam– a essência do regime democrático, que não se desdobra numa única direção nem num único sentido. Ao contrário: onde quer que a democracia tenha se fortalecido, o poder é pendular, ora pra lá, ora pra cá, em modelos, na prática, bipartidários. A eventual derrota de Dilma não implica uma regressão. O resultado, qualquer que seja ele, se garantidas as regras, fortalece o regime que permite a disputa e que, ora vejam!, forneceu ao PT as condições para derrotar seus adversários em 2002. O aspecto mais virtuoso de uma eleição é a conservação das instituições, não a agenda vitoriosa. Pinta-se um poste para que ele possa ser velho, não para que pareça novo. É Chesterton, não Azevedo.

Mas quê... Bastou o fantasma da derrota assaltar a "Metafísica do Corisco", e começou o coro "volta, Lula!". Rui Falcão fez duas ameaças a Dilma. Indagado sobre a irreversibilidade da sua candidatura, mandou ver: "Irreversível, só a morte". Toc, toc, toc. Se a Soberana quiser, tenho arruda aqui. Deve pôr um galhinho atrás da orelha e rezar três ave-marias. A presidente, que já chamou Nossa Senhora de "deusa" –pondo fim ao monoteísmo cristão–, não vai repudiar a heterodoxia. A gente também é meio macumbeiro, né? Em entrevista à Folha, o mesmo Falcão falcoou: "Mas a candidata continua liderando, continua ganhando no primeiro turno, por que você vai mudar?". Ele estabeleceu as condições para que continue candidata.

Lula, claro!, está mais assanhado do que lambari na sanga. Em entrevista à autointitulada, e sincera, categoria dos "blogueiros sujos", avisou que não será candidato, o que corresponde a dizer que o seria se quisesse. Dilma é o estorvo tolerado pela gerência. Um dos, vá lá, entrevistadores ainda sugeriu que, só para confundir os adversários, ele não fizesse tal anúncio: "Deixa eles pensarem...". Seguidores são sempre mais estúpidos do que seu líder. Os abduzidos, na hipótese de que não sejam sicários, são úteis porque, ao emprestar à causa as suas certezas absolutas, podem fazer o trabalho sujo como se fosse missão. A crença cega é a morte da convicção.

Lula volte a disputar se quiser –o problema seria o que fazer com o cadáver adiado de Dilma, para juntar (Deus me perdoe!) Falcão com Fernando Pessoa. O que acho asquerosa é a ilação de que pleito sem ele não é verdadeiramente democrático. Nos meus estudos sobre o regime militar, esbarrei na pena de então solertes defensores da ditadura –e hoje não menos solertes teóricos do "corisquismo"– a justificar assim o Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, que cassava mandatos e suspendia direitos políticos por até dez anos: era "a revolução que legitimava o Parlamento, e não o Parlamento, a revolução". É plágio do Marx de "O 18 Brumário", mas tudo bem.

Pois é... Cinquenta anos depois, em abril de 2014, chega a ser escandaloso ter de lembrar que é a democracia que legitima Lula, não Lula, a democracia. 
Por: Reinaldo Azevedo Publicado na Folha de SP


sábado, 26 de abril de 2014

OS GIGOLÔS DA MEMÓRIA

Não é possível ignorar o caos instalado no país em março de 1964


A lembrança dos 50 anos da queda de João Goulart ocupou amplo espaço na imprensa. Nenhum outro acontecimento da história do Brasil foi tão debatido meio século depois do ocorrido. Para um otimista, isto poderia representar um bom sinal. Afinal, o nosso país tem uma estranha característica de esquecer o que ocorreu ontem. Porém, a reflexão e o debate sobre 1964 e o regime militar acabaram sendo dominados justamente por aqueles que conduziram o país à crise da república populista e que negaram os valores democráticos nos anos 1960-1970.

A tendência à hagiografia mais uma vez esteve presente. João Goulart foi transformado em um presidente reformista, defensor dos valores democráticos e administrador capaz. Curiosamente, quando esta narrativa é cotejada com relatos de assessores, como o ministro Celso Furtado, ou de um amigo, como o jornalista Samuel Wainer, cai por terra. Furtado, em entrevista à revista “Playboy” (abril, 1999) disse que Jango “era um primitivo, um pobre de caráter”. Wainer relatou que “uma vez por mês, ou a cada dois meses, eu visitava os empreiteiros e recolhia suas doações, juntando montes de cédulas que encaminhava às mãos de João Goulart. (…) Eu poderia ter ficado multimilionário entre 1962 e 1964. Não fiquei.” (“Minha razão de viver”, p. 238).

Não é possível ignorar o caos instalado no país em março de 1964. A quebra da hierarquia militar incentivada pelo presidente da República é sabidamente conhecida. A gravidade da crise econômica e a inépcia governamental em encontrar um caminho que retomasse o crescimento eram mais que evidentes. O desinteresse de Jango de buscar uma solução negociada para o impasse não pode ser contestado: é fato. O apego às vazias palavras de ordem como um meio de ocultar a incompetência político-administrativa era conhecido. Conta o senador Amaral Peixoto, presidente do Partido Social Democrático, que em conversa com Doutel de Andrade, um janguista de carteirinha, este, quando perguntado sobre o projeto de reforma agrária, riu e respondeu: “Mas o senhor acredita na reforma agrária do Jango? No dia em que ele fizer a reforma agrária, o que vai fazer depois?” (“Artes da política”, p.455)

Também causa estranheza a mea culpa de alguns órgãos de imprensa sobre a posição tomada em 1964. A queda de Jango deve ser entendida como mais um momento na história de um país com tradição (infeliz) de intervenções militares para solucionar crises políticas. Nos 40 anos anteriores, o Brasil tinha passado por diversas movimentações e golpes civis-militares. Basta recordar 1922, 1924, Coluna Prestes, 1930, 1932, 1935, 1937, 1938, 1945, 1954, 1955 — tivemos três presidentes da República e dois golpes no mês de novembro – e 1961.

Jogar a cartada militar fazia parte da política. E nunca tinha ocorrido uma intervenção militar de longa duração. Esperava-se um governo de transição que garantisse as eleições de 3 de outubro de 1965 e a posse do eleito em 31 de janeiro de 1966. Esta leitura foi feita por JK — e também por Carlos Lacerda. Os dois principais antagonistas da eleição que não houve imaginavam que Castello Branco cumpriria o compromisso assumido quando de sua posse: terminar o mandato presidencial iniciado a 31 de janeiro de 1961.

JK imaginou que Castello Branco era o marechal Lott e que 1964 era a repetição — um pouco mais agudizada — da crise de 1955. Errou feio. Mas não foi o único. Daí a necessidade de separar 1964 do restante do regime militar. Muitos que foram favoráveis à substituição de Jango logo se afastaram quando ficou patente a violação do acordado com a cúpula militar. Associar o apoio ao que se imaginava como um breve interregno militar com os desmandos do regime que durou duas décadas é pura hipocrisia.

Ainda no terreno das falácias, a rememoração da luta armada como instrumento de combate e vitória contra o regime foi patética. Nada mais falso. Nenhum daqueles grupos — alguns com duas dúzias de militantes — defendeu em momento algum o regime democrático. Todos — sem exceção — eram adeptos da ditadura do proletariado. A única divergência é se o Brasil seguiria o modelo cubano ou chinês. Não há qualquer referência às liberdades democráticas — isto, evidentemente, não justifica o terrorismo de Estado.

A ação destes grupos os aproximaram dos militares. Ambos entendiam a política como guerra — portanto, não era política. O convencimento, o respeito à diversidade, a alternância no governo eram considerados meras bijuterias. O poder era produto do fuzil e não das urnas. O que valia era a ação, a força, a violência, e não o discurso, o debate. Garrastazu Médici era, politicamente falando, irmão xifópago de Carlos Marighella. Os extremos tinham o mesmo desprezo pelo voto popular. Quando ouviam falar em democracia, tinham vontade de sacar os revólveres ou acionar os aparelhos de tortura.

Em mais de um mês não li ou ouvi qualquer pedido de desculpas públicas por parte de ex-militantes da luta armada. Pelo contrário, se autoproclamaram os responsáveis pelo fim do regime militar. Ou seja, foram derrotados e acabaram vencedores. Os policiais da verdade querem a todo custo apagar o papel heroico da resistência democrática. Ignoraram os valorosos parlamentares do MDB. Alguém falou em Lysâneas Maciel? Foi ao menos citado o senador Paulo Brossard? E a Igreja Católica? E os intelectuais, jornalistas e artistas? E o movimento estudantil? E os sindicatos?

Em um país com uma terrível herança autoritária, perdemos mais uma vez a oportunidade de discutir a importância dos valores democráticos.
Por: Marco Antonio Villa Publicado no site: http://www.marcovilla.com.br/