quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

CRIME AMEAÇA A DEMOCRACIA NA AMÉRICA LATINA.


Pesquisa realizada pelo Projeto Opinião Pública da América Latina, da Universidade Vanderbilt, revela que o medo é crescente na região, que tem a maior taxa de homicídios do mundo. No Brasil e na Venezuela, por exemplo, é grande a sensação de que impera a impunidade e a corrupção campeia. Não é à toa que apenas na AL é que ainda se cultivam as ideias socialistas, o antiliberalismo e o anticapitalismo. Do jornal O Globo:

A violência e a criminalidade constituem os principais fatores de instabilidade para as democracias da América Latina, determinados pela desconfiança nas instituições por parte dos cidadãos, os quais, em geral, se inclinam a políticas de pulso firme e baixa qualidade democrática, que podem acabar em violações de direitos fundamentais. Essa é uma das principais conclusões do Barômetro das Américas 2014, uma pesquisa realizada pelo Projeto Opinião Pública da América Latina, da Universidade Vanderbilt.

O relatório preliminar apresentado em Nova York, com base em 50 mil entrevistas feitas em 28 países, aponta que a persistência da criminalidade e da violência em América Latina e Caribe conduzem a “democracias em risco”, nas quais ganham terreno a centralização do poder e, nos casos mais extremos, as soluções populistas, ilegais ou violentas, como os grupos paramilitares, as patrulhas populares ou a condescendência com os linchamentos públicos.

A América Latina e o Caribe experimentaram avanços em suas economias na última década. O número de pessoas que vivem com menos de US$ 2,50 por dia caiu pela metade, e a classe média cresceu. Mas os desequilíbrios continuam sendo enormes, 80 milhões de latino-americanos vivem na pobreza extrema, e mais de 40% acreditam que a economia do seu país piorou no último ano. Certo pessimismo, unido à sensação de insegurança, estende-se pelo continente, o que provocou um retrocesso nos indicadores de legitimidade democrática desde 2012.

Os pesquisadores Mitchell Seligson e Elizabeth Zechmeister, da Universidade Vanderbilt, apresentaram os dados.

— Somos acadêmicos, não políticos. Claro que os governos da América Latina têm ferramentas melhores do que nós para adotar políticas que solucionem esses problemas — comentaram Seligson e Zechmeister na sede da instituição Sociedade das Américas/Conselho das Américas.

Se há uma tendência clara ao longo da última década nas Américas é a de seus cidadãos se preocuparem muito mais com a criminalidade do que há dez anos. Um em cada três entrevistados considera que esse é o problema mais importante que o seu país enfrenta. Entre os pesquisados, 17% já foram vítimas de algum crime, uma cifra que permanece constante desde 2004, e cerca de 40% admitem ter medo de andar por certas áreas de seu próprio bairro. É um problema urbano.

A América Latina e o Caribe têm a maior taxa de homicídios do mundo: 23 assassinatos a cada 100 mil habitantes em 2012, segundo dados das Nações Unidas. É mais do que o dobro da taxa na África Subsaariana (11,2 homicídios a cada 100 mil pessoas), a segunda região nesse ranking. Um em cada três homicídios no mundo ocorre na América, e 30% deles estão relacionados à atuação de quadrilhas. A América Central supera a média, com 34 homicídios a cada 100 mil habitantes. Na América do Sul, a taxa é de 17.

Há uma década, a economia era, com uma ampla vantagem, o que mais preocupava a população (60,3%), com a segurança em segundo lugar (22,5%). Desde 2004, o panorama mudou. A economia é vista agora como a principal preocupação para 35,8%, seguida de perto pela criminalidade (32,5%). O Peru (com 30,6% dos entrevistados), o Equador (27,5%), a Argentina (24,4%) e a Venezuela (24,4%) são os países onde mais pessoas declararam ter sido vítimas de algum crime.

O medo na América Latina está em seu ponto mais alto na última década. Um total de 40% dos entrevistados admite evitar certas áreas de sua vizinhança, outros 35% têm uma sensação de insegurança nos meios de transporte públicos, e 37% nas escolas. Nesses dois últimos quesitos, a Venezuela está à frente dos demais países. A violência também influencia no desejo de emigrar, que aumentou em 2014 em relação aos anos anteriores.

Metade dos entrevistados expressa sua insatisfação com os organismos de segurança. Bolívia, Venezuela, Peru, Haiti e México são os países onde, nessa ordem, as forças de segurança têm a pior imagem. Um em cada três entrevistados relata que sua polícia demora pelo menos uma hora para atender a uma denúncia de roubo ou, simplesmente, não aparece.

O ano de 2014 marca o ponto em que a confiança na justiça cai a seu nível mais baixo na última década. A sensação de impunidade cresce na região. Venezuela, Brasil, Chile, Bolívia, Peru e México são os países nos quais os cidadãos mais registram essa percepção.

Consequentemente, 55% dos entrevistados são partidários de políticas duras para determinados crimes, contra os 29% que preferem políticas preventivas. São comuns os relatos sobre linchamentos em alguns países ou sobre formas de autodefesa, como ocorre no México. Em relação à pesquisa de 2012, a tendência a recorrer a soluções desse tipo passou de 28,9 para 32, em uma escala de 100.

A percepção em relação à corrupção não melhorou. Um em cada cinco entrevistados pagou algum tipo de propina nos últimos 12 meses. Cerca de 80% deles consideram que a corrupção é comum ou muito comum em seus governos.

O Barômetro mostra um apoio indiscutível ao sistema democrático como forma de governo, mas esse sentimento também sofreu uma queda a seus níveis mais baixos em dez anos. Na sondagem de 2012, esse critério atingia 71 pontos sobre 100, neste ano caiu para 69. As Forças Armadas e a Igreja Católica são as instituições com mais apoio na região. Os que menos recebem apoio são os parlamentos e, principalmente, os partidos políticos. Publicado no site:http://otambosi.blogspot.com.br/

domingo, 7 de dezembro de 2014

LULA, DILMA E A PORTA DO INFERNO

No final da campanha para as eleições presidenciais de 2002, reza a lenda, o futuro ministro Antonio Palocci pegou o candidato pelo braço e mostrou a ele as portas do inferno, ou melhor, os preços negociados nos mercados futuros da BM&F.


Segundo ele, com o dólar acima de R$ 4,00, as projeções de inflação superando 15% ao ano e as cotações das principais ações brasileiras no chão, o futuro governo petista morreria antes de começar a governar.

Lula entendeu o recado dos pregões da BM&F –a maior e mais líquida Bolsa de Futuros do mundo emergente–, mudou seu discurso e publicou a famosa Carta ao Povo Brasileiro.

Algo parecido deve ter ocorrido agora com a presidenta Dilma. Sem a confiança dos principais agentes econômicos, e com as nuvens no horizonte político carregadas pelo escândalo da Petrobras, a repetição do fracasso do primeiro mandato na economia seria mortal para seu governo. Talvez tenha sido a porta do inferno político –mais do que a BM&F– que tenha obrigado Dilma Rousseff a romper com suas convicções econômicas.

Mas é importante qualificar as mudanças de agora para que não se criem expectativas falsas em relação a esses dois episódios marcantes da história recente da política no Brasil. Quando Lula mudou seu discurso e entregou a Meirelles e Palocci o comando da economia, o crescimento chinês começava a chegar à economia brasileira via o canal dos preços de nossos principais produtos de exportação.

Além dessa força expansionista externa, a economia brasileira tinha vários segmentos importantes com elevada capacidade ociosa, o que permitia um ganho rápido de produtividade caso houvesse uma expansão vigorosa da demanda.

O desemprego de mais de 12% da população economicamente ativa –PEA– garantia um mercado de trabalho favorável às empresas, com muito pouca pressão por maiores salários. O volume de crédito na economia era muito baixo, principalmente no segmento de financiamento aos bens de consumo.

Nossa infraestrutura econômica –portos e estradas, principalmente– não tinha sinais de congestionamento. E, finalmente, a valorização do real ante ao dólar, em razão do rápido ajuste de expectativas, provocou um choque de deflação via os produtos precificados em dólares, fazendo com que a inflação convergisse, sem grandes esforços do Banco Central, na direção do chamado centro da meta.

A conjuntura econômica no segundo mandato da presidenta Dilma será completamente diferente da encontrada por Lula em 2003. O mercado de trabalho está ainda muito pressionado, com a taxa de desemprego na mínima histórica, e a China de hoje nada tem de semelhante com a existente nos anos Lula.

O consumidor brasileiro está endividado, com pouco espaço para alavancar sua renda pessoal.

Finalmente, a inflação estará acima dos 7% ainda na primeira metade de 2015 depois dos ajustes que serão feitos em preços controlados importantes.

Os primeiros dois anos do segundo mandato de Dilma serão de ajustes importantes –recessivos, como gostam de carimbar os economistas do PT jogados agora na oposição ao governo– e que na melhor das hipóteses manterão a economia crescendo algo perto de 1% ao ano.

A única força de expansão que estará atuando será um ajuste positivo na expectativa de consumidores e empresas, pois estavam todos esperando uma catástrofe que agora não virá. Mas esse ajuste não virá de imediato, pois muitos vão trabalhar com a hipótese de vida curta para o ministro das mãos de tesouras.

Por essas razões a mudança inesperada da política econômica –de forma diversa da ocorrida com Lula em 2003– encontrará desafios mais difíceis e exigirá da equipe econômica muito bom senso para não exagerar na dose de ortodoxia. De qualquer forma, temos que receber as decisões tomadas pela presidenta com palmas e esperar que ela tenha sucesso na sua empreitada.

Talvez fosse mais fácil, para um analista como eu, jogar no time de que tudo vai dar errado e continuar a apostar no caos. Mas não me parece a atitude correta neste momento, até porque a probabilidade de sucesso é bem maior do que o mercado financeiro vem precificando. 
Por: Luiz Carlos Mendonça de Barros Publicado na Folha de SP

DESEJO DE MATAR

Amigos e leitores pedem-me uma opinião sobre o aborto. Mas, inclinado por natureza à economia de esforço, meu cérebro se recusa a criar uma opinião sobre o quer que seja, exceto quando encontra um bom motivo para fazê-lo. Diante de um problema qualquer, sua reação instintiva é apegar-se ferozmente ao direito natural de não pensar no caso. Mas, ao argumentar em favor desse direito, ele acaba tendo de se perguntar por que afinal existe o maldito problema. Assim, o que era uma tentativa de não pensar acaba por se tornar uma investigação de fundamentos, isto é, o empreendimento mais filosófico que existe. Os futuros autores de biografias depreciativas dirão, com razão, que me tornei filósofo por mera preguiça de pensar. Mas, como a preguiça gradua os assuntos pela escala de atenção prioritária mínima, acabei por desenvolver um agudo sentimento da diferença entre os problemas colocados pela fatalidade das coisas e os problemas que só existem porque determinadas pessoas querem que existam.


Ora, o problema do aborto pertence, com toda a evidência, a esta última espécie. O questionamento do aborto existe porque a prática do aborto existe, e não ao contrário. Que alguém decida em favor do aborto é o pressuposto da existência do debate sobre o aborto. Mas o que é pressuposto de um debate não pode, ao mesmo tempo, ser a sua conclusão lógica. A opção pelo aborto, sendo prévia a toda discussão, é inacessível a argumentos. O abortista é abortista por decisão livre, que prescinde de razões. Essa liberdade afirma-se diretamente pelo ato que a realiza e, multiplicado por milhões, se torna liberdade genericamente reconhecida e consolidada num "direito". Daí que o discurso em favor do aborto evite a problemática moral e se apegue ao terreno jurídico e político: ele não quer tanto afirmar um valor, mas estatuir um direito (que pode, em tese, coexistir com a condenação moral do ato).

Quanto ao conteúdo do debate, os adversários do aborto alegam que o feto é um ser humano, que matá-lo é crime de homicídio. Os partidários alegam que o feto é apenas um pedaço de carne, uma parte do corpo da mãe, que deve ter o direito de extirpá-lo à vontade. No presente score da disputa, nenhum dos lados conseguiu ainda persuadir o outro. Nem é razoável esperar que o consiga, pois, não havendo na presente civilização o menor consenso quanto ao que é ou não é a natureza humana, não existem premissas comuns que possam fundamentar um desempate.

Mas o empate mesmo acaba por transfigurar toda a discussão: diante dele, passamos de uma disputa ético-metafísica, insolúvel nas presentes condições da cultura ocidental, a uma simples equação matemática cuja resolução deve, em princípio, ser idêntica e igualmente probante para todos os seres capazes de compreendê-la. Essa equação formula-se assim: se há 50% de probabilidades de que o feto seja humano e 50% de probabilidades de que não o seja, apostar nesta última hipótese é, literalmente, optar por um ato que tem 50% de probabilidades de ser um homicídio.

Com isso, a questão toda se esclarece mais do que poderia exigi-lo o mais refratário dos cérebros. Não havendo certeza absoluta da inumanidade do feto, extirpá-lo pressupõe uma decisão moral (ou imoral) tomada no escuro. Podemos preservar a vida dessa criatura e descobrir mais tarde que empenhamos em vão nossos altos sentimentos éticos em defesa do que não passava, no fim das contas, de mera coisa. Mas podemos também decidir extirpar a coisa, correndo o risco de descobrir, tarde demais, que era um ser humano. Entre a precaução e a aposta temerária, cabe escolher? Qual de nós, armado de um revólver, se acreditaria moralmente autorizado a dispará-lo, se soubesse que tem 50% de chances de acertar numa criatura inocente? Dito de outro modo: apostar na inumanidade do feto é jogar na cara-ou-coroa a sobrevivência ou morte de um possível ser humano.

Chegados a esse ponto do raciocínio, todos os argumentos pró-aborto tornaram-se argumentos contra. Pois aí saímos do terreno do indecidível e deparamos com um consenso mundial firmemente estabelecido: nenhuma vantagem defensável ou indefensável, nenhum benefício real ou hipotético para terceiros pode justificar que a vida de um ser humano seja arriscada numa aposta.

Mas, como vimos, a opção pró-aborto é prévia a toda discussão, sendo este o motivo pelo qual o abortista ressente e denuncia como "violência repressiva" toda argumentação contrária. A decisão pró-aborto, sendo a pré-condição da existência do debate, não poderia buscar no debate senão a legitimação ex post facto de algo que já estava decidido irreversivelmente com debate ou sem debate. O abortista não poderia ceder nem mesmo ante provas cabais da humanidade do feto, quanto mais ante meras avaliações de um risco moral. Ele simplesmente deseja correr o risco, mesmo com chances de zero por cento. Ele quer porque quer. Para ele, a morte dos fetos indesejados é uma questão de honra: trata-se de demonstrar, mediante atos e não mediante argumentos, uma liberdade autofundante que prescinde de razões, um orgulho nietzschiano para o qual a menor objeção é constrangimento intolerável.

Creio descobrir, aí, a razão pela qual meu cérebro se recusava obstinadamente a pensar no assunto. Ele pressentia a inocuidade de todo argumento ante a afirmação brutal e irracional da pura vontade de matar. É claro que, em muitos abortistas, esta vontade permanece subconsciente, encoberta por um véu de racionalizações humanitárias, que o apoio da mídia fortalece e a vociferação dos militantes corrobora. Porém é claro também que não adianta nada argumentar com pessoas capazes de mentir tão tenazmente para si próprias.
Por: Olavo de carvalho Publicado no Jornal da Tarde, 22 de janeiro de 1998

sábado, 6 de dezembro de 2014

ROMBO HISTÓRICO

 – Um “conservador”, que está sob porrete das esquerdas, terá de consertar as burradas do petismo


Dia desses, um dos colunistas de nariz marrom da imprensa brasileira, acostumado a escrever de joelhos, estranhava que Dilma Rousseff tivesse escolhido Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda. Afinal, argumentava ele, o homem é um “conservador”, um crítico da política econômica em curso. E, segundo o “desanalista”, tudo vai tão bem com o país que o desemprego continua baixo — para ele, evidência de que estamos no caminho certo.

Pois bem. As transações correntes em outubro tiveram um déficit de US$ 8,13 bilhões — oficialmente, é o maior desde 1980 porque tal medição, com os critérios atuais, começou a ser feita nesse ano, mas é o maior desde 1947, quando se começou a fazer tal contabilidade. O ministro Guido Mantega pode se orgulhar: sua gestão produziu o maior buraco nas transações correntes em 67 anos.

Querem mais? Para novembro, o BC projeta déficit de US$ 8 bilhões nas transações correntes. Se a projeção se confirmar, o resultado acumulado do ano passará de US$ 70,7 bilhões até outubro para US$ 78,7 bilhões. No acumulado em 12 meses, o déficit externo equivale a 3,73% do PIB (Produto Interno Bruto), o maior desde fevereiro de 2002 (3,94% do PIB).

Os números que vão acima são próprios de um modelo que deu errado, a despeito do que diga o oficialismo. É o fim do mundo? Não é? Caminhamos pra lá? Não tão depressa. Mas estaremos condenados à mediocridade se não houver uma alteração substancial da equação. Não sei se Joaquim Levy, futuro ministro da Fazenda, conseguirá operar a mudança. Uma coisa é certa: ela não se dará se continuarmos na metafísica de agora.

Os Investimentos Estrangeiros Diretos (IED) somaram US$ 4,979 bilhões em outubro, resultado que ficou abaixo dos US$ 5,439 bilhões registrados no mesmo período do ano passado. No acumulado do ano até o mês passado, o IED soma US$ 51,194 bilhões, o equivalente a 2,71% do Produto Interno Bruto (PIB). É um alento em meio às más notícias.

Faltando apenas dois meses para o fim do ano, o número acumulado de 2014 ainda precisa somar mais US$ 11,8 bilhões para alcançar a previsão do BC, de terminar com US$ 63 bilhões. Nos últimos 12 meses até outubro, o IED está em US$ 66,003 bilhões, o que corresponde a 2,91% do PIB. O número não chega a financiar o rombo, mas compensa em parte o desastre. Mas resta evidente que algo de profundamente errado se passa com a economia.

Acabou, definitivamente, aquele ciclo da economia mundial em que, com o supercrescimento da China e a supervalorização das commodities brasileiras, saldos positivos na balança comercial compensavam desequilíbrios. O déficit na balança no mês passado ficou em US$ 1,17 bilhão de dólares, o pior desde outubro de 1998.

Os petistas e as esquerdas deveriam estar felizes. O abacaxi na economia, vejam vocês, terá de ser descascado não por um esquerdista ou por um populista, mas por um economista que eles consideram “conservador”. Pois é… Um conservador terá de consertar as burradas do petismo. Tomara que consiga.
Por Reinaldo Azevedo  Publicado no site: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

A VINGANÇA DE PAULO FRANCIS


Em seu artigo, “Justiça a Paulo Francis, Ainda que Tardia”, de 23/09/2014, a professora de Direito Internacional da Universidade de São Paulo, Maristela Basso, recorda que anos atrás, no programa Manhattan Connection, Paulo Francis “sugeriu a privatização da Petrobras e chamou atenção para o fato de que seus diretores desviavam dinheiro para contas na Suíça, e era preciso investigar”. Mas, o jornalista não tinha as provas necessárias, sendo então denunciado pelo presidente da Petrobras, Joel Rennó e mais sete diretores que o processaram através do Poder Judiciário dos Estados Unidos. “A indenização aos diretores, mais custas e honorários foi estipulada em 100 milhões de dólares”, quantia impossível de ser paga por Paulo Francis. Como consequência ocorreu sua morte, em fevereiro de 1997, em Nova Iorque, por um enfarte fulminante.

O que diria hoje o brilhante Francis diante do assombroso, estrondoso, o mais gigantesco escândalo entre os muitos ocorridos no governo petista, chamado de petrolão e que agora começa vir à tona graças ao eficiente trabalho do juiz Sérgio Moro, da Polícia Federal e do Ministério Público?

Durante anos funcionários de carreira foram alçados por Lula a diretores da Petrobras. Eles funcionavam como receptadores de empreiteiras, que pagavam propinas para obter contratos de grandes obras da Petrobras, sendo que 1% a 3% eram repassados a partidos como o PT, PMDB e PP, segundo se sabe até agora. Tais repasses faziam com que as empreiteiras superfaturassem o custo das obras.

Ao mesmo tempo, um intricado sistema de lavagem de dinheiro era organizado pelo doleiro Alberto Youssef, que se encontra preso e optou pela delação premiada. Também o ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto da Costa, que se encontra em prisão domiciliar, seguiu o caminho da delação expondo juntamente com Youssef o assalto á Petrobras, do qual ambos participaram assiduamente.

Mais prisões aconteceram como a do ex-diretor da Petrobras, Renato Duque, indicado pelo mensaleiro José Dirceu, de quatro presidentes de grandes empreiteiras e de 15 executivos, na 7ª etapa da Operação Lava Jato denominada Juízo Final. O chamado “operador” do PMDB, Fernando Antonio Falcão Soares, cognome Fernando Baiano, entregou-se a polícia depois de permanecer foragido e deve ter grandes falcatruas a contar se optar pela delação premiada. Muitos outros ainda devem comparecer á Justiça, pois há uma extensa relação de políticos cujos nomes permanecem em sigilo.

A perda da Petrobras com os desvios pode chegar a 21 bilhões, segundo o banco americano Morgan Stanley. Tudo se passou durante os mandatos de Lula da Silva, sendo que Dilma Rousseff deles participou como ministra de Minas e Energia, depois ministra da Casa Civil, tendo sido também presidente do Conselho da Petrobras. Rousseff foi eleita presidente da República e a roubalheira se estendeu pelos quatro anos de seu primeiro mandato.

Por isso, quando petistas com aquele cacoete de atribuir sempre aos outros seus erros, falam que a culpa de tudo é dos governos anteriores, estão certos. Anteriormente foram oito anos de Lula da Silva e quatro de Dilma Rousseff. Mesmo assim estes não viram, não ouviram, não sabem de nada.

Some-se aos descalabros da Petrobras a condição econômica do País. Como bem resumiu Celso Ming, “a situação atual é de paradeira, alta inflação, contas públicas degradadas e deterioração das contas externas” (O Estado de S. Paulo, 19/11/2014).

Diante de tantas dificuldades o PT vai chocando seus ovos de serpente, dos quais na hora certa nascerão venenosíssimas urutus. Entre eles podem ser citados:

1 – O Decreto 8.243 que constitui os Conselhos populares, espécie de sovietes compostos pelos chamados movimentos populares ligados e sustentados pelo PT. Caberá a eles se sobrepor ao Legislativo e ao Judiciário. O Decreto já foi rejeitado pela Câmara, mas deverá voltar ao Congresso.

2 – O recente manifesto do PT que aponta para o objetivo de alcançar a hegemonia e se refere, entre outras coisas de cunho autoritário, à censura dos meios de comunicação.

3 – A visita não oficial ao Brasil de Elias Jaua, ministro-chefe das milícias bolivarianas da Venezuela. Posteriormente ele aparece no vídeo de um canal de TV estatal venezuelana assinando um convênio com o MST na cidade de Guararema, a 80 quilômetros de São Paulo. Esses convênios na verdade são cursos de treinamento para a revolução socialista.

4 – A insidiosa campanha contra a polícia acusada de matar pessoas. Não se menciona o número de assassinatos de pessoas por bandidos, nem quantos policiais morreram heroicamente para proteger a população. Só falta pedir que a polícia ande desarmada para enfrentar facínoras fortemente armados.

Diante de tanta degradação e de um futuro nebuloso, o que diria o brilhante polemista, o corajoso jornalista Paulo Francis? Pena que ele não pode mais se expressar, mas, pelo menos está vingado. 
Por: Maria Lucia Victor Barbosa é sócióloga www.maluvibar.blogspot.com.br

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

MULHERES QUE APANHAM

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim falava Nelson Rodrigues. E assim falo eu, em jeito de provocação, ao meu auditório feminino lá em casa.


Sem sucesso: rodeado por mulheres mais inteligentes do que eu, elas tratam de responder às provocações com outras provocações de igual calibre, irreproduzíveis num jornal de família.

Eu, sovado e acabrunhado, encerro a discussão, fugindo para a primeira premissa: "Estão vendo? Neuróticas, todas vocês".

Brinco, claro. Mas depois, com o café da manhã, vou lendo notícias que ressuscitam o velho Nelson e conferem "gravitas" aos seus aforismos.

Uma delas vem no "Sunday Times" e parece inventada por uma jornalista (neurótica): o americano Julien Blanc vem a caminho do Reino Unido. Pior: Blanc pode já estar em Londres, pronto para organizar os seus "workshops". Quem é Julien Blanc?

A julgar pelo tom da notícia, parece que o rapaz é um descendente de Jack, o Estripador, pronto para arruinar mulheres de boa ou má fama.

Mas depois lemos que o talento dele é ensinar os homens, em cursos de três dias pelo preço de R$ 5.200, a seduzir, usar e destruir emocionalmente uma donzela. "O meu brinquedo sexual favorito", diz o pensador Blanc, "é a minha namorada." O sucesso tem sido planetário.

Se a coisa ficasse pelos jornais, nada a declarar: a crise da imprensa também é uma crise de inteligência. O pior é que a sombra do temível Blanc já chegou aos governos. A Austrália o expulsou do território como quem expulsa o conde Drácula. O Brasil, que em princípio seria visitado pelos seus caninos em janeiro, já avisou que não há visto para ninguém.

Igual posição é assumida pela ministra do Interior britânica, Theresa May, partindo do pressuposto de que o monstro ainda não chegou às ilhas britânicas. Blanc não terá autorização para entrar porque ele é um "perigo público" e os seus cursos podem "incitar ao abuso e à violência".

Uma pessoa lê essas coisas e pergunta, como um velho dinossauro fora do seu parque jurássico, que mundo é esse em que as mulheres precisam da proteção dos governos para não caírem na cantiga do bandido.

Serei o único a pensar que o comportamento da Austrália, do Brasil e do Reino Unido trata as mulheres como crianças –e um idiota americano qualquer, como um voraz mentor de pedófilos?

Os conselhos de Julien Blanc –como manipular uma mulher; como humilhá-la; como chantageá-la– são de um primitivismo infantil, é certo.

Mas transformá-lo em "perigo público" e impedi-lo de viajar, para além de duvidoso do ponto de vista legal, é retirar às mulheres, sobretudo a mulheres adultas, qualquer estatuto de autonomia ou racionalidade.

Claro que existem sempre vozes de compaixão para quem nem todas as mulheres possuem esse grau de autonomia ou racionalidade (belo paternalismo!). Mulheres sem instrução; mulheres sem independência econômica; mulheres com baixa autoestima (grotesca palavra) –todas elas são presas fáceis para predadores difíceis.

O problema é que a realidade, às vezes, desmente tais piedades. Por ironia cósmica, o mesmo "Sunday Times", na sua revista dominical, publica extratos da autobiografia da atriz Anjelica Huston, mulher de Jack Nicholson durante duas décadas.

E, durante essas duas décadas, Huston foi fazendo uma longa lista de todas as mulheres que Jack Nicholson foi devorando nas horas livres e que provocaram na pobre Anjelica angústias sem nome.

O próprio Jack, aliás, raramente negava esses casos. Quando muito, dizia apenas que era "sexo por compaixão", sem importância ou continuidade.

Confrontado com tal benemérito, um dinossauro perguntará o que fez Anjelica Huston perante tanto abuso e humilhação durante 20 longos anos. No fundo, qual foi a atitude de uma mulher econômica e socialmente independente ante as terríveis infidelidades do seu amado vilão.

A ministra Theresa May, ou o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, talvez dissessem que o amor tem razões que a razão desconhece –e que é exatamente por isso que as mulheres devem ser protegidas em "habitat" apropriado. Como certos pandas no jardim zoológico.

Nelson Rodrigues discordaria. Para ele, Anjelica Huston era perfeitamente saudável, não neurótica. Por isso gostava de apanhar. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

VIDA BREVE

"Vida intensa e breve, pensou a lebre, correndo sobre as ervas do mundo." Roubo essas linhas do poeta português José Agostinho Baptista porque elas são a trilha sonora dos meus dias. Ou, pelo menos, desses últimos anos.


Caminho para os 40. E, com uma nitidez arrepiante, sinto que o tempo acelera como nunca.

Explico: aos dez, aos 20, o tempo passava com um ritmo mais lento. O ano acadêmico era longo. As férias de verão, também. E os dias, cada dia, tinham minutos que duravam horas e horas que duravam semanas.

Subitamente, os dias encolheram. E, com os dias, as horas e as semanas. Como explicar o fenômeno?

Dois anos atrás, ao passar pela vitrine de um sebo em Nova York, deparei-me com um livro que prometia explicar as minhas inquietações.

Mas o tempo, sempre o tempo, impediu-me de anotar o título e o autor: atrasado para um jantar e na companhia de terceiros, continuei a caminhar –e a vitrine, afastando-se de mim, como se eu fosse um emigrante a bordo de um navio, vislumbrando a terra materna cada vez mais longe.

Para piorar as coisas, a noite ia alta, o sebo estava fechado –e eu regressava de madrugada para Lisboa. Nenhuma possibilidade de lá voltar. E a certeza de que o tempo continuaria a ceifar misteriosamente o meu tempo –e a privar-me da deliciosa lentidão do passado.

Contei todos esses episódios à alma caridosa que partilha os meus dias. E ela, com um talento de Sherlock Holmes, localizou o livro e o ofereceu a mim.

Escrito pelo psicólogo holandês Douwe Draaisma, o título é de uma literalidade que envergonha: "Why Life Speeds Up As You Get Older" ("por que motivo a vida acelera à medida que envelhecemos", Cambridge University Press, 277 págs.). Nem eu diria melhor.

Em rigor, a obra não lida apenas com a aceleração do tempo quando a idade avança. Trata-se de uma coleção de ensaios sobre o papel da memória (e do esquecimento) na forma como percebemos o passado e o futuro.

Mas o ensaio que dá título ao livro ilumina algumas das minhas perguntas porque Draaisma vai revisitando as teorias que a psicologia e as neurociências foram avançando para o fato. É impossível resumi-las todas nesta coluna. Mas duas mereceram a minha especial atenção.

A primeira foi exposta por Jean-Marie Guyau no século 19 e, no essencial, repetida ou intuída por literatos diversos –de Thomas Mann a Albert Camus, sem esquecer esse mestre do metrônomo que dá pelo nome de Marcel Proust.

O tempo acelera porque os nossos dias, tomados pelas rotinas próprias da vida adulta, surgem despojados da variedade dos verdes anos. Aos dez, aos 20, o nosso roteiro biográfico mudava. Constantemente. Imprevisivelmente.

As férias de verão eram longas porque eram cheias. O ano acadêmico era longo porque as aulas, os estudos, mas também o reencontro com os amigos e os estragos na companhia deles, faziam de cada dia uma refeição completa.

Aos 40, aos 50, a refeição torna-se repetitiva –casa, trabalho, casa. De tal forma que os dias nos parecem cópias uns dos outros. E, talvez por isso, concentrados e consumidos em um único sopro.

A explicação tem o seu interesse, escreve o autor, mas talvez as coisas sejam mais simples.

E uma segunda tese, que Douwe Draaisma elege como sua, diz-nos que o tempo acelera porque nós já não aceleramos como antigamente. Como o próprio escreve, o corpo corria mais rápido do que o rio do tempo; mas hoje ele se atrasa pelas margens.

Em rigor, o tempo não acelera; o tempo mantém-se rigorosamente igual. Nós é que não: organicamente falando, biologicamente falando, repetimos os mesmos gestos –mas anoiteceu, entretanto.

E anoiteceu mesmo: caminho pelas ruas de Londres e penso nas explicações do prof. Draaisma. Será que a minha vida rotineira precisa de alguma adrenalina suplementar?

Ou o envelhecimento do corpo é um fato –e a atitude mais inteligente é parar de correr atrás da criança que eu fui e que leva sempre vantagem sobre os meus passos mais lentos?

São perguntas que se dissipam no frio. Até porque há presentes de Natal para comprar.

Curioso: Natal. Falta um mês para celebrar a data e eu poderia jurar que ainda ontem estava a celebrar. 
Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

RELATOS SELVAGENS

Por que nosso cinema brasileiro é tão inferior ao argentino? A Argentina está quebrada há anos. Sua política é risível (peronismo de todos os lados). Sua presidente atual, uma bolivariana louca.


Mas "los hermanos" continuam anos-luz à nossa frente em uma porção de coisas, entre elas o cinema. A "cultura" brasileira é ainda um atraso em comparação à argentina.

Nosso cinema patina na fórmula da comédia escrachada, masturbações ao redor do amor neurótico, do "coitadismo" (coitado do pobre, do bandido, do drogado) ou de seu contrário: pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo. E agora uma novidade: as questões de gênero.

Existe um lugar-comum para o cinema inteligentinho entre nós: a crítica social.

Parodiando o grande Oscar Wilde, quando dizia que toda poesia sincera é ruim, eu diria que todo filme de crítica social é ruim. No mínimo, chato. E não deve melhorar, na medida em que os jovens cineastas continuam sendo formados, em grande parte, no culto a Cuba como meca da resistência ao capital -dá até vontade de rir, se não fosse caso para chorar...

E aí, chegamos a "Relatos Selvagens", dirigido pelo argentino Damián Szifrón, que conta seis histórias curtas sobre violência.

Não, você não vai ver um filme falando de como o capital é responsável por todas as desgraças do mundo, nem sobre como a sociedade desigual produz todo o mal. "Relatos Selvagens" não é infantil -e, quem pensa que a violência é fruto do capitalismo, é infantil.

Mas, claro, as relações entre as pessoas num mundo do dinheiro são parte de como se dá a violência.

Por exemplo, numa das histórias do longa, o personagem de Ricardo Darín é esmagado por algo que conhecemos muito bem: a parceria criminosa entre governo e as empresas privadas que prestam serviços a ele, gerando todo o aparato de multas no trânsito nas grandes cidades, câmeras fotográficas, guinchos e afins.

Além, claro, da burocracia enlouquecedora, feita para inviabilizar qualquer tentativa de reação por parte das pessoas.

Entretanto, pela própria apresentação do filme, vemos que o lugar da violência parece estar além do maniqueísmo típico das ciências sociais: os animais selvagens olhando para as câmeras que os fotografam relevam nosso parentesco de alma com eles.

O tratamento da violência no longa parece ser o seguinte: a violência é constitutiva da espécie e a civilização faz o que pode com isso. Inclusive porque é a própria civilização quem estimula a violência, muitas vezes vista como o "ato de coragem" -que, em um dos relatos, faz um homem recuperar o respeito da própria esposa.

A violência é feia, destrutiva, ridícula. Mas, às vezes, a negação dela seria destrutiva, como na história em que um milionário, achacado pela corrupção do sistema judiciário argentino, decide ser mais agressivo na negociação da propina e consegue reduzir seus gastos com um crime que envolve seu filho, um mauricinho irresponsável.

Aliás, nesse mesmo caso vemos como as classes menos favorecidas sabem muito bem como manipular seus "ganhos" no esquema de corrupção. Um cínico diria que a corrupção também pode ser inclusiva.

Noutra história, a diferença de "natureza" entre duas pessoas distintas pode fazer com que uma, com todas as razões do mundo para se vingar, se mantenha imune ao instinto violento e outra, sem nenhuma relação com o caso em questão, se revele uma besta assassina.

Diferenças de caráter individual, claro, eram consideradas um "fetiche" burguês pelo velho Marx.

Não faltaria em uma obra consistente como "Relatos Selvagens" o reconhecimento da íntima relação entre violência e Eros. A história da festa de casamento traz à tona a sabida "energia positiva da agressividade" no tesão entre um homem e uma mulher. A paz eterna é brocha.

No primeiro relato, somos levados a pensar: qual gostosa nunca trocou o namorado bundão pelo amigo descolado? Quem nunca riu de alguém medíocre? Qual terapeuta nunca subiu o preço da sessão?

Bem vindos à vida real, e não à pasmaceira politicamente correta brasileira.
Por: Luiz Felipe Pondé   Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A RATAZANA COM PHD

Imagine que você está numa reunião de colegiado de qualquer universidade brasileira. Desafio você a contar quantas vezes ouvirá a palavra "alunos" ao longo da reunião. Provavelmente, nenhuma ou quase nenhuma. Refiro-me aqui especificamente ao universo do mestrado e do doutorado.


Perguntará o leitor assustado: "Como assim? A universidade não foi feita para os alunos??!!". Responderá o professor: "Coitadinho dele, ingênuo. Não: a universidade existe para fazer relatórios burocráticos que supostamente medem a qualidade da pós-graduação. Servimos a burocracia da produtividade e só isso".

Se Kafka vivesse hoje, escreveria um conto no qual nós, acadêmicos, seríamos representados como ratos aterrorizados pela grande ratazana "empoderada" (essa palavra horrível que alguém inventou em alguma noite em que vomitava continuamente...), rainha de todos os burocratas, seres nascidos para tornar qualquer criatividade real inviável. A originalidade é perseguida a pauladas nos corredores das universidades.

O aluno é a variável menor porque ele não "conta" ponto nenhum para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), apenas como médias quantitativas que medem a rapidez com a qual mestrados e doutorados são concluídos.

Se for uma universidade pública, então, em que o salário não depende do número de orientandos e de alunos em sua disciplina, o aluno é menos importante do que banheiros limpos. Se for numa privada, ele contará, é claro, nos contratos dos professores como números que garantem salários. E só.

E o aluno, como todo miserável numa cadeia alimentar em que é a parte mais fraca, sonha virar predador: submete-se ao matadouro porque quer passar em algum concurso. Mas, se quiser, trate de arranjar alguém que manipule uma banca a seu favor. Além, claro, de atender às exigências da ratazana rainha.

Todo professor sabe que deve correr atrás de pontuar nos relatórios porque, inclusive, se não o fizer, derruba a nota do seu departamento, e isso será punido das mais diversas formas. Você até pode dar uma aula medíocre, repetindo conteúdos ou fazendo o aluno dar seminários no seu lugar. Isso em nada impacta a "produtividade". A ratazana rainha só enxerga números.

Mas ainda é possível pensar a educação a sério. Livros como o da jornalista Amanda Ripley "As Crianças Mais Inteligentes do Mundo e como Elas Chegaram Lá", do selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha, mostra que, no ensino médio, nem sempre quantidades implicam qualidades (vale muito a pena ler esse livro se você está interessado em superar as bobagens de autoajuda e as tecnobobagens aplicadas à educação, na moda aqui no Brasil). Ainda que o livro se ocupe do ensino médio, ele pode servir de luz para o tema em geral.

Espero que um dia superemos esse paradigma vazio das "listas qualis" que, na realidade, aferem nada, em termos de conteúdo, do que significa a relação com a formação do aluno. Por quê? Simples: porque, mesmo que publiquemos muito segundo parâmetros qualis', a qualidade do ensino de pós-graduação no Brasil é cada vez mais burocrática.

O problema é que ficamos tão atolados com medo dos relatórios contínuos (todas as plataformas X, Y e Z) que pouco importa o desejo de conhecimento dos alunos. Sei: cometi um pecado romântico ao dizer isso. A produção na universidade é industrial do tipo salsichas. Puro capitalismo chinês. E capitalismo chinês é assim: TVs, carros baratos e gente estúpida, correndo da ratazana devoradora de almas.

P.S.: na semana passada, como disse, suspeitava de que o nome da entrevista de Freud sobre seu desinteresse acerca da vida após a morte não fosse "A Transitoriedade" –que é, na verdade, um texto dele mesmo sobre a impermanência das coisas (que era o tema mesmo de que tratava a coluna).

Uma amiga psicanalista me mandou a referência precisa: "O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud". Nessa entrevista, dada em 1926 ao jornalista George Sylvester Viereck, ele diz precisamente o seguinte: "Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto". Amém, digo eu. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

domingo, 30 de novembro de 2014

METAFÍSICA

Imagine, caro leitor, se você pegasse uma nave espacial e viajasse pelo universo na certeza de que não existe qualquer outra vida inteligente nele?

Imagine que ninguém existisse no Universo que pudesse trocar uma única palavra com você? Agora pense, em seguida, que quando você morresse, só restaria pedra, areia e estrelas (feitas de pedra e areia), em todo o Universo, coberto pela mais fina indiferença e silêncio.

Agora pense que você representa aqui, neste pequeno experimento cósmico, a humanidade. Esta possibilidade causa em você angústia? Tristeza? Solidão? Vazio? Indiferença? Uma sensação de beleza?

Confesso que estou mais próximo da última hipótese acima: a ideia de que somos a única espécie inteligente no universo me causa uma estranha sensação de beleza. Pensar que em nenhum outro recanto do universo exista alguém semelhante a nós, inteligentes, indagadores e desgraçados, pode ser uma experiência muito arrasadora daquilo que Kant chamava de sublime. A mais vasta solidão consciente jamais imaginada. E o mais avassalador desespero por isso mesmo.

Mas, sei que, normalmente, buscamos outras inteligências no Universo. Preferivelmente, mais avançadas e capazes de dar respostas esclarecedoras para perguntas do tipo "por que estamos aqui?", "de onde viemos?", "para onde vamos?", "vale a pena fazer o bem?" (sei que o filósofo relativista perguntaria "o que é o bem?", mas hoje não vou responder essa pergunta para ele).

Muita gente espera que essa inteligência seja algo divina. Sei mesmo que alguns aceitam que esse divino pode ser um astronauta, seguindo os delírios do velho livro de Erich Von Däniken, dos anos 60, "Eram os Deuses Astronautas?".

Sei que muita gente crê mesmo que exista vida inteligente fora da Terra. Num universo deste tamanho, só haver vida na Terra, como dizia o cientista Carl Sagan (que não acreditava em nenhum relato de contato com vida extraterrestre), seria "um enorme desperdício de espaço".

Mas, ainda assim, após ler a obra de Carl Sagan, em especial, "O Mundo Assombrado pelos Demônios", tendo a crer que todos os relatos de contatos com vida extraterrestre são alguma forma de combate à solidão e à terrível insignificância que nos assola.

Da cama vazia, mergulhada na solidão de vidas fracassadas afetivamente, ao dia a dia mergulhado na banalidade da vida do dinheiro, tocando mesmo as raias do desespero por saber se existe ou não vida após a morte, suspeito que a crença em vida inteligente fora da Terra seja feita da mesma substância da crença religiosa: busca de algum significado para a banalidade de nossas vidas anônimas. Não é à toa que todo mundo que diz ter um contato deste tipo se sente um tanto profeta ou vidente.

A Nasa, recentemente, disse que deverá preparar cientistas para este tipo de contato. Eu, pessoalmente, suspeito que a Nasa esteja fazendo um reposicionamento da marca porque a agência espacial americana não dá uma dentro há muito tempo. Resolveu concorrer com a Disney. Pra minha geração, que considerava um astronauta um herói absoluto, a ideia de que a Nasa "passou a acreditar em ET", é o fim do mundo.

Entendo que grande parte da humanidade se angustie com a questão metafísica se existe vida após a morte. Eu, sobre este assunto, estou mais próximo do que Freud disse numa entrevista cujo título, se não me engano, é "A Transitoriedade". Perguntado se ele não se preocupava com o que aconteceria com ele depois da morte, ele teria respondido: "Estou tão preocupado com isso quanto com o destino do botão do meu casaco".

Sei que uma resposta dessa parece blasé diante da suposta importância da questão em jogo. Mas, para mim, é a mesma coisa. Não me importa o que vai acontecer comigo depois da morte. Acho mesmo que este tipo de angústia é algo que se tem ou não se tem. Nunca penso na morte. Não porque, como todo mundo, não tenha medo dela, mas sim porque acabo me ocupando com alguma outra coisa mais urgente.

Suspeito, enfim, como o sábio poeta português Fernando Pessoa, que a metafísica seja uma forma de indisposição.
 Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

CINZAS DE IGUALA

O México, como o Brasil, não é para principiantes. A tragédia de Iguala, no estado de Guerrero, está coberta por uma espessa neblina de desinformação. Perfurando-a, descortina-se um panorama de crises empilhadas ""e uma encruzilhada crucial na política internacional hemisférica.


Na escala local, o episódio envolve três atores: a prefeitura, uma máfia do narcotráfico e os 43 estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, assassinados com requintes de crueldade. O prefeito da cidade ordenou a detenção policial das vítimas, que foram entregues aos criminosos da gangue Guerreros Unidos e "desapareceram", incinerados e lançados a um rio. Barbárie.

A associação entre autoridades locais e chefes do tráfico, e a consequente infiltração de policiais municipais pelo crime organizado, é um fenômeno dos últimos 15 anos. Mais antigo é o fenômeno da radicalização de estudantes de pedagogia no México meridional, região mais pobre do país. As escolas normais, criadas pelo Estado para integrar os filhos de indígenas na estrutura do funcionalismo, como professores de escolas públicas, converteram-se em incubadoras de movimentos sociais e focos de difusão do extremismo político. O massacre de 26 de setembro foi um ato destinado a aterrorizar os militantes que incomodam o poder local e, de algum modo, parecem ter se interposto no caminho dos negócios do narcotráfico.

Na escala nacional, o episódio evidencia a disfuncionalidade do aparato de segurança do Estado mexicano, posto à prova pela "guerra contra o tráfico". A mobilização das Forças Armadas na repressão direta às gangues, iniciada no governo de Felipe Calderón (2006-2012), não surtiu os efeitos previstos, mas provocou uma escalada de violência pontuada por denúncias de torturas sistemáticas e pela descoberta de inúmeras sepulturas clandestinas.

As responsabilidades diretas do governo federal não devem ser minimizadas, mas o núcleo do desastre deriva de responsabilidades indiretas. No México, as polícias municipais, controladas pelos prefeitos, tornaram-se ferramentas de alianças entre autoridades locais e o crime organizado. Iguala marca o ápice de uma trajetória de infiltração desses aparelhos pelos narcotraficantes. A cidade é um reduto do PRD, partido de centro-esquerda de oposição ao governo federal. O estado de Guerrero é governado pelo mesmo PRD desde 2005. As manifestações contra o PRI, partido do presidente Enrique Peña Nieto, inscrevem-se no tabuleiro da manipulação oportunista do massacre. Peña Nieto cortou a espiral de violências descontroladas. Mesmo assim, não tem o direito de circundar a crise desatada em setembro. A punição dos assassinos e de seus sócios políticos não encerrará o assunto. Depois de Iguala, o México não pode mais esconder sua "guerra suja" atrás dos tapumes coloridos de uma relativa prosperidade econômica.

Na escala hemisférica, o episódio revela a falência estratégica da "guerra às drogas". O Plano Colômbia, de 1998, transferiu as rotas do tráfico do Caribe para o Istmo Centro-Americano, corroendo as instituições estatais e os aparelhos policiais na América Central e no México. De lá para cá, a teia do narcotráfico ampliou-se pela incorporação definitiva do Brasil, na dupla condição de grande mercado consumidor (como os EUA) e, cada vez mais, de importante rota de passagem (como o México). Contudo, desgraçadamente, ainda nem começou um debate interamericano sobre as alternativas ao fracasso da abordagem militar.

SEM INTRIGA

Janio de Freitas alegou que o interpretei mal (Folha, 9/11). Mas não ofereceu as indicações que permitem consultar as colunas em questão, tornando tudo "muito intrigante". Como não aprecio a intriga, aí vão elas: o texto dele saiu na Folha de 26/10; o meu, em "O Globo" de 6/11. Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

500 ANOS DE CORRUPÇÃO

De repente, como um raio no céu claro, o governo foi tomado por extraordinário interesse pela corrupção –no passado. Na Austrália, Dilma Rousseff ensaiou "listar uma quantidade imensa de escândalos no Brasil que não foram investigados". A historiadora amadora, porém, só fingia falar sobre o passado: "Talvez esses escândalos que não foram investigados sejam responsáveis pelo que aconteceu na Petrobras". Ah, sim!, trata-se, então, do presente.


Governantes deveriam exercitar a prudência ao especular sobre corrupção em governos anteriores. Se têm conhecimento de denúncias fundamentadas, a lei os obriga a deflagrar uma investigação policial e judiciária. Se não o fazem, a fim de manipular halos de suspeita em seu benefício político, incorrem no crime de prevaricação. Os áulicos, por outro lado, não sendo autoridades, podem especular alegremente. Nesses dias de Lava Jato, é fácil identificá-los por seus frêmitos de indignação moral com a corrupção pregressa.

O passado que preferem é o recente: o governo FHC. Do nada, adoradores do estatismo começaram a honrar a memória do incauto Paulo Francis privatista de 1996, submetido a processo intimidador depois de afirmar que "os diretores da Petrobras" constituíam "a maior quadrilha que já atuou no Brasil". Mas, num tour de force, os neo-historiadores da corrupção já se aventuram em tempos anteriores, reavivando a memória da ditadura militar, que converteu em potências a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Mendes Júnior e a Queiroz Galvão, além de servir de berço para a OAS e a UTC. Logo, sua ira santa nos conduzirá ao estouro da bolha do Encilhamento, sob Deodoro da Fonseca, e às aquisições de escravos traficados ilegalmente por Paulino José de Souza, então ministro do Exterior, no Segundo Reinado.

O foco nos "500 anos de corrupção" não se destina a recordar que a corrupção nasceu antes de 2003, pois o óbvio dispensa explicação. A finalidade é entorpecer-nos, normalizando o escândalo em curso. Eles almejam dissolver a corrupção investigada na corrupção falada e o presente singular (a colonização partidária da Petrobras) no genérico histórico (a captura do poder público por interesses privados). Somos assim, sempre fomos, sussurram, inoculando-nos o soro da letargia, enquanto o ministro da Justiça critica a "politização" do escândalo (não a da Petrobras!). A corrupção mora na índole do povo brasileiro: "Cada um de nós tem um dedão na lama", assegura um célebre empresário, enquanto a presidente antecipa que pretende violar a lei sobre declaração de inidoneidade ("A gente não vai colocar um carimbo na empresa").

Não há lei que puna a corrupção da linguagem. Nos tempos bons, o lulopetismo anuncia-se como o Ato Inaugural: "Nunca antes na história deste país". Nos tempos ruins, exibe-se como vítima da Tradição: "Nunca foi diferente na história deste país". Mas a contradição sempre tem o potencial para se superar como dialética. Na Austrália, Dilma se esqueceu do tão recente "mensalão" para rotular o "petrolão" como o "primeiro escândalo da nossa história que é investigado". Os áulicos já a seguem (afinal, é para isso que existem), saudando o Ano Zero da guerra à corrupção.

"Dilma agora lidera a todos nós", anuncia o empresário dos dedos sujos de lama –que, casualmente, tem como maior cliente a estatal Correios. A narrativa do Ano Zero descortina possibilidades ilimitadas. Dilma "não sabia de nada"? Esqueça. Nos 12 anos em que dirigiu a Petrobras diretamente (como presidente do Conselho de Administração) ou indiretamente (como ministra e presidente da República), os partidos da "base aliada" privatizaram a estatal, desviando dezenas de bilhões de reais. Não é que a Líder dos Imundos "não sabia". Sabia –mas, sábia, deixou a operação se alastrar para, no Ano Zero, pegar todos os bandidos juntos. Ah, bom! Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

MULHERES QUE APANHAM

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim falava Nelson Rodrigues. E assim falo eu, em jeito de provocação, ao meu auditório feminino lá em casa.


Sem sucesso: rodeado por mulheres mais inteligentes do que eu, elas tratam de responder às provocações com outras provocações de igual calibre, irreproduzíveis num jornal de família.

Eu, sovado e acabrunhado, encerro a discussão, fugindo para a primeira premissa: "Estão vendo? Neuróticas, todas vocês".

Brinco, claro. Mas depois, com o café da manhã, vou lendo notícias que ressuscitam o velho Nelson e conferem "gravitas" aos seus aforismos.

Uma delas vem no "Sunday Times" e parece inventada por uma jornalista (neurótica): o americano Julien Blanc vem a caminho do Reino Unido. Pior: Blanc pode já estar em Londres, pronto para organizar os seus "workshops". Quem é Julien Blanc?

A julgar pelo tom da notícia, parece que o rapaz é um descendente de Jack, o Estripador, pronto para arruinar mulheres de boa ou má fama.

Mas depois lemos que o talento dele é ensinar os homens, em cursos de três dias pelo preço de R$ 5.200, a seduzir, usar e destruir emocionalmente uma donzela. "O meu brinquedo sexual favorito", diz o pensador Blanc, "é a minha namorada." O sucesso tem sido planetário.

Se a coisa ficasse pelos jornais, nada a declarar: a crise da imprensa também é uma crise de inteligência. O pior é que a sombra do temível Blanc já chegou aos governos. A Austrália o expulsou do território como quem expulsa o conde Drácula. O Brasil, que em princípio seria visitado pelos seus caninos em janeiro, já avisou que não há visto para ninguém.

Igual posição é assumida pela ministra do Interior britânica, Theresa May, partindo do pressuposto de que o monstro ainda não chegou às ilhas britânicas. Blanc não terá autorização para entrar porque ele é um "perigo público" e os seus cursos podem "incitar ao abuso e à violência".

Uma pessoa lê essas coisas e pergunta, como um velho dinossauro fora do seu parque jurássico, que mundo é esse em que as mulheres precisam da proteção dos governos para não caírem na cantiga do bandido.

Serei o único a pensar que o comportamento da Austrália, do Brasil e do Reino Unido trata as mulheres como crianças –e um idiota americano qualquer, como um voraz mentor de pedófilos?

Os conselhos de Julien Blanc –como manipular uma mulher; como humilhá-la; como chantageá-la– são de um primitivismo infantil, é certo.

Mas transformá-lo em "perigo público" e impedi-lo de viajar, para além de duvidoso do ponto de vista legal, é retirar às mulheres, sobretudo a mulheres adultas, qualquer estatuto de autonomia ou racionalidade.

Claro que existem sempre vozes de compaixão para quem nem todas as mulheres possuem esse grau de autonomia ou racionalidade (belo paternalismo!). Mulheres sem instrução; mulheres sem independência econômica; mulheres com baixa autoestima (grotesca palavra) –todas elas são presas fáceis para predadores difíceis.

O problema é que a realidade, às vezes, desmente tais piedades. Por ironia cósmica, o mesmo "Sunday Times", na sua revista dominical, publica extratos da autobiografia da atriz Anjelica Huston, mulher de Jack Nicholson durante duas décadas.

E, durante essas duas décadas, Huston foi fazendo uma longa lista de todas as mulheres que Jack Nicholson foi devorando nas horas livres e que provocaram na pobre Anjelica angústias sem nome.

O próprio Jack, aliás, raramente negava esses casos. Quando muito, dizia apenas que era "sexo por compaixão", sem importância ou continuidade.

Confrontado com tal benemérito, um dinossauro perguntará o que fez Anjelica Huston perante tanto abuso e humilhação durante 20 longos anos. No fundo, qual foi a atitude de uma mulher econômica e socialmente independente ante as terríveis infidelidades do seu amado vilão.

A ministra Theresa May, ou o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, talvez dissessem que o amor tem razões que a razão desconhece –e que é exatamente por isso que as mulheres devem ser protegidas em "habitat" apropriado. Como certos pandas no jardim zoológico.

Nelson Rodrigues discordaria. Para ele, Anjelica Huston era perfeitamente saudável, não neurótica. Por isso gostava de apanhar. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

terça-feira, 25 de novembro de 2014

HERBERT MARCUSE E A ESCOLA DE FRANKFURT

OS SAFANÕES E A AUTORIDADE

Na segunda passada, foram divulgados os resultados de uma pesquisa que a Fundação Getúlio Vargas realizou para o Fórum de Segurança Pública. Nada surpreendente: 81% dos brasileiros concordam com a ideia de que, no Brasil, é fácil desobedecer às leis, e 57% acreditam que há poucos motivos para segui-las.


Há diferenças segundo a renda e os Estados, mas nada que altere a sensação de que existe, em geral, uma desconfiança do cidadão em relação à Justiça, à polícia e à autoridade pública.

Alguns dirão que ainda é um efeito da exclusão social: por que eu seguiria as regras de um clube que não me deixa frequentar sua sede? Outros, para explicar essa desconfiança, colocarão o acento na impunidade (embora talvez ela seja menos manifesta do que no passado).

Entendo. Às vezes me encontro numa fila infinita de carros, e um espertinho ultrapassa todo mundo pelo acostamento. Rezo para que, lá na frente, meus colegas de fila não deixem ele voltar para a pista –ou, então, para que, na próxima curva, haja um policial. Mas acontece o oposto: aos poucos, meus colegas de fila começam a seguir o exemplo do espertinho. Logo, o acostamento se torna mais uma pista, engarrafada e parada como as outras –com sorte, nenhuma ambulância precisará passar por lá.

Será que eu respeito a lei porque sou "do bem" ou porque me falta coragem, mesmo na óbvia ausência de fiscalização? Será que nós, os que ficamos na fila, somos apenas otários?

Enfim, a pesquisa da FGV levanta uma questão clássica e cotidiana: qual é o fundamento da autoridade da lei? Se você duvida que seja uma questão cotidiana, pergunte para qualquer jovem pai, quando ele é acusado pela mulher de não saber "colocar limites" nos filhos (essa expressão volta, aliás, como se todas as jovens mães tivessem lido o mesmo livro).

Subentendida nessas acusações está a ideia de que o marido, se não conseguir controlar as crianças, não deve ser homem de verdade. Mas, obviamente, a maioria das mães não está pedindo que o marido e pai conquiste a obediência das crianças à força de safanões e porradas. O que se pede é que alguém imponha uma autoridade "simbólica", ou seja, que alguém faça que as crianças obedeçam aos pais –por ele ser o pai e por ela ser a mãe. Cá entre nós: se você leu essa última frase sem rir (ou, no mínimo, sorrir), é porque você não tem filhos.

Em suma, é uma pergunta cotidiana: qual é a origem da autoridade? Existe uma autoridade que não comece com o safanão ou a ameaça do safanão?

Há muitas respostas possíveis a essa pergunta. Aponto dois caminhos divergentes.

Primeira resposta: não. Em última instância, a violência ou a ameaça da violência real seria a única fonte de qualquer autoridade. Claro, o mistério é que a autoridade sustentada pela violência real deve se transformar, aos poucos, em autoridade simbólica. Se a autoridade continuar fundada apenas na violência, o que acontecerá, por exemplo, quando os filhos crescerem e se tornarem mais fortes do que os pais? Os pais vão apanhar?

Outra resposta: sim, a autoridade pode se fundar sem violência e sem ameaça. Por exemplo, ela pode ser o efeito de uma dívida: estamos em dívida com os que nos oferecem amor e cuidados, e portanto obedecemos, escolhemos respeitá-los. Isso valeria tanto para os pais provedores quanto para o Estado, do qual seguiríamos as leis na medida em que ele nos ampara. A autoridade, em suma, seria fundada na gratidão. Os partidários da violência como origem da autoridade comentarão (com ironia) que para eles também a gratidão funda a autoridade: por exemplo, cada um reconhece a autoridade de quem poupa sua vida.

Enfim, uma famosa observação de Max Weber: existe Estado quando só UMA autoridade pode exercer a violência. Se alguém estiver exposto a várias violências de origens diferentes e conflitantes, nenhuma delas tem chance de se transformar em autoridade reconhecida espontaneamente.

Acabo de ler um artigo de Joanna Wheeler ("Accord", nº 25) sobre autoridade e cidadania em várias favelas cariocas. Entre as razões pela falta de uma autoridade simbólica, Wheeler aponta, justamente, a variedade das fontes da violência (tráfico, milícia, polícia) e, portanto, a dificuldade de os cidadãos enxergarem uma legitimidade qualquer. Por: Contardo Calligaris Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

POR QUE DEVEMOS FICAR LONGE DOS CONSERVADORES

Há uma discussão em voga no Thoughts on Liberty e no Cato Unbound sobre se o fusionismo, ou a aliança entre conservadores e libertários, é efetivamente boa para a liberdade. Eu não sou um fusionista, mas se existe algo que posso conceder aos libertários fusionistas, é que uma disputa sectária interna entre libertários e conservadores realmente compromete o sucesso das ideias de liberdade.


A questão é que não estou focando no curto prazo. Eu não sou a favor de sacrificar a liberdade futura em prol da eleição atual. O fusionismo faz isso de duas formas. Primeiro, o processo político em si coage as pessoas; se o seu objetivo é maior liberdade, chegar lá através da força não parece a forma correta. Segundo, o fusionismo faz com que as ideias de livre mercado estejam alinhadas com a tirania pessoal na mente das pessoas. Enquanto a repressão social continua a perder popularidade entre os jovens, nós não queremos que a liberdade econômica seja prejudicada por isso.

A política é agressão. A maioria das pessoas considera tal fato como reminiscência de um anarco-capitalismo. E, de certa forma, eu não os culpo.

Nós nascemos fazendo parte de estados. Nós aprendemos a usar os processos políticos para tentar afirmar algum controle sobre nossas próprias vidas, e se temos êxito, acabamos controlando as vidas de outrem no processo. Nós chamamos isso de “democracia” e, pelo que sabemos, é a forma menos terrível de coerção governamental.

Mas o que a democracia significa, em última instância, é que mudar as coisas através do processo político requer controlar outrem por meio dos votos. Contudo, a liberdade é o contrário do controle.

Isso é o quero dizer quando digo que estou focando no longo prazo. Eu não me vendo para coagir pessoas de maneira a alcançar meus objetivos, não importando quão louváveis possam ser.

A outra razão pela qual eu não sou um fusionista é que a demografia muda. Novas gerações possuem visões que diferem das de seus antepassados. A atual direita é formada principalmente por pessoas velhas cujas visões nas chamadas “questões sociais” não rimam com as visões sustentadas pelas novas gerações.

Os conservadores têm saudades de um tempo quando a desigualdade de gênero era mais severa (e agora chamam tal período de “feminismo liberal”) e um tempo quando os gays não podiam se casar. Os conservadores não querem ver progresso na legalização das drogas, na prostituição e até mesmo na imigração. Isso significa o governo chegando e dizendo às pessoas como suas propriedades são taxadas, o que elas podem “colocar” em seus corpos, como podem usar seus corpos e se podem ou não se moverem livremente. Isso não é liberdade, e os jovens sabem disso.

O problema com o fusionismo é que faz com defensores de livre mercado alinhem-se com as posições que estão rapidamente saindo de moda. Ok, você vencerá as eleições hoje. Mas os jovens agora rejeitam a liberdade econômica ligada à repressão social, o que é um problema crescente para o progresso do livre mercado.
Por: Cathy Reisenwitz, uma escritora e comentarista política. Ela comanda o "Sex and the State" e escreve regularmente para a revista Doublethink bem como para o Thoughts on Liberty.
Tradução de Matheus Pacini. Revisão de Adriel Santana. | Artigo original

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

'A ESCOLA PERDEU SUA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL"

Para especialista, missão primordial de transmitir conhecimento vem sendo esmagada pela ideologia que reduz a educação a ferramenta de dominação


Pouca gente discorda que é papel da escola transmitir os conhecimentos imprescindíveis ao desenvolvimento do indivíduo e, por tabela, do país. Para o estudioso João Batista Oliveira, contudo, a missão vem sendo esmagada no Brasil por políticas mais interessadas em propagandear números grandiosos e por ideologias cujo interesse passa longe da educação. O resultado é o fracasso do ensino no país. "Perdemos a noção da função social da escola. Ela deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc.", diz Oliveira. A história de como se deu esse processo é dissecada no livro Repensando a Educação Brasileira, que chega às livrarias nesta semana, em que o pesquisador discute qual é, enfim, a função da escola e propõe medidas para recolocar nos trilhos professores e escolas. Oliveira atuou durante vinte anos como consultor do Banco Mundial e da Organização Internacional do Trabalho e ajudou a implantar projetos de educação em mais de sessenta países. No Brasil, foi secretário executivo do Ministério da Educação e, desde 2006, está à frente do Instituto Alfa e Beto, organização não governamental que promove a alfabetização em redes públicas de ensino. Em dezembro, a ONG vai realizar pela primeira vez o Prêmio Prefeito Nota 10, iniciativa que vai identificar e recompensar o município brasileiro que mantém a melhor rede de ensino do país. Confira a seguir a entrevista que ele concedeu a VEJA.com.

Como o senhor vê o atual debate sobre educação no Brasil? Em nosso país, não há debate. A educação é tratada somente do ponto de vista de leis, regulamentos, aumento de vagas, interesses de professores e sindicatos. A política de educação sempre foi pautada pela ideia de crescimento. Ou seja, mesmo que país esteja vendo sua taxa de natalidade cair, ainda se vendem promessas de mais vagas, além de mais tempo na escola, mais disciplinas no currículo, mais regulamentação. É uma estratégia que interessa aos políticos, porque gera emprego para professores e mais construções para somar ao orçamento, que caem bem em período eleitoral. De certo modo, essa visão distorceu o debate, que virou um discurso de carências: falta isso, falta aquilo. As políticas governamentais induziram a essa situação e eliminaram os espaços para discutir outras questões, como a aprendizagem do aluno. No quadro atual, o estudante é mais um subproduto desse debate. Na outra ponta, existe a responsabilidade da academia, com professores e pesquisadores que rechaçam qualquer ideia contrária a suas ideologias. Eles fazem uma doutrinação ideológica e antiquada de que educação é um objetivo de dominação e de controle e que a pedagogia não interessa.

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Repensando a Educação Brasileira

Divulgação/VEJARepensando a Educação Brasileira

Repensando a Educação Brasileira

O livro, que chega às livrarias nesta semana, faz uma análise histórica dos fatores que moldaram o sistema educacional brasileiro desde a criação das primeiras escolas nacionais até as políticas públicas mais recentes. Na obra, o autor apresenta ainda propostas para corrigir rumos em áreas como formação de professores e financiamento público

Autor: João Batista Oliveira

Editora: Salta

De onde surgiu essa ideia? Nas décadas de 1970 e 1980, sob a influência dos movimentos populares que cresceram na França em 1968, houve uma inflexão no discurso pedagógico brasileiro. Até então, ele era razoavelmente formalista, sempre com uma parte legal muito forte, assim como a atuação marcante do Conselho Nacional de Educação. Do ponto de vista pedagógico, era razoável. Era normal falar em currículo, cobrar do professor conhecimento de sua disciplina, aprovar o aluno que sabe e reprovar o que não sabe, tudo dentro de uma concepção acrítica e ingênua. Isso era natural, como o é dizer que a mãe deve amar e amamentar seus filhos. Ideias apoiadas nas teorias de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, na França, e de Paulo Freire, no Brasil, que afirmavam que a escola reproduz desigualdades sociais porque ensina só aquilo que os burgueses querem. Com eles, ou não se ensina nada ou se ensina a fazer revolução. Enquanto os demais países passaram pela constestação e mudaram o discurso, no Brasil a ideia se tornou uma crítica hegemônica e permanente.

Como esse pensamento chegou à sala de aula? As faculdades que formam professores foram dominadas por essas pessoas. Eu tenho amigos que ainda atuam nas faculdades de educação e a vida deles é um inferno, porque não há espaço para diálogo. Tiraram dos currículos dos cursos de pedagogia métodos quantitativos e aulas de estatística, porque as pessoas que dominaram os cursos eram contra essas ideias. Enquanto isso, muitos países avançaram e passaram a medir o ensino e atacar as deficiências baseados em dados empíricos. Ao mesmo tempo, temos uma sociedade de baixa renda que não cobra melhorias, porque segue o discurso político de que mais é melhor. Segundo esse discurso, há mais escolas, uniforme, transporte, merenda, mais chances de ir à universidade: logo, não se poderia dizer que a educação está uma porcaria. Não há, contudo, contestação da qualidade. Já para as classes média e alta, é confortável essa situação, porque elas precisam fazer muito pouco para competir com a mediocridade. Não há, por exmeplo, disputa de vaga na USP com o mercado internacional. A elite deita em berço esplêndido e é acomodada.

Pensando do ponto de vista econômico, não seria mais interessante pleitear melhor educação e garantir desenvolvimento para o país? Com certeza. É tão necessário que eu não consigo entender por que os empresários são tão bonzinhos em relação à questão da educação brasileira. Todo mundo sabe que o maior recurso das economias modernas são as pessoas, ou seja, seu conhecimento e competências. Isso vale mais que soja, ouro, pré-sal. Os países com que competimos vão ganhar a competição na medida em que tiverem gente mais bem preparada. Gente capacitada é dinheiro, e os empresários sabem disso. Não dá para entender essa vocação suicida das elites empresariais. Só reclamar por mais cursos técnicos não adianta, porque não é só a mão de obra treinada que importa. Quanto mais gente bem formada tiver no país, independente do curso, melhor será para a economia. Talvez seja fruto do bom mocismo daqueles que esperam o apoio do BNDES sem criticar nada. O empresariado seria o principal ator para forçar uma mudança. Eles têm recursos, bons modelos de gestão, conseguem influenciar leis no Congresso, reduzir impostos. Enfim, têm uma força brutal que, se colocada para cobrar mudanças na educação, faria uma revolução.

O que é possível fazer para mudar esse quadro? Além de contar com a influência do empresariado, também é preciso rever a tônica do debate. Precisamos ir mais fundo, nos perguntar o que é a educação. Afinal, perdemos essa noção. A escola deixou de ser cobrada pelo cumprimento de suas obrigações essenciais e passou a ser cobrada por milhares de coisas que ela não tem condição de fazer, como cuidar da educação sexual, educação para o trânsito, para o consumo etc. A escola perdeu sua função social.

Qual é, afinal, essa função? A meu ver, a função histórica e antropológica é transmitir conhecimento. Conhecimento que é relevante para o desenvolvimento das pessoas, ou seja, aquele proveniente das disciplinas básicas: matemática, instrumentos da lógica, linguagem, ciências. Mas os professores são contra ensinar, são contra transmitir conhecimento, tudo naquela lógica da ideologia que já citei. Por isso, há movimentos tão fortes contra a implantação de um currículo nacional. Esses grupos são contra currículo não só por uma questão pedagógica: trata-se de um problema ideológico. Eles acham que a escola não pode definir o que deve ser ensinado. Mas, sem isso, o Brasil sai perdendo. Se não há um currículo, não dá para saber o que ensinar e como avaliar e formar o professor. Nós perdemos o fio da meada enquanto os outros países, que também passaram por mudanças, mantiveram o foco no que deve ser ensinado. O conceito do que é educação precisa ser recomposto, mas isso é difícil, porque os que manipulam a sociedade seguem apenas uma linha de pensamento hegemônico e não estão abertos a discussão.

Como o senhor avalia as mais recentes políticas que tratam do ensino, como o Plano Nacional de Educação (PNE), sancionado pela presidente Dilma Rousseff em junho? Como não temos a cultura da educação, onde se cria a definição de escola, nós não temos também as instituições que compõem o sistema educacional. Nós não temos uma ideia clara do papel do professor, do gestor, do currículo. Nós temos, se muito, uma ideia de avaliação, como Enem e Prova Brasil, e uma ideia de financiamento, ou seja, quem paga a conta. No mais, nenhuma outra instituição. Na falta disso, a política educacional se baseia em planos como o PNE, sujeitos a descontinuidade e que fracassam em 70% dos casos, como já foi comprovado por outros estudiosos. É tudo feito no vácuo cultural, sem as instituições, que também são parte da cultura. A educação no Brasil é uma terra arrasada.

No livro, o senhor propõe mudanças na avaliação e financiamento do ensino. Como? A primeira delas é uma mudança na avaliação do ensino. A interpretação dos índices educacionais do país é feita como em uma tabela de campeonato, mirando em quem tem a melhor ou pior nota. E na educação não se pode fazer isso. Aquela escola que tem a melhor nota não é, necessariamente, a que tem o melhor ensino. Isso depende do aluno, da família, do DNA, não só da escola. É preciso descontar esses fatores para encontrar o efeito diferencial. Há inúmeros estudos nesse sentido, um deles do atual presidente do Inep (órgão do Ministério da Educação responsável pelas avaliações), Francisco Soares. Ele diz que a melhor escola é aquela que acrescenta mais conhecimento ao aluno, descontando todos os fatores que não são da escola. É importante ressaltar o efeito escola e não só dizer que uma ou outra é melhor. O segundo ponto é o financiamento. Dado que temos uma mudança na demografia e um índice de repetência muito alto, uma abordagem de choque seria fazer investimentos em educação proporcionais à sua população do Estado ou município, e não ao número de alunos, como é feito hoje. Isso daria mais flexibilidade para os entes da federação escolherem como querem dividir investimebntos nos diferentes níveis do ensino. Um caminho é incentivar a política de municipalização do ensino, que entrou em debate, mas não foi levada adiante.

O senhor também trata da questão da formação do professor. O que fazer? Não podemos pensar o professor em partes, temos que olhar o todo. É preciso repensar os meios de contratação, a formação inicial, os planos de carreira, de estágio probatório e de avaliação. Tem que ser uma equação para atrair os melhores profissionais, oferecer bons curso, bons estágios, carreiras interessantes e, é claro, colher resultados na aprendizagem do aluno. Um plano que se concretiza a longo prazo. Enquanto isso, no curto prazo, é preciso pensar em políticas de transição. O Brasil insiste em pegar qualquer pessoa sem formação e acha que vai prepará-la para o magistério oferecendo-lhe um curso de 30 horas. Não vai. A transição tem que estar associada à mudança, pensando em mecanismos de contratação e demissão e, acima disso, pensando no que esses professores sem formação vão ensinar enquanto isso.

Como se define isso? Com sistema de ensino estruturado e consistente. Imagine que o professor da sala A ensina fração de um jeito e o da sala B, de outro. É um caos. Como isso é de fundo ideológico, baseado no discurso de que o professor tem que ter autonomia total para definir o que ensina, pior fica. Os professores não tem condição de exercer autonomia. Escola boa tem que ser autônoma e poder desenhar seu próprio currículo, mas tem que ter articulação para fazer isso. O que vemos são pessoas exigindo o controle de tudo. Sou a favor de o professor só ter autonomia quando tiver condições necessárias para exercê-la. Você só dá a chave de casa para a criança que tem juízo. Pensando do ponto de vista do aluno, como a categoria central do sistema educativo, o resto se perverte. Não faz sentido pensar no direito do professor, do interesse da categoria, se o aluno está diante de um professor que não foi bem formado. O que é melhor: dar autonomia ou orientar para que ele faça algo que ajude o aluno?

Recentemente, um grupo de professores no Quênia passou a utilizar roteiros de aula que devem ser seguidos à risca. Como parte da metodologia, o docente não pode ampliar a aula para além do roteiro. Um estudo mostrou avanços significativos no desempenho dos alunos. O senhor acha que, em casos extremos, essa seria uma alternativa? Claro, o ensino estruturado é isso. Há estudos que mostram que os países com pior desempenho educacional são os que mais demonstram melhorias quando adotam materiais estruturados para as aulas. Óbvio que são medidas curativas, mas é o tipo de estratégia adequada enquanto se conserta a base do sistema. Até lá, não se pode dar autonomia para quem não tem condições. Contudo, o que se nota pelas revoluções educacionais dos países que hoje estão no topo lista do Pisa (avaliação de educação mundial feita pela OCDE) é que eles seguem as mesmas práticas, que incluem currículo, mas vão além, envolvendo formação de professores, definição de estrutura escolar, organização do sistema de ensino, orientações para cursos superiores que formam docentes. No Brasil, cada um pensa de um jeito e não vejo caminhos para melhorias a partir da lógica atual.

Bianca Bibiano entrevista João Batista Oliveira: "a função histórica e antropológica da escola é transmitir conhecimento" (Pedro Franca/Agência Camara /VEJA)