quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

MULHERES QUE APANHAM

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim falava Nelson Rodrigues. E assim falo eu, em jeito de provocação, ao meu auditório feminino lá em casa.


Sem sucesso: rodeado por mulheres mais inteligentes do que eu, elas tratam de responder às provocações com outras provocações de igual calibre, irreproduzíveis num jornal de família.

Eu, sovado e acabrunhado, encerro a discussão, fugindo para a primeira premissa: "Estão vendo? Neuróticas, todas vocês".

Brinco, claro. Mas depois, com o café da manhã, vou lendo notícias que ressuscitam o velho Nelson e conferem "gravitas" aos seus aforismos.

Uma delas vem no "Sunday Times" e parece inventada por uma jornalista (neurótica): o americano Julien Blanc vem a caminho do Reino Unido. Pior: Blanc pode já estar em Londres, pronto para organizar os seus "workshops". Quem é Julien Blanc?

A julgar pelo tom da notícia, parece que o rapaz é um descendente de Jack, o Estripador, pronto para arruinar mulheres de boa ou má fama.

Mas depois lemos que o talento dele é ensinar os homens, em cursos de três dias pelo preço de R$ 5.200, a seduzir, usar e destruir emocionalmente uma donzela. "O meu brinquedo sexual favorito", diz o pensador Blanc, "é a minha namorada." O sucesso tem sido planetário.

Se a coisa ficasse pelos jornais, nada a declarar: a crise da imprensa também é uma crise de inteligência. O pior é que a sombra do temível Blanc já chegou aos governos. A Austrália o expulsou do território como quem expulsa o conde Drácula. O Brasil, que em princípio seria visitado pelos seus caninos em janeiro, já avisou que não há visto para ninguém.

Igual posição é assumida pela ministra do Interior britânica, Theresa May, partindo do pressuposto de que o monstro ainda não chegou às ilhas britânicas. Blanc não terá autorização para entrar porque ele é um "perigo público" e os seus cursos podem "incitar ao abuso e à violência".

Uma pessoa lê essas coisas e pergunta, como um velho dinossauro fora do seu parque jurássico, que mundo é esse em que as mulheres precisam da proteção dos governos para não caírem na cantiga do bandido.

Serei o único a pensar que o comportamento da Austrália, do Brasil e do Reino Unido trata as mulheres como crianças –e um idiota americano qualquer, como um voraz mentor de pedófilos?

Os conselhos de Julien Blanc –como manipular uma mulher; como humilhá-la; como chantageá-la– são de um primitivismo infantil, é certo.

Mas transformá-lo em "perigo público" e impedi-lo de viajar, para além de duvidoso do ponto de vista legal, é retirar às mulheres, sobretudo a mulheres adultas, qualquer estatuto de autonomia ou racionalidade.

Claro que existem sempre vozes de compaixão para quem nem todas as mulheres possuem esse grau de autonomia ou racionalidade (belo paternalismo!). Mulheres sem instrução; mulheres sem independência econômica; mulheres com baixa autoestima (grotesca palavra) –todas elas são presas fáceis para predadores difíceis.

O problema é que a realidade, às vezes, desmente tais piedades. Por ironia cósmica, o mesmo "Sunday Times", na sua revista dominical, publica extratos da autobiografia da atriz Anjelica Huston, mulher de Jack Nicholson durante duas décadas.

E, durante essas duas décadas, Huston foi fazendo uma longa lista de todas as mulheres que Jack Nicholson foi devorando nas horas livres e que provocaram na pobre Anjelica angústias sem nome.

O próprio Jack, aliás, raramente negava esses casos. Quando muito, dizia apenas que era "sexo por compaixão", sem importância ou continuidade.

Confrontado com tal benemérito, um dinossauro perguntará o que fez Anjelica Huston perante tanto abuso e humilhação durante 20 longos anos. No fundo, qual foi a atitude de uma mulher econômica e socialmente independente ante as terríveis infidelidades do seu amado vilão.

A ministra Theresa May, ou o Ministro das Relações Exteriores do Brasil, talvez dissessem que o amor tem razões que a razão desconhece –e que é exatamente por isso que as mulheres devem ser protegidas em "habitat" apropriado. Como certos pandas no jardim zoológico.

Nelson Rodrigues discordaria. Para ele, Anjelica Huston era perfeitamente saudável, não neurótica. Por isso gostava de apanhar. 
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

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