segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

TORTURAR OU NÃO TORTURAR, EIS A QUESTÃO

Os Estados Unidos revelaram ao mundo o que todo o mundo sabia: a tortura foi praticada com regularidade no pós-11 de Setembro. O mundo abriu a boca de horror e alguns regimes criminosos, como Cuba ou Irã, pediram respeito pelos "direitos humanos".


Nesse momento, uma pessoa faz uma pausa para visitar o vaso sanitário. Quando regressa, levemente combalida, esquece os regimes criminosos e concentra-se nas democracias. Washington mostrou as suas masmorras. Mas onde estão as masmorras dos regimes democráticos que gostam de vestir a toga do moralista vulgar?

Aliás, não são apenas os regimes democráticos que exibem hipocrisia para turista ver. A tortura é o pretexto ideal para que o filósofo possa comover o auditório com o seu amor pela humanidade. Torturar é sempre errado. Se o suspeito é suspeito de guardar informação vital sobre um atentado terrorista em larga escala, privá-lo de sono ou simular afogamento é pior que o Holocausto.

Claro que o filósofo não explica como lidar com suspeitos desse calibre. Também não precisa. No jardim infantil em que se tornou a discussão pública, basta mostrar "bons sentimentos" para encerrar o debate.

Alan Dershowitz, o conhecido professor de Harvard, recusou-se em tempos a fazê-lo. Aconteceu no mais explosivo de todos os países: Israel.

Premissa de Dershowitz: a discussão sobre a tortura não é um problema moral. Toda a gente mentalmente sã condena a prática. Dershowitz não é exceção. Só que esse não é o ponto.

O ponto, acrescenta Dershowitz, é que a tortura é praticada (e continuará sendo praticada) por todos os países democráticos. Sem controle. Sem conhecimento da população. Perante essa triste realidade, o que fazer?

Para Dershowitz, existem duas vias possíveis: fingir que isso não acontece e continuar lendo o senhor Immanuel Kant; ou, então, trazer a prática para a alçada da lei.

Dershowitz fala, inclusive, de "mandados de tortura": interrogatórios coercivos cujos métodos, duração e intensidade só poderiam ser praticados mediante a autorização de um juiz e vigilância apertadíssima de autoridades judiciais e médicos especializados.

A proposta de Dershowitz provocou reações fortes: em Israel (que prefere absolver os abusadores "a posteriori" por razões de "segurança nacional") e em qualquer salão civilizado (que só aceita a fantasia de um mundo sem tortura).

Dershowitz responde: esse mundo não existe. E a posição inicial permanece: se a tortura é praticada independentemente das mais elevadas considerações morais, é preferível que ela seja feita à margem da lei ou sob a sua alçada?

Para o autor, só a existência de "mandados de tortura", pela responsabilização de todos os envolvidos –do juiz ao interrogador–, poderá diminuir a prática. Justificar perante um juiz a necessidade de interrogatórios coercivos antes de eles serem praticados não é brincadeira de criança.

A proposta de Dershowitz tem pontos fortes –mas, opinião pessoal, uma falha lógica que derrota o edifício inteiro.

O ponto forte está na afirmação explícita de que a tortura é uma prática moralmente repulsiva. Porém, pretender encerrar o debate em considerações morais não nos leva muito longe: podemos estar todos de acordo sobre o assunto –e alguém, algures, continua a ser torturado.

Outro ponto forte está na preocupação de Dershowitz em diminuir esses abusos, obrigando o poder judicial a "sujar as mãos", o que pode implicar uma maior relutância em permitir tal sujidade.

Infelizmente, o ponto fraco é óbvio: se a tortura, praticada em solo nacional ou internacional, é escondida do poder judicial, não há nenhum motivo para acreditar que "mandados de tortura" terminariam com essa ocultação.

Pelo contrário: a obrigação (e a dificuldade) em produzir um caso sólido para convencer um juiz da necessidade de torturar poderia ser razão adicional para que a lei continuasse a ser contornada.

Em que ficamos?

Sim, condeno a tortura pela sua desumanidade. Mas, pelo menos, tenho a honestidade intelectual de ainda escutar argumentos indigestos. E de confessar, perante a pergunta de Alan Dershowitz ("Que fazer perante uma prática inapagável?"), um desolado "não sei".

O leitor sabe? 

Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

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