terça-feira, 23 de dezembro de 2014

OS JUDEUS EXISTEM?

Será que os judeus existem? Melhor: será que faz sentido falar de judeus no século 21? Sim, certo: quem nasce de mãe judia é considerado membro do clube para todo o sempre. Ou, pelo menos, até se converter a um credo religioso distinto.


Mas, sejamos honestos, Israel foi fundado em 1948. Os critérios sentimentais e nacionalistas do passado são hoje um anacronismo e, pior, uma forma de racismo.

Israel não deveria ser um "Estado judaico" da mesma forma que os Estados Unidos não são o "Estado anglo-saxônico protestante". Confundir matérias religiosas com critérios políticos e republicanos é um fardo que os "israelenses" (e não os "judeus") devem abandonar.

Eis, em resumo, a mensagem de Shlomo Sand na polêmica do momento. O livro intitula-se "How I Stopped Being a Jew" (como deixei de ser judeu), da Verso Books.

O objetivo é exatamente este: explicar ao mundo como o historiador Sand renuncia a essa dúbia identidade, que não tem qualquer relevância nos dias de hoje.

E em que se baseia Shlomo Sand para chegar a essa dramática mas libertadora conclusão?

Na história, claro. Ou, tal como se viu nos livros anteriores ("A Invenção da Terra de Israel", "A Invenção do Povo Judeu"), na história que só existe na cabeça de Shlomo Sand.

No ensaio, duas afirmações são repetidas com agressividade. Primeira: as perseguições que deram origem ao Holocausto terminaram em 1950 (e, convém lembrar, o Holocausto não foi apenas uma tragédia judaica). O rótulo de "judeu" perde força na ausência de inimigos reais.

Segunda: pretender que o Estado de Israel seja definido por critérios de natureza religiosa é condenar 25% da população não judia a uma condição de inferioridade cívica.

Começo pela última afirmação, até porque ela é hoje repetida por qualquer "especialista" na matéria: pretender que Israel seja um "Estado judaico" é uma forma de lesar os interesses dos palestinos.

Com a devia vênia, não é. Garantir a natureza "judaica" do Estado de Israel tem uma relevância prática evidente: sinalizar para a Autoridade Palestina (e para os terroristas do Hamas) que não pode existir nenhuma negociação de paz quando os palestinos exigem o regresso a Israel (e não a um futuro Estado da Palestina) de 5 milhões de "refugiados" palestinos ("refugiados" das guerras de 1948 e 1967 que, na verdade, são filhos dos filhos dos filhos dos originais 900 mil).

Onde Shlomo Sand vê racismo, qualquer historiador sério vê simplesmente sobrevivência demográfica para um país de 8 milhões de habitantes, onde 6 milhões são judeus.

Mais delirante é a afirmação do autor de que o antissemitismo terminou em 1950. Partindo do pressuposto de que o professor Sand não lê a imprensa europeia (onde os ataques a judeus, sinagogas, cemitérios etc. são o prato do dia), que dizer do antissemitismo islâmico que, sobretudo no mundo persa, ganha contornos quase genocidas?

Sem falar do óbvio: as matanças nazistas não foram uma tragédia exclusivamente judaica. Fato. Mas será preciso lembrar ao grande historiador Sand que o programa de extermínio decidido na Conferência de Wannsee, em 1942, tinha como propósito específico uma "solução final para a questão judaica"?

Shlomo Sand pode renunciar, simbolicamente que seja, à sua identidade como judeu.

Nesse sentido, e tal como lembra um verdadeiro historiador como Simon Schama no seu recente "História dos Judeus", ele faz lembrar aqueles judeus dos tempos antigos que, inebriados pela cultura helênica, procuravam "descircuncidar-se" pelo uso de pesos e outros tormentos no órgão respectivo. Só para frequentarem os banhos públicos sem vergonhas anatômicas.

Mas o mais irônico dessa renúncia é que ela também faz lembrar outros antepassados: no caso, os judeus alemães do século 20 que, perfeitamente integrados no país de Hitler, acreditavam que nada de trágico poderia acontecer-lhes. No fim das contas, eles eram mais alemães que os próprios alemães!

Enganaram-se. Aos olhos dos inimigos, há identidades inapagáveis. Se Shlomo Sand caísse nas mãos do terrorismo antissemita, de nada lhe valeria tanta náusea judaica e tão elegante cosmopolitismo.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

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