QUANDO TUDO O QUE SE ESCREVE TIVER SE DESFEITO EM FARRAPOS, QUANDO ATÉ MESMO OS MELHORES TIVEREM SE TORNADO APENAS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA JAMAIS CONSULTADA, AS PALAVRAS DE UM PENSADOR AINDA ESTARÃO VIVAS PARA MOSTRAR, SOBRE RUÍNAS DOS TEMPOS, A PERENIDADE DO ESPÍRITO HUMANO.
segunda-feira, 12 de março de 2012
Em busca do tempo perdido
Em busca do tempo perdido
Pedro Malan, Estadão
A sempre inteligente revista britânica The Economist, que já existia
havia quase 30 anos quando Marcel Proust nasceu, acaba de criar,
exatos 90 anos após a morte do grande escritor, um "índice Proust",
que procura medir o "tempo perdido", ou melhor, a extensão do
retrocesso (em anos) causado pela grave crise econômica, financeira e
fiscal que há quase meia década assola o mundo desenvolvido.
A medida até agora mais simples desse retrocesso já era preocupante:
dos 34 países mais "desenvolvidos", 28 não haviam alcançado, em 2011,
o nível de produto per capita que tinham em 2007. A revista The
Economist utiliza mais seis indicadores, além do produto interno bruto
(PIB): consumo privado, desemprego, salário real, preços de ativos
financeiros, preços de habitação e riqueza familiar. Uma média de
retrocessos - tempo perdido em anos - em cada uma das três categorias
em que estão agrupados esses indicadores produz o "índice Proust".
Alguns dos resultados: para a Grécia o relógio teria sido atrasado 12
anos. Irlanda, Itália, Portugal e Espanha teriam "perdido" sete anos
ou mais. A Inglaterra, oito. Os Estados Unidos, epicentro do abalo
sísmico que afetou a economia mundial, estariam, na média dos
indicadores acima, com um atraso de dez anos. A revista não apresenta
índices de Proust para países "em desenvolvimento". Mas é sabido que,
dentre os 150 membros desse grupo, cerca de 33 teriam, em 2011, renda
per capita inferior à que tinham em 2007.
Isso não significa, de forma alguma, nenhuma projeção para os anos à
frente que seriam necessários para recuperar os anos "perdidos". É
sabido que médias desse tipo podem encobrir tanto (ou mais) do que
revelam. E que alguns dos indicadores do índice acima podem mudar
muito mais rapidamente que outros, como, por exemplo, preços de
ativos, após longos períodos de declínio. O fato é que, em definitivo,
não era uma "marolinha", como se disse por aqui.
Os países de alta renda, cujas dificuldades têm consequências de ordem
sistêmica, em seu conjunto, deverão crescer menos de 2% entre 2007 e
2012, enquanto no mesmo período a China, a Índia e o Brasil deverão
crescer - e por motivos distintos - cerca de, respectivamente, 56%,
43% e 21%. Fica cada vez mais claro que esta crise está levando a uma
mudança estrutural na composição da demanda e da oferta globais. E
exigindo, de todos os países, respostas adequadas em termos de
políticas domésticas - para além da área econômica.
Não é apenas o mundo desenvolvido que precisa lançar-se numa
proustiana busca do tempo perdido para "recuperá-lo" - por meio de uma
melhor memória de seu passado, base para uma visão de seu futuro.
Permito-me ilustrar o ponto acima reproduzindo um texto recente: "Os
principais obstáculos do rápido desenvolvimento econômico são
internos, e não externos. Entre as restrições óbvias estão falhas de
governança, gastos desnecessários com subsídios (...), um histórico
terrível em termos de educação e saúde para a maioria da população,
leis trabalhistas rígidas, infraestrutura inadequada e restrições ao
uso eficiente da terra".
Como diria o grande Ancelmo Gois, "deve ser duro viver em um país
assim". Apesar de soar muito familiar, a observação vem de um livro
recém-lançado, com o título A Índia após a Crise Mundial, de Shankar
Acharya, ex-assessor econômico do chefe de Governo indiano. O que
sugere que, mesmo para um país que deve crescer mais que o dobro do
Brasil entre 2007 e 2012, existe uma enorme necessidade de "buscar o
tempo perdido". Até porque as deficiências mencionadas acima
constituem oportunidades de investimento e apontam para a necessidade
de continuidade no processo de reformas que permitiram o enorme
progresso daquele país.
A grande lição não deveria passar despercebida por nós, brasileiros. E
talvez não esteja. Em meu artigo neste espaço no segundo domingo do
mês passado (Vivendo e aprendendo), mencionei que os leilões de
concessão ao setor privado dos aeroportos de Guarulhos, Viracopos e
Brasília vinham com um atraso de muitos anos, mas representavam,
afinal, uma vitória do pragmatismo sobre a ideologia. Uma busca do
tempo perdido para recuperá-lo - pensando no futuro.
Pois bem, nas últimas semanas tivemos outro exemplo: com 14 anos de
atraso (tempo perdido) os fatos e os argumentos acabaram prevalecendo
sobre a ideologia e o corporativismo. O governo Dilma Rousseff, afinal
convencido de que o regime de previdência dos servidores públicos era
absolutamente insustentável no médio e no longo prazos, decidiu
mobilizar-se para mudá-lo, mostrando um entendimento que faltou ao
governo Lula.
Existem muitos outros avanços possíveis e necessários exatamente agora
que fica cada vez mais claro que o crescimento econômico sustentado a
taxas superiores a 4% ao ano exige uma taxa de investimento privado
mais elevada, especialmente em infraestrutura. Há que ampliar o regime
de concessões (já que o lulopetismo não pode ouvir falar em
privatizações) nessas áreas. E isso é urgente.
A ideia de que o problema fundamental do crescimento brasileiro é
reduzir juros e desvalorizar o câmbio ainda é muito arraigada entre
nós - assim como a suposição equivocada de que o governo pode colocar
as taxas reais de juros e câmbio onde quiser. Menos arraigada entre
nós é a necessidade de entender por que certos países foram e outros
estão sendo bem-sucedidos no presente, como os asiáticos. Estes
construíram um complexo e eficiente sistema educacional e uma
invejável estrutura logística de transportes, cadeias de suprimentos e
mecanismos pragmáticos de cooperação regional, sem perder de vista a
sua integração com o resto do mundo.
É muito importante extrair dessas experiências - nada ideológicas - as
lições corretas para o nosso futuro.