QUANDO TUDO O QUE SE ESCREVE TIVER SE DESFEITO EM FARRAPOS, QUANDO ATÉ MESMO OS MELHORES TIVEREM SE TORNADO APENAS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA JAMAIS CONSULTADA, AS PALAVRAS DE UM PENSADOR AINDA ESTARÃO VIVAS PARA MOSTRAR, SOBRE RUÍNAS DOS TEMPOS, A PERENIDADE DO ESPÍRITO HUMANO.
sábado, 31 de março de 2012
Revoguem a anistia (do mensalão)
Revoguem a anistia (do mensalão)
Guilherme Fiuza, O GLOBO
As comemorações do golpe de 64 ganharam um alento este ano. O patético "parabéns pra você" no 31 de março, data inaugural da ditadura militar, andava quase inaudível na caserna, quando ganhou um reforço de peso. Dessa vez, o Brasil inteiro ouvirá os nostálgicos dos anos de chumbo - graças à ex-guerrilheira Dilma Rousseff.
No final dos anos 70, quando o regime autoritário chegava ao seu último capítulo, o general João Figueiredo assumiu a Presidência da República com um inesquecível brado "democrático": avisou que ia "prender e arrebentar" quem fosse contra a abertura política. Figueiredo fez escola. Na polêmica sobre a Comissão da Verdade, Dilma Rousseff botou para quebrar, em nome da democracia.
A presidente do governo popular mandou amordaçar militares da reserva que criticaram duas de suas ministras. As auxiliares de Dilma haviam defendido a revogação da Lei da Anistia - o pacto nacional para a saída da ditadura. Os militares contrariados publicaram um manifesto de repúdio no site do Clube Militar. Dilma mandou o Exército apagar o texto e enquadrou os militares como insubordinados. Quem for contra a Comissão da Verdade, ela prende e arrebenta (ou pelo menos censura).
Era o que faltava para ressuscitar as almas penadas leais ao golpe de 64. Autoritarismo é vitamina para elas. Mas ser a favor do regime militar também não pode. O governo de esquerda aceita o pensamento de direita, desde que ninguém o manifeste. A democracia popular tem dono: ame-a ou deixe-a.
Foi com esse espírito que um bando de militantes de partidos filiados ao poder central foi para a porta do Clube Militar, no Centro do Rio. Lá dentro ocorria uma homenagem ao movimento de março de 64. Do lado de fora, em defesa dos direitos humanos e da verdade, os manifestantes fecharam a Avenida Rio Branco na marra. Atiraram ovos contra seguranças do prédio, incendiaram cartazes e tentaram agredir militares que saíam do evento, provocando a reação da polícia que tentava protegê-los e transformando a Cinelândia em praça de guerra. Um show de democracia.
A Comissão da Verdade pretende investigar os crimes cometidos pela direita no poder. O país não pode mesmo dormir tranquilo sobre certos disparates, como a versão militar de que Vladimir Herzog se suicidou na cela do DOI-Codi. É um escárnio. O problema dessa revisão é que não se encontrará a verdade no passado sem saber onde ela anda no presente.
Hoje o Brasil é governado pela esquerda. E a esquerda combateu a ditadura, defendendo a democracia, a liberdade e os pobres. Como essa autoridade moral foi usada no poder? De várias formas - algumas delas não contabilizadas. Quando estourou o escândalo do mensalão, Delúbio Soares, então poderoso tesoureiro do PT, negou o flagrante com convicção: "É uma conspiração da direita contra o governo popular." O ex-guerrilheiro José Dirceu, apontado como chefe da quadrilha, caiu em desgraça, mas fez sua sucessora na Casa Civil: a "querida companheira de armas" Dilma Rousseff. Em meio às tramoias, a mística da resistência à ditadura estava intacta.
A virtude de mulher-coragem, ex-refém dos militares, levou Dilma longe. Candidata a presidente, transformou em ministra da Casa Civil a obscura companheira Erenice Guerra, também ungida pela mística da militância de esquerda. Enquanto Erenice caía por tráfico de influência, descobria-se que Dilma se fizera passar pela atriz Norma Bengell numa foto da Passeata dos Cem Mil, em 1968, divulgada por sua campanha. O que seria dela sem a ditadura?
Dilma não teria sido eleita - nem qualquer outro afilhado revolucionário de Lula - se os companheiros do mensalão tivessem sido punidos. Ali estava, para quem quisesse ver, a conversão de um partido e de uma causa "libertária" em sistema de perpetuação no poder, a partir de um planejado assalto ao Estado.
Transcorridos quase sete anos, essa fraude política sem precedentes permanece misteriosamente no colo do Supremo Tribunal Federal, prestes a sumir do mapa pela extinção do processo.
Aí a Justiça brasileira terá legalizado as palavras do general Lula: "O mensalão não existiu." Haverá uma Comissão da Verdade para desenterrar o crime dos heróis da resistência?
Enquanto o mito não se desmancha, as vítimas profissionais da ditadura vão fazendo o seu pé de meia. Na série de revoluções ministeriais, os comunistas se destacaram partilhando o dinheiro do Esporte entre as ONGs amigas do PCdoB. A imprensa burguesa bombardeou essa distribuição de renda e o ministro caiu, mas a companheira Dilma manteve o cargo com a agremiação. Em comunismo que está ganhando não se mexe (ainda mais em véspera de Copa do Mundo).
Assim como o ex-guerrilheiro Fernando Pimentel, que uniu forças com a amiga Dilma e se tornou um próspero consultor, muitos companheiros viverão em paz sob a anistia do mensalão. Essa, ninguém revoga.