domingo, 23 de abril de 2017

O DESASTRE DE NÃO IMAGINAR O DESASTRE

O Facebook é o faroeste. Não falo das mensagens ou dos comentários que exibem uma violência e uma selvajaria inauditas. Isso, digamos, é quase brincadeira de crianças. Falo do resto: espancamentos, violações, suicídios, homicídios —tudo transmitido ao vivo para milhares de seres humanos.


O último caso foi protagonizado por Steve Stephens. Escrevo "protagonizado" porque existe uma dimensão quase cinematográfica no horror. Steve, como um vilão de filme, aproximou-se de Robert Godwin, 74, e abateu-o depois de uns segundos de suspense. Depois, para cumprir o roteiro, filmou-se em meditações profundas sobre a vida.

Sabemos agora que, perseguido pela polícia, o criminoso suicidou-se. É incompreensível que não tenha filmado o último ato da sua narrativa. Acredito que seria um sucesso de bilheteria.

Perante esta sombria realidade, a pergunta é básica: como foi que Mark Zuckerberg e sua tribo não previram, sequer imaginaram, que o Facebook seria "sequestrado" por psicopatas vários para promoverem, como estrelas de Hollywood, os seus atos macabros?

A pergunta é formulada por Steve Coll na "New Yorker" mas o autor não consegue encontrar uma resposta. Todos os dias, o Facebook tem 1,2 bilhões de utilizadores. Mark Zuckerberg pode prometer maior vigilância. Mas haverá sempre alguém que terá no Facebook Live o seu palco, ou o seu açougue.

O problema, em suma, está na existência do próprio Facebook Live, uma evidência que nunca passou pela cabeça do adolescente Zuckerberg.

E não passou pela cabeça por razões que um filósofo inglês explica muito bem. O nome é Roger Scruton e o livro —pessoalmente, o melhor livro dele— intitula-se "As vantagens do pessimismo e o perigo da falsa esperança" (É Realizações, 208 págs.).

O objetivo de Scruton é analisar a mente otimista. Cautela: Scruton nada tem contra o otimismo. Sem um mínimo de esperança —na vida, nos outros, em nós— a existência seria um vale de lágrimas insuportável.

O perigo, para Scruton, está no "otimismo inescrupuloso" que se baseia em várias falácias intelectuais. E a primeira delas, que importa relembrar agora, é designada por "the best case fallacy", algo que podemos traduzir livremente por "falácia do melhor resultado".

Para o "otimista inescrupuloso", as suas escolhas em condições de incerteza nunca são escolhas de resultado incerto. Pelo contrário: para o "otimista inescrupuloso", só existe um resultado possível - o melhor, o ideal, o perfeito.

O "otimista inescrupuloso" é muito parecido com alguém viciado no jogo. E existe uma ideia "romântica", escreve Scruton, de que o jogador é alguém que assume o risco e, apesar disso, aposta na mesma.

Antes fosse. O viciado não acomoda o risco no seu cálculo; ele entra no jogo com a certeza de que vai ganhar. Perder não é um resultado "natural"; é um surpresa cósmica que nunca lhe ocorreu "a priori".

Foi esse tipo de mentalidade que presidiu aos maiores horrores do século 20. É indiferente falarmos de Lênin, Stálin, Hitler ou Mao. Todos eles lançaram-se no abismo da utopia porque, logicamente, nunca imaginaram que o abismo seria mesmo um abismo. Nas suas cabeças estreitas e criminosas, o resultado final seria perfeito. Melhor ainda: só poderia ser perfeito.

Dizer que não foi perfeito é um arrepiante eufemismo. Mas enganam-se os que pensam que o "otimismo inescrupuloso" e a falácia do melhor resultado ficaram sepultadas no século 20. Hoje, em diferentes latitudes, "otimistas inescrupulosos" continuam a resistir a qualquer "imaginação do desastre", para usar a famosa expressão do escritor Henry James.

Mark Zuckerberg é apenas um deles: basta escutá-lo ou lê-lo para vermos como o mundo de Zuckerberg é composto por fadas e duendes, em danças alegres, sob as cores do arco-íris. Nesse mundo, não há espaço para a natureza humana tal como ela é: generosa e criativa, sim, mas também narcísica, cruel, patológica. Para usarmos a palavra proibida da pós-modernidade, no mundo de Zuckerberg não há espaço para o Mal.

Mal? Na mesma semana em que o homicida de Cleveland deslumbrava o auditório, Zuckerberg anunciava que o Facebook terá direito a "realidade aumentada". Em breve, qualquer um poderá adicionar efeitos especiais às suas imagens. Como nos filmes de Hollywood.

De fato, é só mesmo o que faltava: tornar o sangue real das vítimas mais vermelho e os gritos mais musicais Por: João pereira Coutinho  Publicado originalmente na Folha de SP

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