segunda-feira, 24 de abril de 2017

PENSAMENTO POLITICAMENTE CORRETO É A RELIGIÃO DOS ÓRFÃOS DE MOSCOU

As crianças estão sensíveis. Todos sabemos disso. As semanas passam e as notícias repetem-se: algures, numa universidade qualquer, um pequeno grupo de selvagens impediu um debate, uma palestra, uma mera conversa porque o tema é "sensível" e pode incomodar os estudantes.


As nossas universidades não são universidades –centros de aprendizagem, ou seja, de alguma violência intelectual para abrir cabeças usualmente fechadas. São estufas de sensibilidade e ressentimento. Como explicar isso?

Jonathan Haidt, professor da Universidade de Nova York, concedeu uma entrevista ao "The Wall Street Journal" que deveria ser distribuída por aí. Confrontado com o "iliberalismo dos campus", o professor Haidt defende os estudantes. A maioria é pacífica, diz ele. A maioria quer aprender. A maioria não tem problemas com ideias heterodoxas.

O problema, acrescenta, é a minoria: uma minoria intolerante e agressiva que –atenção, atenção– se comporta como as antigas seitas religiosas.
Angelo Abu/Folhapress 


Para esses crentes, as universidades devem ser "espaços sagrados" onde as "vítimas", ou as supostas "vítimas" (negros, gays, mulheres etc.), são deuses reverenciais. Quando alguém ameaça alterar a ordem divina, chovem críticas, ameaças, vidros quebrados. E coquetéis Molotov. Como se chegou até aqui?

Jonathan Haidt tem razão quando fala do gradual desaparecimento de vozes conservadoras na academia, um eufemismo para designar a falta de pluralismo no ensino das humanidades. E tem muitíssima razão quando afirma que a esquerda radical é onipresente, defendendo um conceito de "igualdade" que é uma paródia do conceito original.

"Igualdade", hoje, não significa "igualdade de oportunidades" mas "igualdade de resultados". Se esses resultados não aparecem, a culpa é de um "racismo sistêmico" (ou, melhor ainda, de um "preconceito inconsciente") que deve ser combatido por palavras, atos –e silêncios.

"Preconceito inconsciente": qual a diferença entre essa aberração e as possessões demoníacas que eram curadas pela força das chamas? Não responda. A pergunta é retórica.

Uma pergunta, porém, que não é retórica é tentar saber como foi que a esquerda radical se tornou tão "religiosa", no sentido bastardo da palavra.

Jonathan Haidt não responde. Com a devida vênia, respondo eu: porque os extremismos políticos sempre foram religiosos. O escritor francês Raymond Aron, em livro que a Três Estrelas já publicou ("O Ópio dos Intelectuais"), dedicou ao tema algumas linhas sublimes.

Defendia Aron que os fenômenos totalitários do século 20, em especial o comunismo e o nazismo, eram "religiões seculares". Elas nasceram com o declínio e a destruição da fé tradicional, procurando mimetizar alguns dos seus traços fundamentais.

Ambas são ideologias que prometem um "reino de salvação" –seja o reino do proletariado ou o reino da raça ariana. E ambas congregam os "fiéis" para espectáculos públicos de adoração carismática.

Todos sabemos como as "religiões seculares" terminaram: não com a salvação terrena, mas com cadáveres terrenos. O nazismo consumiu-se nas chamas de 1945. O comunismo sobreviveu a 1945 e só foi esmagado pelo Muro em 1989. Cuba ou a Coreia do Norte são apenas piadas de mau gosto.

Só que os homens, "animais religiosos" por definição, não aguentam o vazio espiritual que vem com a queda das utopias. E não é por acaso que o chamado "pensamento politicamente correto", na sua versão atual, se tenha espalhado pela "intelligentsia" acadêmica ou midiática nos últimos 25 anos.

Os órfãos de Moscou não sobrevivem sem uma fé. E uma fé não sobrevive sem santos e pecadores. Os santos são as minorias várias que ocupam hoje o lugar do antigo proletariado. Os pecadores são todos aqueles que sofrem de "preconceito inconsciente", uma nova versão da "falsa consciência" que Marx e Lênin deixaram aos seus herdeiros.

Muitas universidades, sobretudo no mundo anglo-saxônico (as restantes são apenas cópias do produto original), tornaram-se o último bastião dos derrotados. Incapazes de implantar "cá fora" os seus projetos de dominação social e econômica, resta aos intelectuais viciados no ópio das ideologias manipular o que se passa "lá dentro": jovens com cabeças simplórias que são apenas marionetes de uma história que os transcende.
Por: João pereira Coutinho  Publicado originalmente na Folha de SP.

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