segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A SEGUNDA MORTE DE ZIDAN SAIF

O caixão de Zidan Saif desceu à sepultura, no povoado de Yanuh, dez dias atrás. Reuven Rivlin, presidente de Israel, participou da cerimônia, honrando a memória do policial como "um dos nobres filhos do Estado". Saif, que deixou a esposa e uma filha de quatro meses, foi o primeiro a entrar na sinagoga de Jerusalém atacada por terroristas palestinos. Alvejado por um tiro na cabeça, morreu horas depois. Ele não era judeu, mas druso, de uma minoria dentro da minoria árabe que perfaz cerca de um quinto dos cidadãos de Israel. Nos próximos dias, o Knesset (Parlamento israelense) deliberará sobre um projeto de lei que, se aprovado, representará a segunda morte do "nobre filho do Estado".


O projeto enviado pelo governo define Israel como o "Estado-Nação do povo judeu". Israel é o Estado Judeu, dos pontos de vista histórico e demográfico. Contudo, do ponto de vista jurídico, Israel assenta-se sobre o princípio da igualdade de direitos políticos, sociais, religiosos e culturais de todos os cidadãos, judeus ou não. A proposta, patrocinada pelo primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, almeja alinhar a lei à história, removendo os alicerces da igualdade de direitos. No meio de um texto aparentemente inofensivo, uma cláusula determina que, diante de sentenças legais dúbias, os tribunais devem usar a nova lei do Estado Judeu como "fonte de inspiração". Atrás disso, está uma antiga ambição maximalista da extrema-direita israelense: a limpeza étnica.

"Os pais fundadores de Israel vislumbraram um Estado cujas naturezas judaica e democrática seriam como uma só", disse Rivlin, criticando o projeto de lei. A harmonia sugerida por Rivlin é, de fato, um delicado equilíbrio assimétrico: na Declaração de Independência que funciona como Constituição de Israel, o polo democrático pesa mais que o judaico. A lei do Estado Judeu pretende deslocar o equilíbrio para o polo oposto, reduzindo a igualdade de direitos ao estatuto de contingência. Nunca antes um governo ousara desafiar a linha vermelha.

O sinal de alerta soou no interior do próprio gabinete de governo. Tzipi Livni, ministra da Justiça, disse que o projeto "joga no lixo a Declaração de Independência". Yaakov Peri, ministro da Ciência, registrou que a lei do Estado Judeu o faz pensar "nos países que adotam a lei da Sharia". Romper a linha vermelha significa abrir as comportas jurídicas para a inundação da democracia israelense. No fluxo de água suja, já flutuam um projeto de lei de revogação de mandatos de parlamentares retoricamente solidários à luta armada contra Israel e um de evisceração da cidadania de acusados de terrorismo, que abrange os familiares do acusado e suspeitos de colaboração com o crime. No fundo, Netanyahu tenta traçar uma fronteira dentro de Israel, separando os cidadãos com cidadania plena (judeus) dos cidadãos com cidadania precária (árabes).

É uma encruzilhada histórica, pois as raízes da legitimidade de Israel confundem-se com a Declaração de Independência. O antissemitismo contemporâneo, que se apresenta revestido com a película do antissionismo, acusa Israel de ser um "Estado de apartheid". A negação permanente dos direitos nacionais dos palestinos configuraria um "apartheid" –mas esse risco ainda pode ser evitado por meio da conclusão de um acordo de paz que divida a Terra Santa em dois Estados. Por outro lado, a destruição do princípio da igualdade de direitos entre os cidadãos israelenses representaria uma mancha indelével: a refundação de Israel como Estado étnico e religioso.

Paradoxalmente, a legitimidade do Estado Judeu repousa sobre a presença da minoria de cidadãos árabes. O ministro da Fazenda, Yair Lapid, entendeu isso, ao formular a pergunta certa: "O que diremos agora à família de Zidan Saif? Que aprovamos uma lei que os converte em cidadãos de segunda classe?".
Por: Demétrio Magnoli   Publicado na Folha de SP

domingo, 4 de janeiro de 2015

IDADE DA PEDRA

É de Zaki Yamani, ex-ministro do Petróleo da Arábia Saudita, uma sábia sentença: "A Idade da Pedra não terminou por falta de pedras –e a Idade do Petróleo terminará muito antes do fim do petróleo". As reservas de hidrocarbonetos não são um valor constante: crescem com o preço do barril. A Idade do Petróleo será encerrada pela substituição do combustível por outras fontes de energia, sob o influxo da elevação dos preços do barril. A estratégia saudita é retardar a diversificação energética, evitando escaladas duradouras de preços. O petróleo barato tem consequências políticas tão relevantes quanto o petróleo caro –inclusive para nós.


Na Opep, os sauditas rejeitaram a proposta de redução da produção. Sob o pano de fundo do boom na produção americana em bacias de xisto, da desaceleração chinesa e da estagnação europeia, a paralisia da Opep reforça a tendência de um ciclo de preços baixos. Descontada a inflação, o barril a US$ 70 de hoje repete preços vistos pela última vez, brevemente, em julho de 2009. Antes, valores inferiores ao atual predominaram durante duas décadas, entre 1984 e 2004. Se a nova tendência de baixa persistir, as placas tectônicas da geopolítica global experimentarão profundos deslocamentos.

A natureza estratégica e as características econômicas da produção de petróleo favorecem a estatização, completa ou parcial, da indústria petrolífera. O petróleo caro é, por isso, uma fonte de poder de regimes nacionalistas e/ou autoritários. Nos ciclos longos de alta dos preços (1974-83 e 2005-14), as rendas abundantes do petróleo estabilizam as elites dirigentes dos países exportadores. O "putinismo" na Rússia e o chavismo na Venezuela ilustram o fenômeno. A inversão do ciclo rompe a precária coesão social, desafiando o edifício da ordem.

No Brasil, a alta dos preços evidenciou a atração exercida pelo petróleo sobre o lulopetismo. A conversão da Petrobras em empresa global foi interpretada como oportunidade de controle de chaves mágicas de poder, nos tabuleiros da política e das finanças. Daí, a troca do regime de concessão pelo de partilha, a capitalização bilionária da Petrobras com recursos públicos e o loteamento partidário de seus cargos de direção. A queda dos preços escancara as dimensões do estrago, cujos sintomas já transpareciam nos espelhos da dívida e do valor acionário da estatal, e ameaça a remuneração dos investimentos no pré-sal.

O fetichismo do petróleo tem amplas implicações. O cosmopolitismo define riqueza como criatividade social, um bem intangível que depende dos intercâmbios com o mundo exterior. O nacionalismo, pelo contrário, identifica a riqueza aos recursos naturais, ou seja, a substâncias físicas confinadas em territórios circundados por fronteiras. Na narrativa nacionalista, o governo exerce a função de defender a riqueza nacional (o petróleo, os minérios, o ouro simbolizado pelo amarelo de nossa bandeira) contra a ganância do "inimigo externo". Os discursos eleitorais do lulopetismo sobre a pátria e o pré-sal inscrevem-se nesse padrão.

Sob o feitiço do petróleo, o governo formulou uma estratégia nacional de defesa que atribui à Marinha a missão de resguardar a "Amazônia Azul", como se a guerra no mar pudesse substituir o conceito de movimento pela proteção estática de uma linha imaginária traçada na água. Hipnotizados pelo pré-sal, abandonamos o programa de biocombustíveis, junto com sua extensa cadeia de inovações. Ofuscados pelo brilho do tesouro enterrado, penduramos uma urgente revolução educacional no fio ainda não tecido dos royalties do petróleo.

O barril a US$ 70 confunde as cartas do baralho russo na Ucrânia, reativa as negociações nucleares com o Irã e anuncia violências na Venezuela. Deveria, ainda, servir-nos de alerta: já passa da hora de encerrar nossa Idade da Pedra política. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

MAGNÉSIO NO TRATAMENTO DA ARRITMÍA CARDÍACA, HIPERTENÇÃO E DIABETES.

PÁGINA VIRADA

Eric Fair, linguista especializado em árabe, trabalhou como interrogador na prisão de Abu Ghraib, convertendo-se em torturador. Depois, atormentado, passou a escrever sobre a sua história. "Eu fracassei em desobedecer uma ordem indigna, fracassei em proteger um prisioneiro sob minha custódia e fracassei em manter os padrões de decência humana. Comprometi meus valores. Nunca vou me perdoar." A memória, para Fair, é um obstáculo ao perdão. Nos EUA e no Brasil, o Estado almeja fazer da memória o instrumento do perdão. É o caminho seguro rumo ao esquecimento.


O Senado americano publicou extratos de um relatório devastador sobre a política de tortura na "guerra ao terror". Hoje, admite-se oficialmente que o governo de George W. Bush violou leis nacionais e tratados internacionais, erguendo uma rede de centros secretos de tortura em diversos países. Barack Obama declarou que a publicação deveria "ajudar-nos a relegar essas técnicas ao passado". É um gesto de saudação aos valores, antes de enterrá-los na cova da Razão de Estado.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) publicou um relatório sem revelações dramáticas, mas com uma lista dos responsáveis pelas torturas e "desaparecimentos" durante a ditadura militar. A CNV acatou parte da sua missão, contando uma história enviesada, que oculta as vítimas dos grupos de resistência armada, mas insurgiu-se contra a outra parte, recomendando a responsabilização criminal dos torturadores. Em nome da Razão de Estado, o governo brasileiro recepciona a engenharia política da memória e rejeita a exigência moral de produção de justiça.

Os EUA combatiam um inimigo externo: uma organização terrorista amparada pelo Estado afegão. Mesmo assim, na prisão, não existem "dois lados", mas prisioneiros indefesos. "Um homem sem rosto olha para mim do canto da cela. Ele implora por ajuda, mas temo me mover. Ele começa a chorar e grita –mas, quando acordo, descubro que os gritos são meus." Nos pesadelos de Eric Fair, a tortura não tem uma desculpa política. O relatório do Senado evita, decentemente, usar o álibi do "outro lado" para relativizar os crimes de Estado.

No Brasil, não houve guerra e inexistia a figura do inimigo externo. Por aqui, um regime ilegal aterrorizava opositores políticos, desarmados ou armados, por meio do aparelho clandestino de torturas. O propósito não era obter informações sobre ações de terror, mas aterrorizar e calar por meio do exemplo. A expressão "dois lados" é a senha invariável utilizada pelos defensores do "perdão" e do "esquecimento" –isto é, de fato, da cristalização da impunidade. Eles não são capazes de enxergar seu próprio rosto no homem sem face que grita num canto.

"Anistia é esquecimento, virada de página, perdão para os dois lados", proclamou Marco Aurélio Mello. Segundo o ministro do STF, a Lei de Anistia não é uma lei qualquer, passível de revisão constitucional ou anulação parlamentar, mas um pilar sagrado do Estado brasileiro. Na sua fórmula, o "perdão" não é um fruto da memória, mas do "esquecimento". De certo modo, ele tem razão: não existe memória sem sentença –e o "perdão" equivale à absolvição.

Um mês atrás, Eric Fair exibiu fotos das torturas em Abu Ghraib a seus alunos universitários, que reagiram com "gestos vagos" ou "apenas bocejaram". A foto de Vladimir Herzog enforcado em sua cela não provoca mais que isso entre a maioria dos jovens brasileiros. A verdade daquelas imagens só pode se transformar em memória pela mediação de sentenças judiciais. "A menos que esse relatório conduza a processos, a tortura continuará a ser uma opção política para futuros presidentes", prognosticou Kenneth Roth, da Human Rights Watch. O Brasil tortura tanto nas suas prisões porque escolheu o "esquecimento".

"Eu não mereço perdão", escreveu Eric Fair. Bush e Médici, menos ainda. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

sábado, 3 de janeiro de 2015

O GAMBITO DE BRANDT

Raúl Castro celebra a libertação dos espiões cubanos e os arautos do castrismo, dentro e fora da Ilha, descrevem as notícias históricas como um triunfo do regime de Havana. Até mesmo a blogueira Yoani Sánchez, uma aguda analista, flertou com a narrativa oficial, ainda que para deplorar o desenlace. Contudo, em alguns dias, os agentes de inteligência cubanos perderão a aura de heróis nacionais, desaparecendo na obscuridade, e a fumaça da propaganda se dissipará. O reatamento de relações entre os EUA e Cuba começa a remover o principal fator de legitimação política da ditadura castrista. Barack Obama aplica à Ilha o gambito de Brandt, negando a um regime totalitário o privilégio de identificar a pátria à tirania.


No xadrez, gambito é a oferta de uma peça em troca de uma vantagem posicional. O primeiro-ministro alemão Willy Brandt anunciou, em 1969, a Ostpolitik ("política do leste"), que conduziria ao Tratado Básico de 1972 entre a Alemanha Ocidental (RFA) e a Alemanha Oriental (RDA). No gambito, Brandt renunciou à abordagem conflitiva, propiciando a normalização de relações. Foi acusado de traição, pois o reconhecimento da RDA parecia representar o congelamento da divisão alemã. De fato, porém, os intercâmbios entre as duas Alemanhas expuseram o fracasso do regime comunista ao escrutínio dos cidadãos da RDA. As raízes do levante cívico de 1989, concluído pela queda do Muro de Berlim, encontram-se na aposta da Ostpolitik.

A reedição do gambito não é uma operação maquiavélica, mas um gesto inscrito na moldura das circunstâncias. Pesaram sobre Obama a saúde debilitada de Alan Gross, o técnico americano preso na Ilha, e a decisão latino-americana de convidar Cuba para a Cúpula das Américas. Washington levou em conta a embrionária abertura econômica de Castro e o papel desempenhado pelos cubanos no combate à epidemia do ebola. Entretanto, o cálculo geopolítico está expresso no discurso presidencial: "os países têm mais chances de experimentar transformações duradouras se suas populações não são submetidas ao caos".

Castro optaria pelo conflito eterno, se pudesse. Mas a crise na Venezuela, que se acerca do colapso, converteu-se em elemento decisivo da equação cubana desde a deflagração das reformas de mercado –e acabou empurrando o regime à mesa de negociações com Washington. O relaxamento do embargo confere um novo fôlego à decrépita economia cubana. Em contrapartida, os senhores da Ilha terão que encarar a perda do inimigo indispensável. O espectro do poderoso inimigo externo esculpiu a mentalidade de segurança nacional que paralisa a política dentro de Cuba. A identificação da pátria ao castrismo e da divergência à traição repousa sobre o perene "estado de guerra". Se ele é retirado de cena, a ditadura se vê despida de seu ilusório conteúdo nacional, reduzindo-se a uma indesculpável tirania.

Cuba não é um país, mas uma narrativa histórica. Na Europa, a faca da Revolução Russa cortou a esquerda em duas partes e a longa noite do stalinismo ensinou aos social-democratas o valor da liberdade política. Na América Latina, a narrativa da resistência castrista ao cerco americano funcionou como pedagogia negativa, reforçando as inclinações autoritárias de uma esquerda já emplastrada pelo nacionalismo. Do outro lado do Atlântico, o totalitarismo cristaliza-se na figura repulsiva de Stalin; por aqui, esconde-se sob a fantasia da rebeldia e veste-se com um camiseta de Che Guevara. O gambito aplicado por Obama tem o potencial de inundar a caverna ideológica na qual, há meio século, abriga-se a esquerda latino-americana.

Conheci Havana no tenebroso "período especial", em 1994. Logo, o Pluto e o Mickey passearão no Malecón. Perderemos as imperturbadas paisagens de uma cidade petrificada. Em troca, um sopro de brisa fresca atravessará a América Latina 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

RIQUINHOS CONTRA O CAPITALISMO

Estamos às portas de uma das datas mais importantes para o capitalismo: o Natal. Por isso, vale a pena pensar num tema tão íntimo ao espírito natalino: dinheiro.


Falar mal do capitalismo (ou da sociedade de mercado) é uma coisa que todo mundo "de bem" deve fazer uma vez ou outra para atestar sua sanidade mental e sua elegância social. Jantar inteligente, apesar de custar grana, é regado a críticas ao capitalismo feitas por homens e mulheres "que se acham".

É como falar mal do cristianismo: todo o mundo acha legal falar mal da igreja católica.

Não tenho dúvidas com relação aos problemas do mundo da mercadoria: provavelmente, em algum instante no futuro, vai nos destruir.

Não por conta exatamente da mercadoria (aí erram todos os marxistas), mas porque nosso desejo é insustentável e, com as revoluções técnicas e científicas, associadas à democracia de mercado (acessibilidade ampliada aos bens e serviços), nosso desejo é o senhor absoluto do mundo.

O que vai nos destruir é a acessibilidade à felicidade material e ao acúmulo de direitos que tornam a vida muito cara.

Mas existe um fenômeno que acho especialmente bonitinho: ricos contra o capitalismo. Ou ricos (na sua maioria mais jovens) contra ganhar dinheiro.

Ou ricos (de novo, na sua maioria, mais jovens) que querem se dedicar a atividades contra os abusos da publicidade e do capital. Enfim, riquinhos contra o dinheiro.

Muita gente já tentou entender de onde vem essa "pulsão" (ricos têm "pulsão", pobres têm "instintos" –imagino o número de inteligentinhos brincando com seus livros de psicanálise, achando que essa ironia tem algum caráter de preconceito).

Por que alguns ricos se dedicam a combater as ferramentas do capitalismo, ou as ferramentas da livre competição, ou se dedicam à arte com crítica social?

A resposta está além e aquém do que pensa nossa vã inteligência viciada em construir um mundo melhor. A razão para alguns ricos (principalmente mais jovens) se dedicarem a atividades "santas" é apenas uma: eles já têm muito dinheiro e morrem de tédio por isso. Alguns dizem ser consciência culpada. Eu, que sou um cético, acho que o tédio vem antes.

No fundo, sou mais materialista histórico do que os marxistas de butique que assolam nossos centros culturais e revistas inteligentinhas pagas por bancos.

Sim, simples assim. De repente, em meio às suas cruzadas pelo "bem", vão conhecer desertos em Marte (opa! Desculpe, errei o exemplo por alguns séculos no futuro). Mesmo a busca do "bem" pode dar tédio em quem sabe que tudo está ao seu alcance.

Acho incrível que mesmo marxistas não consigam ver os indícios óbvios deixados pelo seu guru: quando você tem a vida fácil, você fica bobo. Quando você tem condições de se achar uma pessoa linda porque nunca viveu contradições materiais concretas (do tipo: falta de comida, falta de luz e água, falta de escola, falta de futuro imediato), acaba acreditando nas suas próprias boas intenções.

O filósofo Adam Smith, um dos fundadores da sociedade de mercado, já dizia no século 18 que a riqueza podia deixar as pessoas mimadas. Isso hoje é fato.

Claro, combater as ferramentas do capitalismo ajuda também a menos gente ficar rica como você, e aí você fica ainda mais rico. A velha ganância tentando impedir a competição, essa deusa cruel que ama o mérito, mesmo sem honra.

Esse mesmo fenômeno de riquinhos aparece na histórica dificuldade de partidos como o PSDB de fazer uma oposição política consistente (espero que isso mude).

A elite costuma achar que brigar é coisa de gente sem berço. De certa forma, ela tem razão. Briga-se apenas quando se precisa de algo, e riquinhos não precisam de nada.

Aos olhos riquinhos, oposição sistemática parece coisa de cachorro babão. A elegância sempre cobra um preço alto em se tratando das relações com o mundo real: a realidade é suja demais para gente chique. E o "bem" é limpinho.

O tédio do dinheiro herdado deveria ser mais levado a sério quando se compara comportamentos entre os mais jovens. A certeza da grana ganha enfraquece a alma. 
Por: Luiz Felipe Pondé Publicado na Folha de SP

A ESQUERDA PALACIANA

O Brasil não é para principiantes. Em tese, o “giro ortodoxo” do governo Dilma, personificado em Joaquim Levy, provocaria a configuração de uma oposição pela esquerda


“Vamos fazer a disputa dentro do governo.” O objetivo, definido por Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares (CMP), é uma sentença opaca para os “de fora”, mas uma senha cristalina para os “de dentro”.

A “frente de esquerda” articulada duas semanas atrás numa reunião no Largo São Francisco, em São Paulo, é o veículo para a soldagem de partidos, centrais sindicais e movimentos sociais ao governo de Dilma Rousseff. É, ainda, de um modo menos direto, uma ferramenta da candidatura presidencial de Lula da Silva em 2018.

O conclave contou com representantes do PT e do PCdoB, partidos governistas, mas também do PSOL e do PSTU. No Largo São Francisco, os dois partidos aceitaram a condição de sublegendas informais do PT. Lá estava a CUT, que obedece ao comando lulista, mas também a Intersindical, um pequeno aparelho do PSTU.

A presença do MST, da Via Campesina e da Consulta Popular, três nomes para a mesma substância, inscreve-se no campo do óbvio. Mais relevante foi a participação do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e do Levante Popular da Juventude, que emergiram com ambições de autonomia em relação ao lulopetismo.

A Arca de Noé da esquerda adotou uma agenda de manifestações cortada na alfaiataria do PT, cujos destaques são a reivindicação de uma Constituinte exclusiva para a reforma política e a “defesa da Petrobras”, uma bandeira que deve ser traduzida como a proteção das altas autoridades do governo diante das investigações da Lava-Jato.

Curiosamente, enquanto acusam Dilma de rendição às propostas de política econômica de Aécio Neves, as correntes reunidas no Largo São Francisco desenharam o esboço de um Partido de Esquerda do Planalto.

Duas mãos moveram o berço. A mão visível, de Guilherme Boulos, do MTST, funcionou como álibi para a adesão das correntes que pescam em águas situadas à esquerda do PT. A mão invisível, de Lula, apontou o rumo político da articulação, ancorando-a num porto encravado em sua esfera de influência.

O espantalho convocado como pretexto para a adesão geral são as manifestações pela “volta dos militares”, que atiçam apenas o interesse de um setor ridiculamente marginal da sociedade. O jogo da verossimilhança solicitou a marcação de atos públicos pela cassação de Jair Bolsonaro, um oportuno inimigo do peito, e de repúdio ao golpe militar de 1964, que completa redondos 51 anos.

O Brasil não é para principiantes. Em tese, o “giro ortodoxo” do governo Dilma, personificado em Joaquim Levy, provocaria a configuração de uma oposição pela esquerda. Contudo, desde a ascensão do lulopetismo ao poder, a esquerda tornou-se caudatária do Palácio.

A santa indignação dos “amigos do povo” contra a nomeação de Levy não se desenvolve na forma de uma ruptura política com o governo, mas em pedidos explícitos de compensações. Como esclareceu Lindbergh Farias, um petista que nunca viu motivos para camuflar o oportunismo, “fazer a disputa dentro do governo” significa emplacar “companheiros” em postos relevantes no aparelho de Estado — ou, no caso dos movimentos sociais, obter financiamentos da administração pública.

Kátia Abreu, Gilberto Kassab e Guilherme Afif são novas demonstrações da tese tantas vezes comprovada de que as convicções doutrinárias de nossos liberais conservadores não resistem à oferta de um feudo no condomínio do poder. Na era do lulopetismo, a constatação deve ser estendida a quase toda a esquerda.

O segundo mandato de Dilma, iniciado sob os signos do fracasso e da crise, descortina a farsa em toda a sua amplitude: as lideranças reunidas no Largo São Francisco cumprirão dupla jornada, revezando-se entre manifestações encomendadas e conchavos de gabinete com emissários de Lula.

A “frente de esquerda” certamente atende aos interesses de seus participantes, mas, sobretudo, aos de Lula. O ex-presidente, cuja candidatura a um terceiro mandato surgiu ainda durante a campanha reeleitoral de Dilma, planeja jogar em dois times. Em princípio, alinha-se com o governo do qual é fiador.

Nas semanas difíceis do segundo turno, diante do risco real de derrota, desdobrou-se em conversas com o alto empresariado para oferecer garantias de um retorno à racionalidade econômica. Por outro lado, desde a proclamação do resultado, manobra para desvincular a sua imagem dos efeitos da reorientação da política econômica. Na hipótese provável de erosão acelerada da popularidade do governo, Lula calibrará seu discurso no registro da “crítica pela esquerda”.

Aécio Neves declarou, há pouco, que Levy enfrentará mais dificuldades com o PT que com a oposição. O PSDB, sugere a declaração, estaria pronto a respaldar as “medidas impopulares” que derivam, em linha direta, de tantos anos de uma irracionalidade econômica fundada no cálculo político.

Do ponto de vista de Lula, esse é o cenário ideal para a construção de uma candidatura aureolada pela promessa de retorno aos “bons tempos” de crescimento da renda e do consumo. O ministro da Fazenda faria o “trabalho sujo” do ajuste fiscal, com o apoio tácito da oposição e sob o bombardeio retórico da “frente de esquerda”.

Na sequência, durante a etapa derradeira do governo agonizante de Dilma, Lula ergueria a bandeira dos interesses do “povo”, culpando a “elite” pelos sofrimentos impostos por um “banqueiro”. O longo ato de prestidigitação precisa apenas da colaboração de uma oposição incapaz de fazer política.

Os “amigos do povo” coligados na “frente de esquerda” conhecem perfeitamente a regra do jogo. Todos eles, da esquerda do PT ao PSOL, passando pela CUT e pelo MTST, sabem que operam como marionetes no teatro lulista — e que seus gritos indignados contra um golpe militar tão antigo ou um Bolsonaro tão insignificante são gestos automáticos num espetáculo farsesco. Mas isso já não importa: eles se acostumaram com a subserviência, o preço justo que pagam pela sobrevivência

Demétrio Magnoli é sociólogo  Publicado em O Globo

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

FUTURO PENHORADO

O desejo incita à ação; a percepção do tempo incita o conflito entre desejos. Desfrutar o momento ou cuidar do amanhã? São perguntas das quais não se escapa. Mesmo que deixemos de fazê-las elas serão respondidas por nossas ações.


O que vale para o indivíduo vale também para as escolhas coletivas. O embate entre os apelos do presente e o futuro sonhado é um traço inalienável da condição humana. No conto "O Empréstimo", Machado de Assis retrata os percalços de um homem com "a vocação da riqueza, mas sem a vocação do trabalho". A resultante desses impulsos discrepantes era uma só: dívidas.

O Brasil parece abrigar condição semelhante. Temos a vocação do crescimento, mas sem a vocação da poupança. E a resultante dessa inconsistência, quando não é inflação (como na mobilização de poupança forçada de JK) ou crise do balanço de pagamentos (como no abuso da poupança externa sob Geisel), tem sido uma só: juros cronicamente elevados.

A poupança no Brasil, por motivos históricos e culturais, sempre foi pequena diante das nossas aspirações de crescimento, mas nos últimos anos encolheu ainda mais. A poupança doméstica está hoje em 13% do PIB -menor valor da série histórica. Somada à poupança externa de 3,7% do PIB (equivalente ao nosso deficit em conta corrente), ela financia um investimento em capital fixo inferior a 17% do PIB.

Para efeito de comparação, os emergentes de maior dinamismo investem somas que vão de 23% do PIB (Chile, Peru, Colombia) a 28% do PIB na Índia e 40% do PIB na China. Quando era nação emergente, no final do século 19, os EUA investiam 30% do PIB.

Por que o Brasil poupa e investe tão pouco? O cerne da resposta remete ao "crowding out fiscal". O Estado brasileiro (União, Estados e municípios) arrecada 36% do PIB em impostos, gasta 5% do PIB a mais do que arrecada (deficit nominal) e entrega apenas 2,5% do PIB (PAC - Plano de Abuso da Credulidade incluído) em formação bruta de capital fixo.

A implicação disso é que a capacidade de investimento da nação -setores privado e público- fica enormemente prejudicada pelo fato de que o Estado drena 41% do valor criado pelo trabalho dos brasileiros e transforma esses recursos não em capital capaz de multiplicar a renda futura, mas em gastos correntes.

E se alguém imagina que os programas sociais do governo explicam esse quadro é bom pensar de novo: o Bolsa Família representa 0,5% do PIB ou 1,2% do total do gasto público -menos que o Bolsa BNDES.

Em pleno bônus demográfico, quando deveríamos estar poupando e criando as bases da nossa prosperidade futura, o Brasil está penhorando o seu futuro. 

Por: Euardo Giannetti Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

RÚSSIA BRINCA COM A MORTE NOS CÉUS DA EUROPA




O todo-poderoso chefe do Kremlin anunciou em início de dezembro que as operações da força aérea russa redobrarão em intensidade e ousadia, em resposta ao que ele inventou chamar de provocação do Ocidente na Ucrânia.

Coincidindo com o anunciado por Putin, um F-16 norueguês quase colidiu no ar com um MIG 31 russo que lhe cortou repentinamente a trajetória enquanto voava no norte de Noruega.

O Ministério da Defesa nórdico publicou a gravação da manobra que qualificou de “indesejável”, noticiou o jornal espanhol “El Mundo”.

No vídeo, o piloto norueguês chega a gritar “Meu Deus!”, e vira para evitar a colisão. “Não é um comportamento normal por parte do piloto russo”, disse Bryndar Stordal, porta-voz das forças armadas norueguesas.


Segundo o secretário geral da OTAN, Jens Stoltenberg, mais de 400 vezes aviões ocidentais levantaram voo em 2014 para interceptar e desviar aviões de guerra russos que invadiam ou avançavam rumo ao espaço aéreo de países europeus, dando sinais preocupantes.

O número de ocorrências foi 50% maior que o de 2013.

Uma das características desses voos russos é a utilização de medidas eletrônicas para cegar os radares dos ‘adversários’ ou alvos potenciais.

A European Leadership Network – ELN, rede sediada em Londres para fornecer apoio aos responsáveis políticos europeus, mostrou o perigo desses voos que cegam, noticiou o “Il Corriere della Sera”.

Um caso típico aconteceu em 3 de março de 2014, mas que só agora foi revelado. O voo comercial da SAS com 132 passageiros, que partiu de Copenhague com destino a Roma, esteve a poucos metros de uma catástrofe.

Enquanto voava sobre águas internacionais perto de Malmoe, na Suécia, encontrou-se subitamente com um avião russo de guerra eletrônica – provavelmente um Ilyushin-20M – e só a rapidez e a perícia do piloto evitaram o desastre.

A colisão foi evitada quando os aviões estavam a 90 metros, muito abaixo da distância mínima de segurança.

Segundo o ELN, “desde a anexação da Criméia pela Rússia a intensidade e a gravidade dos incidentes envolvendo centrais de inteligência e forças militares ocidentais e russas aumentaram visivelmente”.

Isso significou vários “quase impactos”, porque os aviões russos – de caça ou de reconhecimento – desligam o transponder e não comunicam a sua posição a outros aviões voando na mesma região.

O ELN também citou outros incidentes, como o submarino russo identificado no largo de Estocolmo e o sequestro por agentes russos de um agente de segurança estoniano através da fronteira.

“Escaramuças” como a sucedida há pouco com o avião norueguês já somam cerca de 40. Três delas foram qualificadas “de alto risco”, tendo podido fazer vítimas ou gerar uma confrontação militar.

Segundo o ELN, “a combinação da atitude russa mais agressiva e a prontidão das forças ocidentais demostrando resolução, aumenta o risco de uma escalada não desejada”, havendo perigo de os fatos saírem do controle.

O relatório da ELN leva o título Dangerous Brinkmanship e foi assinado por Thomas Frear (ex-membro do Russian Institute of Oriental Studies de Moscou), Łukasz Kulesa (ex-responsável do Projeto para a Não Proliferação de Armas, da Polônia) e Ian Kearns (cofundador do ELN e ex-responsável pela Comissão para a Segurança Nacional do Reino Unido).
Por: Luis Dufaur, escritor, edita o blog Flagelo Russo.

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

POR QUE DISCRIMINAR É CORRETO E NATURAL

Nos dias de outrora, dizer que um homem estava discriminando significava estar-lhe prestando um grande elogio. Significava dizer que ele tinha gosto: ele sabia distinguir entre o ruim, o medíocre, o bom e o excelente. Sua capacidade de fazer distinções requintadas permitia-o viver uma vida melhor do que em outros contextos.


Hoje em dia, em nossos tempos politicamente corretos, discriminação implica ódio racial ou sexual. Quem discrimina está, segundo o senso comum, evocando o linchamento de inocentes, o enforcamento de negros que não cometeram crime nenhum, e, no extremo, um retorno à escravidão. Pelo menos foi isso que aconteceu com o senador recém-eleito pelo estado do Kentucky Rand Paul, que, durante sua campanha, afirmou que havia algumas partes da chamada Lei dos "Direitos Civis" de 1964 que eram repreensíveis. Em decorrência disso, a esquerda acionou sua poderosa máquina difamatória.

Porém, tudo que o senador Paul estava dizendo é que, embora seja ilícito ao governo discriminar com base em raça, sexo ou qualquer outro critério, é um direito básico de indivíduos terem a liberdade para demonstrar exatamente quais são suas preferências. Trata-se de um elemento básico dos direitos de propriedade. Se os indivíduos não tiverem esse direito, então um importante elemento da liberdade está irremediavelmente perdido.

Os gritos de fúria e revolta que recepcionaram tal exposição de ideias foram tão intensos, que o senador se sentiu compelido a recuar em sua declaração. Entretanto, estamos aqui para discutir ideias e não política. Aqui, a verdade e a justiça são nossas únicas guias, e não os sentimentos feridos de jornalistas trabalhando para a mídia convencional e para outros veículos lacrimosos. Sendo assim, faz-se necessário ser claro e direto: é mais do que óbvio que qualquer ato de discriminação da parte de indivíduos — porém, é claro, não da parte do estado — é um direito nato, pois trata-se do direito à liberdade. 

Quem discorda disso, por consequência lógica, teria de, por exemplo, impor a bissexualidade para todos. A bissexualidade coerciva é a implicação lógica de qualquer movimento antidiscriminação. Por quê? Ora, homens heterossexuais desprezivelmente discriminam nada menos que metade da raça humana como indigna de ser sua parceira de cama/sexo/casamento: ou seja, todos os outros homens. Tampouco podem as mulheres heterossexuais alegar inocência frente a essa terrível acusação; elas, também, repudiam metade dos seres humanos nesse aspecto. 

E quanto aos homossexuais masculinos? Podem eles rechaçar essa acusação mortal? Não, eles também se recusam a ter qualquer coisa com todas as fêmeas nesse contexto. Similarmente, as fêmeas homossexuais, lésbicas, criaturas rançosas que são, também evitam manter relações amorosas com qualquer tipo de homem — de novo, metade da raça humana.

Portanto, os bissexuais, e somente os bissexuais, estão livres de tal acusação. Somente eles são totalmente inocentes de incorrer em qualquer discriminação desse tipo. Eles são as únicas pessoas decentes em todo o espectro sexual; apenas eles se abstêm de incorrer em prática tão abjeta. (Vamos aqui desconsiderar o fato de que bissexuais também fazem comparações individuais baseadas em beleza, idade, senso de humor etc.)

Logo, se nós realmente nos opomos à discriminação de questões referentes ao coração, então todos nós temos de abraçar a bissexualidade. Pois, se não o fizermos voluntariamente, a implicação lógica é que devemos ser forçados a fazê-lo. Afinal, recusar-se a aceitar essa conclusão significa aprovar não apenas tacitamente, mas também ativamente, práticas discriminatórias — certamente uma das piores coisas dentro do arsenal do politicamente correto.

É perfeitamente possível opor-se a esse argumento dizendo que leis contra a discriminação feita por agentes privados devem ser válidas apenas para empresas e negócios, e não para interações entre pessoas. Porém, por que somente para o comércio e não também para relações humanas? Certamente, se há algo como "o direito de não ser discriminado", então ele deve ser aplicado em todas as áreas da existência humana, e não apenas no mercado. Se nós temos o direito de não sermos assassinados, ou roubados — e nós o temos —, então esse direito permeia todos os domínios da existência humana. Ser assassinado ou roubado dentro de sua casa é tão igualmente incorreto quanto o ser dentro de uma loja.

Ademais, o fato é que as atuais leis antidiscriminação nem mesmo se aplicam uniformemente no âmbito comercial. Antes, sua aplicação depende do "poder" envolvido nas relações, um conceito bastante sem sentido, pelo menos da maneiro como é utilizado pelos nossos amigos da esquerda.

Por exemplo, se eu odeio chineses e, por conseguinte, não quero frequentar seus restaurantes, não estou violando nenhuma lei. Entretanto, se o dono do restaurante chinês, por exemplo, odeia judeus como eu, ele legalmente não pode me proibir de entrar em suas dependências. Por quê? Porque os vendedores, nesse caso, são considerados mais "poderosos" do que os compradores.

Porém, a coisa nem sempre funciona assim. Se um grande comprador — por exemplo, uma rede varejista poderosa — se recusar a comprar estoques de uma empresa fornecedora presidida por uma mulher, porque tal rede varejista discrimina mulheres, ela jamais ficaria impune mantendo tal política.

Por que então deveria esse sentido ilegítimo de "poder" determinar a legalidade de uma decisão econômica? Certamente, um homem "sem poder", no sentido de ser pobre, não teria permissão para estuprar uma mulher "poderosa", no sentido de que ela é rica. Ou teria? Bem, essa defesa nunca foi tentada antes, então, quem sabe?

Outra objeção: pode ser aceitável que um indivíduo discrimine uma minoria oprimida, mas se muitos — ou, pior, se todos os membros da maioria — resolverem incorrer nessa prática, suas vítimas irão sofrer indevidamente e excessivamente. Por exemplo, suponha que brancos se recusem a alugar quartos de hotéis para negros, ou até mesmo a empregá-los. Consequentemente, os negros passarão por sofrimentos e angústias atrozes.

Porém, tal objeção é economicamente ignorante. Se os brancos boicotarem os negros dessa maneira, o livre mercado irá se levantar em defesa destes últimos. Como? Se nenhum proprietário estiver concedendo alugueis para um negro, então haverá aí uma grande oportunidade de lucro. Mais ainda: os lucros subirão enormemente em decorrência do simples surgimento desse arranjo. Consequentemente, passará a ser extremamente vantajoso para qualquer empreendedor, no sentido financeiro, passar a suprir essa demanda de mercado.

O mesmo ocorre no mercado de trabalho. Se os brancos se recusarem a contratar negros, seus salários cairão para níveis abaixo daquele que de outra forma prevaleceria no mercado. Isso irá criar grandes oportunidades de lucro para alguém — seja ele branco ou negro — que decida contratar essas pessoas, o que o tornará capaz de superar concorrencialmente aqueles que optaram pela discriminação.

Porém, esse fenômeno não funcionou para aliviar a má situação dos negros que eram obrigados a sentar no banco de trás dos ônibus durante a vigência das leis de segregação racial nos EUA até a década de 1960. Por quê? Porque a entrada no mercado de fornecimento de serviços de ônibus era estritamente regulada pelas forças políticas, as quais, antes de tudo, foram as responsáveis pela criação dessas leis raciais repreensíveis. Se a determinação de que negros se sentassem no fundo do ônibus fosse apenas resultado de discriminação privada, tal arranjo seria completamente impotente e inócuo, pois outras empresas concorrentes certamente passariam a ofertar lucrativamente serviços de ônibus para essas pessoas discriminadas.

É com essas e outras questões que lido em meu mais novo livro, The Case for Discrimination (algo como Em Defesa da Discriminação). A minha esperança é que esse volume possa lançar alguma luz sobre essas questões, além de se mostrar uma leitura interessante.
Por: Walter Block, membro sênior do Mises Institute e professor de economia na Loyola University, Nova Orleans.

PUTIN ELOGIA ALIANÇA ENTRE HITLER E STALIN


Parada conjunta da Wehrmacht e do Exército Vermelho comemora a invasão vitoriosa da Polônia, em Brest. General alemão Heinz Guderian e brigadeiro russo Semyon Krivoshein.

Não há segredo, mas houve muita ocultação nos manuais ocidentais de história: Hitler e Stalin foram grandes aliados e desencadearam conjuntamente a II Guerra Mundial.

E, em certo sentido, essa aliança, aparentemente rompida no transcurso da guerra, nunca deixou de funcionar. E perdura como se nunca tivesse sido quebrada.

Mas muitas pessoas no Ocidente foram enganadas por uma propaganda e uma visualização confusa dos fatos.

Agora o presidente russo Vladimir Putin acaba de reafirmar – mais uma vez, aliás – a simpatia de Moscou pelo tratado de não-agressão de 1939 entre os dois ditadores europeus. 


Assinatura do pacto Ribbentrop-Molotov aliança entre a Alemanha de Hitler e a União Soviética.
Stalin sorri sob a foto de Lênin.

Putin convocou diversos pesquisadores e acadêmicos para produzir trabalhos defendendo que ao assinar o Pacto Ribbentrop-Molotov, também conhecido como Pacto Hitler-Stalin, a URSS não fez nada de mau.

A reunião com os acadêmicos foi referida pelo site alemão Spiegel Online, pelo The New York Times e pelo diário britânico The Telegraph, citados pela radio oficial alemã “Deutsche Welle”. 

Putin declarou que toda pesquisa digna de crédito deveria chegar à conclusão de que o acordo entre os dois ditadores era parte dos métodos de política externa da época. Obviamente, o historiador que não demonstrar isso perderá crédito e sua carreira estará liquidada na “nova URSS”.

“A União Soviética assinou um tratado de não-agressão com a Alemanha. As pessoas dizem: 'Ah, isso é ruim.' Mas o que há de ruim no fato de a URSS não querer lutar?”, sofismou o líder russo.

Putin queixou-se de que a potência russa é acusada de ter dividido a Polônia. Mas, segundo ele, quando a Alemanha atacou o país, os poloneses faziam parte da Checoslováquia. Se alguém entendeu a lógica do argumento, por favor, avise.

Para ele, segundo “The Telegraph”, o acordo nazi-comunista foi no fundo bem feito pela Rússia e acabou sendo bom.

Moscou negava cinicamente a existência do pacto Ribbentrop-Molotov até 1989. Mas não adiantou silenciar a verdade ovante.

Assinado pelo ministro do Exterior do Terceiro Reich, Joachim von Ribbentrop, e pelo seu homólogo soviético Viatcheslav Molotov, o tratado garantia à Alemanha que a URSS permaneceria neutra no caso de uma ofensiva contra a Polônia.

Em 2009, na cerimônia pelos 70 anos do início da Segunda Guerra Mundial, em Gdansk, Putin já havia tentado defender o Pacto entre Hitler e Stalin.

O acordo com a Alemanha hitlerista permitiu a invasão conjunta nazi-soviética da Polônia que foi o estopim da II Guerra. Mas Putin fugiu pela tangente alegando que não foi a única causa e, tal vez não teve culpa nenhuma.

Putin repete o velho realejo comunista anti-capitalista: a culpa pelas atrocidades de Adolf Hitler é dos capitalistas e dos anglo-saxões.

De fato, em 1938, os governos amolecidos da Inglaterra, a Itália e a França assinaram o vergonhoso Acordo de Munique, em que entregaram os pontos diante da Alemanha nazista.

Mas houve pessoas ilustres até no Brasil como Plinio Corrêa de Oliveira que execraram esse acordo.

O próprio Putin lembrou no encontro com os historiadores, que o futuro primeiro-ministro britânico Winston Churchill censurou o Acordo de Munique dizendo: “Agora a guerra é inevitável”.

Na verdade, a famosa apóstrofe de Churchill, em 3 de outubro de 1938, foi mais incisiva: “Tínheis que optar entre a guerra e a vergonha. Escolhestes a vergonha e tereis a guerra”.

É o que muitos pretensos defensores de Ocidente parecem fazer hoje, ao contemporizar com Vladimir Putin e com suas invasões de países vizinhos!
Por: Luis Dufaur, escritor, edita o blog Flagelo Russo.

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quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

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A QUEDA DO PREÇO DO PETRÓLEO E A ESTRATÉGIA DA ARÁBIA SAUDITA



Decisões econômicas são feitas na margem. Esta foi a fundamental constatação feita pela escola marginalista de economia. Já por volta de 1875, esse enfoque já estava solidificado. Essa é a visão da Escola Austríaca de Economia.

No mundo atual, não ha commodity que seja mais fundamental do que o petróleo. Não há como armazenar petróleo (exceto para os produtores, que podem deixá-lo no subsolo). Não há como um país importador de petróleo construir tanques para armazenar um bilhão de barris de petróleo, que é o volume que o mundo consome a cada 11 dias.

Sendo assim, a menos que os atuais produtores de petróleo decidam reduzir sua produção, a atual tendência de aumento da produção irá seguir pressionando para baixo os preços na margem. 

A crescente produção de gás e óleo de xisto — por meio do processo de fratura hidráulica, popularmente chamada de fracking — nos EUA terá de ser vendida. E esse aumento da produção está ocorrendo exatamente em um momento em que a Europa, Japão e China estão vivenciando ou recessões ou uma desaceleração econômica. A menos que os países da OPEP decidam reduzir sua produção com o intuito de contrabalançar o aumento da produção observado no Canadá e nos EUA, o preço do petróleo irá continuar caindo.

Eis a estimativa da Administração de Informação sobre Energia (EIA — Energy Information Administration) do governo americano publicada no dia 9 de dezembro:



A produção de petróleo nos EUA irá aumentar da atual média de 7,4 milhões de barris por dia em 2013, para 8,6 milhões de barris por dia em 2014 e para 9,3 milhões de barris por dia em 2015. 

A recente produção de petróleo em terra dos 48 estados (exceto Alasca) tem sido mais alta do que o esperado, o que gerou uma revisão para cima, aumentando mais 155.000 barris por dia, desde a última previsão feita já no quarto trimestre de 2014. No entanto, dada a previsão de queda no preço do barril de petróleo para 2015, com os preços do petróleo WTI (West Texas Intermediate) apresentando uma média de US$58 por barril no segundo trimestre de 2015, a EIA prevê que as atividades de extração em 2015 irão declinar em decorrência dos menos atraentes retornos econômicos em algumas áreas, tanto das regiões produtoras já antigas quanto das emergentes.

Várias empresas irão redirecionar seus investimentos, retirando-os das explorações marginais e das pesquisas de prospecção e direcionando-os para as principais áreas de exploração. Os preços atuais do petróleo ainda estão altos o bastante para manter rentáveis explorações nas Bacias de Bakken, Eagle Ford, Niobrara e Permian, as quais contribuem para a maior parte do crescimento da produção de petróleo nos EUA.

Ontem, o petróleo WTI estava sendo vendido a US$58 o barril. Este era exatamente o preço estimado pelo governo americano para o ano que vem. Essa estimativa do governo foi publicada no dia 9 de dezembro. Em seis dias, o preço estimado foi alcançado. Ou seja, os preços do petróleo estão caindo muito rapidamente.

Já ficou claro que a Arábia Saudita não irá reduzir sua produção. Isso significa que os países da OPEP terão de seguir aquilo que a Arábia Saudita fizer — caso contrário, eles perderão sua fatia de mercado. Trata-se de um exemplo de um cartel que puxa os preços para baixo, o que deve confundir bastante a cabeça daqueles que dizem que cartéis sempre conspiram contra o consumidor e sempre elevam os preços. 

Essa notícia saiu ontem:



A Organização dos Países Exportadores de Petróleo não irá reduzir sua produção mesmo se os preços caírem para US$40 o barril, disse o Ministro da Energia dos Emirados Árabes, Suhail Al-Mazrouei. Desde que a OPEP decidiu, em seu encontro no dia 27 de novembro, que não iria reduzir a produção para contrabalançar a oferta excessiva, os preços já caíram 20%. Nos últimos seis meses, o grupo vem produzindo mais do que sua meta de 30 milhões de barris por dia.

A notícia estava se referindo ao preço do barril do tipo Brent, que caiu para US$63 ontem.

A Arábia Saudita é quem dita as regras na OPEP. Ela está acertando as contas com vários desafetos. Está acertando as contas com o Irã xiita. Está destruindo os planos financeiros do governo iraniano. Está fazendo o mesmo com o governo russo, que é aliado do Irã e é um grande concorrente da Arábia Saudita. 

Ao se recusar a reduzir sua produção, a Arábia Saudita está simplesmente aniquilando as finanças do governo russo — que ontem teve de disparar sua taxa básica de juros de 10,5% para 17% apenas para conter a forte desvalorização do rublo, consequência direta da queda do preço do petróleo, a principal mercadoria exportada pela Rússia.

Ao mesmo tempo, a Arábia Saudita está tornando mais caro e menos rentável a exploração de óleo de xisto nos EUA. No entanto, a menos que o preço do barril WTI caia para menos de US$40 e fique por ali, a atual postura da Arábia Saudita não terá muito efeito sobre a produção de óleo de xisto nos EUA. Já se o preço do WTI cair para US$40 o barril e se mantiver nesse valor, então os sauditas terão as empresas americanas que exploram óleo de xisto sob seu controle. Isso não irá reduzir a produção de óleo de xisto, mas irá gerar algumas falências. Os atuais investidores perderão dinheiro, mas outros irão comprar suas propriedades. Se há petróleo para ser extraído, petróleo será extraído.

Em fevereiro de 2009, o petróleo WTI chegou a US$37,51. Isso ocorreu no ápice de uma grande recessão. Mas em dezembro daquele ano, o WTI já havia subido para US$80. Não prevejo nenhuma grande recessão ocorrendo no ano que vem. A economia mundial não está robusta, mas também não estamos em 2008. Se o WTI chegar a US$45, isso será uma grande oportunidade para comprar ações de empresas de energia. Meu palpite é que os preços estarão entre US$75 e US$80 daqui a um ano. O pânico que vemos hoje não seria um prenúncio de uma repetição de 2009 no ano que vem.

A velocidade e a magnitude do declínio que estamos observando nesse mês de dezembro pegaram praticamente todos de surpresa. Os preços se mantiveram estáveis até junho, mas com os sauditas anunciando abertamente que não têm a intenção de reduzir sua produção, os preços despencaram.

Os sauditas podem jogar esse jogo por vários anos. Já os iranianos não. Eles não estão em uma situação similar domesticamente. E nem os russos. Ambos estão operando sob sanções impostas pelos EUA e pela União Europeia.

Por outro lado, os sauditas também estão em posição de tumultuar o mercado de debêntures que está financiando a exploração de petróleo nos EUA. Ainda não está claro por quanto tempo os sauditas continuarão jogando esse jogo, mas está claro que se trata de uma conveniência política, e não financeira. Tudo vai depender de quanto tempo o governo saudita está disposto a abrir mão de receitas com o intuito de impor sanções contra o Irã. Se o governo saudita cortar sua produção, ele poderá obter preços maiores, mas o resultado líquido pode não ser grande, pois haverá menos vendas. De novo, a decisão será feita na margem. 

O governo saudita está fazendo questão de deixar claro para todos quem é que manda na OPEP.

Tudo isso é benéfico para os consumidores ao redor do mundo [Nota do IMB: menos para os brasileiros, que continuam refém de uma estatal monopolista gerenciada por políticos corruptos e que, para recuperar suas finanças destruídas pela corrupção, aumentou o preço da gasolina justamente em um momento em que os preços da gasolina estão despencando em todo o planeta]. Do ponto de vista político, a atual situação certamente é benéfica para o estado de Israel. Não é benéfica para os produtores de óleo de xisto nos EUA, mas ninguém irá derramar lágrimas por seus eventuais prejuízos. 

Haverá repercussões devastadoras para aquelas empresas exploradoras de óleo de xisto que expandiram sua produção em estados como Dakota do Norte, Colorado e Texas. Essas empresas estão extremamente endividadas. Elas venderam títulos para financiar seu custoso fracking. Caso o preço do petróleo continue caindo, não será rentável para elas continuar extraindo petróleo. Elas terão de se desfazer de seus ativos.

Isso é resultado da política de juros zero do Federal Reserve. Ela financiou esse boom na extração de óleo de xisto. É por isso que óleo de xisto é uma bolha. É apenas mais um exemplo do que acontece quando você entrega a política monetária para um punhado de Ph.D.s em um Banco Central. Mas isso é boa notícia para os seguidores da Escola Austríaca que sempre disseram que a política monetária jamais deve ficar a cargo de um Banco Central.

Conclusão

Os sauditas estão determinados a infligir dor ao Irã. A produção nos EUA não irá cair, não obstante os preços baixos. As petrolíferas americanas sofrerão bastante, mas se há campos de petróleo produzindo, há um incentivo para o proprietário daquele campo continuar produzindo. Se o proprietário está endividado até a alma, ele tem de continuar produzindo. Ele terá apenas de esperar que o futuro seja melhor. Isso vale tanto para as petrolíferas tradicionais quanto para as empresas que lidam com xisto. "Isso é temporário. Isso não durou muito em 2009. Não durará muito agora. Não quero interromper minhas operações e ter de vender meus ativos. Será muito custoso ter de recomeçar tudo de novo mais tarde".

O mais importante motivo para qualquer país ou empresa fora dos EUA comprar dólares é para comprar petróleo. Os países da OPEP vendem seu petróleo em troca de dólares. Sendo assim, embora o dólar tenha encarecido bastante em relação às outras moedas, a queda no preço do petróleo mais do que compensou esse encarecimento do dólar para os estrangeiros. Eles agora têm de pagar mais pelo dólar, é verdade, mas o declínio no preço do petróleo passou a ser lucrativo para quem está comprando petróleo para revender. Para os meros consumidores de petróleo, isso é maná vindo dos céus.

[Nota do IMB: exceto para os desafortunados brasileiros].
Por: Gary North , ex-membro adjunto do Mises Institute, é o autor de vários livros sobre economia, ética e história. Visite seuwebsite.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

OS JUDEUS EXISTEM?

Será que os judeus existem? Melhor: será que faz sentido falar de judeus no século 21? Sim, certo: quem nasce de mãe judia é considerado membro do clube para todo o sempre. Ou, pelo menos, até se converter a um credo religioso distinto.


Mas, sejamos honestos, Israel foi fundado em 1948. Os critérios sentimentais e nacionalistas do passado são hoje um anacronismo e, pior, uma forma de racismo.

Israel não deveria ser um "Estado judaico" da mesma forma que os Estados Unidos não são o "Estado anglo-saxônico protestante". Confundir matérias religiosas com critérios políticos e republicanos é um fardo que os "israelenses" (e não os "judeus") devem abandonar.

Eis, em resumo, a mensagem de Shlomo Sand na polêmica do momento. O livro intitula-se "How I Stopped Being a Jew" (como deixei de ser judeu), da Verso Books.

O objetivo é exatamente este: explicar ao mundo como o historiador Sand renuncia a essa dúbia identidade, que não tem qualquer relevância nos dias de hoje.

E em que se baseia Shlomo Sand para chegar a essa dramática mas libertadora conclusão?

Na história, claro. Ou, tal como se viu nos livros anteriores ("A Invenção da Terra de Israel", "A Invenção do Povo Judeu"), na história que só existe na cabeça de Shlomo Sand.

No ensaio, duas afirmações são repetidas com agressividade. Primeira: as perseguições que deram origem ao Holocausto terminaram em 1950 (e, convém lembrar, o Holocausto não foi apenas uma tragédia judaica). O rótulo de "judeu" perde força na ausência de inimigos reais.

Segunda: pretender que o Estado de Israel seja definido por critérios de natureza religiosa é condenar 25% da população não judia a uma condição de inferioridade cívica.

Começo pela última afirmação, até porque ela é hoje repetida por qualquer "especialista" na matéria: pretender que Israel seja um "Estado judaico" é uma forma de lesar os interesses dos palestinos.

Com a devia vênia, não é. Garantir a natureza "judaica" do Estado de Israel tem uma relevância prática evidente: sinalizar para a Autoridade Palestina (e para os terroristas do Hamas) que não pode existir nenhuma negociação de paz quando os palestinos exigem o regresso a Israel (e não a um futuro Estado da Palestina) de 5 milhões de "refugiados" palestinos ("refugiados" das guerras de 1948 e 1967 que, na verdade, são filhos dos filhos dos filhos dos originais 900 mil).

Onde Shlomo Sand vê racismo, qualquer historiador sério vê simplesmente sobrevivência demográfica para um país de 8 milhões de habitantes, onde 6 milhões são judeus.

Mais delirante é a afirmação do autor de que o antissemitismo terminou em 1950. Partindo do pressuposto de que o professor Sand não lê a imprensa europeia (onde os ataques a judeus, sinagogas, cemitérios etc. são o prato do dia), que dizer do antissemitismo islâmico que, sobretudo no mundo persa, ganha contornos quase genocidas?

Sem falar do óbvio: as matanças nazistas não foram uma tragédia exclusivamente judaica. Fato. Mas será preciso lembrar ao grande historiador Sand que o programa de extermínio decidido na Conferência de Wannsee, em 1942, tinha como propósito específico uma "solução final para a questão judaica"?

Shlomo Sand pode renunciar, simbolicamente que seja, à sua identidade como judeu.

Nesse sentido, e tal como lembra um verdadeiro historiador como Simon Schama no seu recente "História dos Judeus", ele faz lembrar aqueles judeus dos tempos antigos que, inebriados pela cultura helênica, procuravam "descircuncidar-se" pelo uso de pesos e outros tormentos no órgão respectivo. Só para frequentarem os banhos públicos sem vergonhas anatômicas.

Mas o mais irônico dessa renúncia é que ela também faz lembrar outros antepassados: no caso, os judeus alemães do século 20 que, perfeitamente integrados no país de Hitler, acreditavam que nada de trágico poderia acontecer-lhes. No fim das contas, eles eram mais alemães que os próprios alemães!

Enganaram-se. Aos olhos dos inimigos, há identidades inapagáveis. Se Shlomo Sand caísse nas mãos do terrorismo antissemita, de nada lhe valeria tanta náusea judaica e tão elegante cosmopolitismo.
Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

TORTURAR OU NÃO TORTURAR, EIS A QUESTÃO

Os Estados Unidos revelaram ao mundo o que todo o mundo sabia: a tortura foi praticada com regularidade no pós-11 de Setembro. O mundo abriu a boca de horror e alguns regimes criminosos, como Cuba ou Irã, pediram respeito pelos "direitos humanos".


Nesse momento, uma pessoa faz uma pausa para visitar o vaso sanitário. Quando regressa, levemente combalida, esquece os regimes criminosos e concentra-se nas democracias. Washington mostrou as suas masmorras. Mas onde estão as masmorras dos regimes democráticos que gostam de vestir a toga do moralista vulgar?

Aliás, não são apenas os regimes democráticos que exibem hipocrisia para turista ver. A tortura é o pretexto ideal para que o filósofo possa comover o auditório com o seu amor pela humanidade. Torturar é sempre errado. Se o suspeito é suspeito de guardar informação vital sobre um atentado terrorista em larga escala, privá-lo de sono ou simular afogamento é pior que o Holocausto.

Claro que o filósofo não explica como lidar com suspeitos desse calibre. Também não precisa. No jardim infantil em que se tornou a discussão pública, basta mostrar "bons sentimentos" para encerrar o debate.

Alan Dershowitz, o conhecido professor de Harvard, recusou-se em tempos a fazê-lo. Aconteceu no mais explosivo de todos os países: Israel.

Premissa de Dershowitz: a discussão sobre a tortura não é um problema moral. Toda a gente mentalmente sã condena a prática. Dershowitz não é exceção. Só que esse não é o ponto.

O ponto, acrescenta Dershowitz, é que a tortura é praticada (e continuará sendo praticada) por todos os países democráticos. Sem controle. Sem conhecimento da população. Perante essa triste realidade, o que fazer?

Para Dershowitz, existem duas vias possíveis: fingir que isso não acontece e continuar lendo o senhor Immanuel Kant; ou, então, trazer a prática para a alçada da lei.

Dershowitz fala, inclusive, de "mandados de tortura": interrogatórios coercivos cujos métodos, duração e intensidade só poderiam ser praticados mediante a autorização de um juiz e vigilância apertadíssima de autoridades judiciais e médicos especializados.

A proposta de Dershowitz provocou reações fortes: em Israel (que prefere absolver os abusadores "a posteriori" por razões de "segurança nacional") e em qualquer salão civilizado (que só aceita a fantasia de um mundo sem tortura).

Dershowitz responde: esse mundo não existe. E a posição inicial permanece: se a tortura é praticada independentemente das mais elevadas considerações morais, é preferível que ela seja feita à margem da lei ou sob a sua alçada?

Para o autor, só a existência de "mandados de tortura", pela responsabilização de todos os envolvidos –do juiz ao interrogador–, poderá diminuir a prática. Justificar perante um juiz a necessidade de interrogatórios coercivos antes de eles serem praticados não é brincadeira de criança.

A proposta de Dershowitz tem pontos fortes –mas, opinião pessoal, uma falha lógica que derrota o edifício inteiro.

O ponto forte está na afirmação explícita de que a tortura é uma prática moralmente repulsiva. Porém, pretender encerrar o debate em considerações morais não nos leva muito longe: podemos estar todos de acordo sobre o assunto –e alguém, algures, continua a ser torturado.

Outro ponto forte está na preocupação de Dershowitz em diminuir esses abusos, obrigando o poder judicial a "sujar as mãos", o que pode implicar uma maior relutância em permitir tal sujidade.

Infelizmente, o ponto fraco é óbvio: se a tortura, praticada em solo nacional ou internacional, é escondida do poder judicial, não há nenhum motivo para acreditar que "mandados de tortura" terminariam com essa ocultação.

Pelo contrário: a obrigação (e a dificuldade) em produzir um caso sólido para convencer um juiz da necessidade de torturar poderia ser razão adicional para que a lei continuasse a ser contornada.

Em que ficamos?

Sim, condeno a tortura pela sua desumanidade. Mas, pelo menos, tenho a honestidade intelectual de ainda escutar argumentos indigestos. E de confessar, perante a pergunta de Alan Dershowitz ("Que fazer perante uma prática inapagável?"), um desolado "não sei".

O leitor sabe? 

Por: João Pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

POR QUE CUBA É POBRE



Uma dica: não é por causa do bloqueio americano.

Como escreve João Pereira Coutinho:

O embargo americano existe, sem dúvida, e deve ser condenado pelo seu óbvio anacronismo [...]. Mas é preciso acrescentar a segunda parte da frase: só existe o embargo americano. Que o mesmo é dizer: todo mundo que é mundo mantém relações com Cuba e nem assim a ilha se converteu numa espécie de Suécia do Caribe.

Antes de 1959, o problema de Cuba era a presença de relações econômicas com os Estados Unidos. Depois o problema se tornou a ausência de relações econômicas com os Estados Unidos.

O embargo americano é obsceno, mas não é a raiz da pobreza cubana. De fato, como indica Coutinho, os cubanos podem comprar produtos americanos pelo México. Podem comprar carros do Japão, eletrodomésticos da Alemanha, brinquedos da China ou até cosméticos do Brasil.

Por que não compram? Porque não têm com o que comprar. Não é um problema contábil ou monetário — o governo cubano emite moeda sem lastro nem vergonha. O que falta é oferta. Cuba oferece poucas coisas de valor para o resto do mundo. Cuba é pobre porque o trabalho dos cubanos não é produtivo.

A má notícia para os comunistas é que produtividade é coisa de empresário capitalista. Literalmente. É o capital que deixa o trabalho mais produtivo. E é pelo empreendedorismo que uma sociedade descobre e realiza o melhor emprego para o capital e o trabalho.

Mesmo quando o governo cubano permite um pouco de empreendedorismo, ele restringe a entrada de capital. Desde que assumiu o poder em 2007, Raúl Castro já fez a concessão de quase 170.000 lotes de terra não cultivada para agricultores privados. Só que faltam ferramentas e máquinas para trabalhar a terra. A importação de bens de capital é restrita pelo governo. Faltam caminhões para transportar alimentos. Os poucos que existem estão velhos e passam grande parte do tempo sendo consertados. Em 2009, centenas de toneladas de tomate apodreceram por falta de transporte.

Campanhas internacionais contra a pobreza global se esquecem dos cubanos. Parece que o uniforme dos irmãos Castro tem o poder de camuflar a pobreza em meio a discursos de conquista social. Dizem que Cuba tem medicina e educação de ponta. Ainda que fosse verdade, isso seria bom apenas para o pesquisador de ponta. E triste para o resto da população que vive longe da ponta, sem acesso a informação aberta ou aos medicamentos mais básicos, como analgésicos e antitérmicos. É como na saudosa União Soviética. A engenharia era de ponta. Colocava gente no espaço e tanques na avenida. Só não era capaz de colocar carro nas garagens nem máquina de lavar nas casas.

Cuba vai enriquecer quando a sua população se tornar mais produtiva para trabalhar e mais livre para empreender. Ou seja, quando houver capitalismo para os cubanos.

Diogo Costa é presidente do Instituto Ordem Livre e professor do curso de Relações Internacionais do Ibmec-MG. Trabalhou com pesquisa em políticas públicas para o Cato Institute e para a Atlas Economic Research Foundation em Washington DC. Seus artigos já apareceram em publicações diversas, como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo. Diogo é Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis e Mestre em Ciência Política pela Columbia University de Nova York.  Seu blog: http://www.capitalismoparaospobres.com

domingo, 21 de dezembro de 2014

SOCIALISTAS DE GALINHEIRO


Nossos socialistas de galinheiro ainda não perceberam que, com o fim do bloqueio, os cubanos logo vão descobrir o tamanho da tapeação: o inferno capitalista é muito mais agradável que o paraíso caribenho


Não batem bem da cabeça devotos de uma seita que tem em Lula seu único deus, enxerga em FHC um demônio disfarçado de sociólogo e debita na conta da elite golpista (entidade formada exclusivamente por loiros de olhos azuis) todos os males do Brasil, passados, presentes e futuros. Só mentes em desordem conseguem berrar amém a todas as cantilenas cafajestes dos celebrantes de missas negras, concebidas para ensinar que, como os fins justificam os meios, não existem pecados nem abaixo nem acima da linha do equador. Só ovelhas com defeitos de fabricação insanáveis podem ser tão subservientes a sinuelos sem siso e pastores sem vergonha.

Nada que venha de gente assim deveria surpreender brasileiros ajuizados. Mas o rebanho não para de expandir as fronteiras da vigarice e do oportunismo com manifestações de idiotia que surpreendem seres normais. O surto da semana foi provocado pela iminente normalização das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos, tema da reportagem de capa de VEJA. Para o início do carnaval temporão da companheirada, bastou que o presidente dos EUA prometesse lutar pela imediata suspensão do bloqueio econômico ─ uma velharia que, se a decisão da Casa Branca for aprovada pelo Congresso, enfim descansará em algum museu da Guerra Fria.

Na terça-feira, os stalinistas de galinheiro que rosnam por aqui continuavam sonhando com a destruição do imperialismo ianque e a globalização da maravilha comunista inaugurada pelo ditador de Adidas e aperfeiçoada pelo caçula mais velho do planeta. Na quarta, todos os adoradores da ilha-presídio festejaram o noivado de Barack Obama com Raúl Castro. De um dia para o outro, o que era o Grande Satã norte-americano virou o vizinho que todo país pede a Deus. Nada como a reconciliação entre o socialismo revolucionário e o capitalismo selvagem para abrir um sorriso de orelha a orelha na cara de todo marxista de galinheiro.

Nos anos 50, quando Fidel Castro lutava pelo poder, havia em Cuba um ditador cleptocrata a derrubar, uma economia asfixiada pela monocultura da cana e prostitutas demais em Havana. Na segunda década do século 21, há prostitutas demais na ilha inteira, um oceano de canaviais asfixiando a economia e uma ditadura comunista a sepultar. Vai cair de madura com o fim do bloqueio. Acabou o prazo de validade da última desculpa para as misérias da ilha algemada desde 1959 pela hegemonia dos liberticidas.

Os cubanos não demorarão a descobrir que o inferno capitalista é infinitamente mais agradável que o paraíso dos irmãos Castro. Se a ditadura resolver enquadrar os seduzidos pelo mundo civilizado, ninguém terá de fugir de Havana e enfrentar a perigosa travessia do Caribe. A embaixada americana estará logo ali. Por: Augusto Nunes

TRÊS NOTINHAS DA SEMANA

Estados Unidos perpetuam a ditadura cubana; a burra tentativa de negar a sexualidade como natureza humana; Reinaldo de Azevedo está equivocado ao atacar Bolsonaro


Se abrir relações diplomáticas e comerciais com uma ditadura comunista pudesse fomentar a liberdade, a China seria hoje uma democracia. Obama repete o erro criminoso de Richard Nixon, adquirindo para os EUA "o melhor inimigo que o dinheiro pode comprar". Em poucos anos, Cuba será uma potência econômica e militar invejável, sem democratizar-se no mais mínimo que seja – excetuada, é claro, a hipótese de uma revolução popular, que é exatamente o que o governo americano tenta evitar mediante a tábua de salvação atirada in extremis a uma ditadura moribunda.

Além do Brasil e das Farc, o Foro de São Paulo terá agora mais um patrono bilionário: os EUA, por intermediação de Cuba.

Os políticos conservadores e os refugiados cubanos em Miami podem se esforçar para dar outro rumo ao encadeamento das causas e efeitos, mas isso será como colocar rédeas num dragão.

Ao apoiar a iniciativa do governo Obama, o Papa Francisco prova mais uma vez sua completa falta de discernimento político.

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Um dos dogmas mais básicos – e mais psicóticos – da mentalidade revolucionária nas últimas quatro ou cinco décadas é que não existe “natureza humana”: o bicho-homem não tem instintos, não tem programação genética, é uma folha em branco, uma tábua rasa: tudo o que ele faz e pensa é imposto por “estereótipos culturais”. Estes, por sua vez, não surgem da experiência acumulada das gerações, mas são “instrumentos de dominação” criados pela maldita classe dominante.

Se você acredita que é macho só porque nasceu macho, ou fêmea só porque nasceu fêmea, está muito enganado(a). Foi o “aparato de reprodução da ideologia burguesa” que vestiu em você esses modelitos odiosos para que você não percebesse que seu pênis pode ser um sinal de feminilidade e sua vagina uma prova de macheza acima de qualquer suspeita.

Nem precisa perguntar: Sim, a ciência já demonstrou que isso é uma fraude das grossas. E sim, os mesmos que brandem a teoria da “tábua rasa” contra os papéis tradicionais de homem e mulher saem gritando, cinco minutos depois, que o homossexualismo é genético e que tentar mudar um homossexual é crime. Isto é: você não nasce homem nem mulher, mas nasce homossexual. Perguntar como você pode sentir atração por pessoas “do mesmo sexo” sem ter sexo nenhum é homofobia.

Há ainda aqueles que exigem acesso aos banheiros femininos para os transexuais e ao mesmo tempo berram que “é preciso acabar com os estereótipos de macho e fêmea”. Mas o que faz de um transexual um transexual senão o fato de que, nascido num sexo, ele copia os estereótipos do outro? E é preciso ser cego para não notar que a conduta feminina de um transexual é ainda mais estereotipada que a das mulheres.

Um documentário recente (https://www.youtube.com/watch?v=p5LRdW8xw70) mostrou que na Noruega, o país onde a legislação é a mais igualitária do mundo para homens e mulheres, as pessoas continuam a buscar as profissões que correspondem ao “estereótipo” do seu sexo, com frequência estatística até maior do que o faziam antes de oficializado o discurso equalizante. Os fanáticos da “tábua rasa” dizem que elas fazem isso por pressão da sociedade, mas elas insistem que não: as mulheres escolhem cuidar de bebês, e não de automóveis, porque querem e não porque mamãe mandou. Mas os iluminados acreditam que essas pessoas não têm autoridade para dizer o que querem: quem tem são eles.

É essa a mentalidade por trás de milhares de leis psicóticas com que cérebros lesados impõem a sua deformidade à população, proibindo a saúde mental como se fosse um crime.

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Está aberta a temporada de caça ao deputado Jair Bolsonaro. Na verdade, sempre esteve, não sendo essa portanto a razão pela qual volto ao assunto. A razão é que agora os tiros vêm da mais inesperada das direções: a coluna do Reinaldo Azevedo. E vêm com aquela persistência inflexível do atirador que não aceita como troféu senão a completa destruição do alvo ou, na mais branda das hipóteses, a sua definitiva humilhação pública.

Numa de suas últimas postagens, o colunista da Veja firmou sua posição: ou o sr. Bolsonaro pede desculpas à sua colega Maria do Rosário, ou merece ter seu mandato cassado. Cassar o mandato de Maria do Rosário? Nem pensar.

Já disse, e reafirmo, que sou amigo do Reinaldo Azevedo e não deixarei de sê-lo por causa de uma opinião errada, depois de tantas certas e valiosas que ele já publicou. Mas esta de agora é tão errada, tão absurda, tão indefensável, que eu falharia ao meu dever de amizade se não alertasse o colunista para a injustiça que comete e o vexame a que se expõe.

Que a resposta do sr. Bolsonaro à sra. Maria do Rosário foi "uma boçalidade", como a qualifica Reinaldo Azevedo, é certo e ninguém duvida. Mas o sr. Bolsonaro a pronunciou em resposta, não a "outra boçalidade", como pretende Azevedo, e sim a uma falsa imputação de crime, que é por sua vez um crime. Reinaldo Azevedo exige que a boçalidade seja punida e o crime fique impune.

Como todo debatedor teimoso que se empenha na defesa do indefensável, Reinaldo se vê forçado a apelar a expedientes argumentativos notavelmente capciosos que, em situações normais, ele desprezaria.

Um deles é proclamar que a resposta do sr. Bolsonaro a Maria do Rosário transforma o estupro em uma “questão de mérito”. Quer dizer, pergunta Reinaldo, que, se Maria do Rosário merecesse, Bolsonaro a estupraria? Isso é deformar as palavras do acusado para lhe imputar uma intenção criminosa. Na verdade, Bolsonaro disse: “Se eu fosse um estuprador...” O restante da frase, portanto, baseia-se na premissa de que ele não o é, e só pode ser compreendido assim. Reinaldo parte da premissa inversa para dar a impressão de que o deputado fez a apologia do estupro. Com isso, ele endossa o insulto lançado pela deputada Maria do Rosário e usa essa premissa caluniosa como prova de si mesma. Raciocinar tão mal não é hábito de Reinaldo Azevedo, mas, como se sabe, o ódio político move montanhas: montanhas de neurônios para o lixo.

Pior ainda: tendo recebido centenas de objeções sensatas e racionais na área de comentários do seu artigo – inclusive as minhas --, ele não responde a nenhuma, mas tenta dar a impressão de que toda a oposição à sua versão dos fatos vem de “seguidores de Bolsonaro”, exemplificados tipicamente nos signatários de uma petição raivosa que exige a demissão do colunista de Veja. Fui ver a petição, e sabem quantos signatários tinha? Sete e não mais de sete (talvez agora tenha oito ou nove). Ao fazer desses sete os representantes da maioria que não pedia cabeça nenhuma, Reinaldo procedeu exatamente como os repórteres pró-petistas que, na massa de dezenas de milhares de manifestantes anti-Dilma, pinçaram cinco ou seis gatos pingados adeptos da “intervenção militar” para criar a impressão de que a manifestação era essencialmente golpista. 
Por: Olavo de carvalho