domingo, 4 de janeiro de 2015

IDADE DA PEDRA

É de Zaki Yamani, ex-ministro do Petróleo da Arábia Saudita, uma sábia sentença: "A Idade da Pedra não terminou por falta de pedras –e a Idade do Petróleo terminará muito antes do fim do petróleo". As reservas de hidrocarbonetos não são um valor constante: crescem com o preço do barril. A Idade do Petróleo será encerrada pela substituição do combustível por outras fontes de energia, sob o influxo da elevação dos preços do barril. A estratégia saudita é retardar a diversificação energética, evitando escaladas duradouras de preços. O petróleo barato tem consequências políticas tão relevantes quanto o petróleo caro –inclusive para nós.


Na Opep, os sauditas rejeitaram a proposta de redução da produção. Sob o pano de fundo do boom na produção americana em bacias de xisto, da desaceleração chinesa e da estagnação europeia, a paralisia da Opep reforça a tendência de um ciclo de preços baixos. Descontada a inflação, o barril a US$ 70 de hoje repete preços vistos pela última vez, brevemente, em julho de 2009. Antes, valores inferiores ao atual predominaram durante duas décadas, entre 1984 e 2004. Se a nova tendência de baixa persistir, as placas tectônicas da geopolítica global experimentarão profundos deslocamentos.

A natureza estratégica e as características econômicas da produção de petróleo favorecem a estatização, completa ou parcial, da indústria petrolífera. O petróleo caro é, por isso, uma fonte de poder de regimes nacionalistas e/ou autoritários. Nos ciclos longos de alta dos preços (1974-83 e 2005-14), as rendas abundantes do petróleo estabilizam as elites dirigentes dos países exportadores. O "putinismo" na Rússia e o chavismo na Venezuela ilustram o fenômeno. A inversão do ciclo rompe a precária coesão social, desafiando o edifício da ordem.

No Brasil, a alta dos preços evidenciou a atração exercida pelo petróleo sobre o lulopetismo. A conversão da Petrobras em empresa global foi interpretada como oportunidade de controle de chaves mágicas de poder, nos tabuleiros da política e das finanças. Daí, a troca do regime de concessão pelo de partilha, a capitalização bilionária da Petrobras com recursos públicos e o loteamento partidário de seus cargos de direção. A queda dos preços escancara as dimensões do estrago, cujos sintomas já transpareciam nos espelhos da dívida e do valor acionário da estatal, e ameaça a remuneração dos investimentos no pré-sal.

O fetichismo do petróleo tem amplas implicações. O cosmopolitismo define riqueza como criatividade social, um bem intangível que depende dos intercâmbios com o mundo exterior. O nacionalismo, pelo contrário, identifica a riqueza aos recursos naturais, ou seja, a substâncias físicas confinadas em territórios circundados por fronteiras. Na narrativa nacionalista, o governo exerce a função de defender a riqueza nacional (o petróleo, os minérios, o ouro simbolizado pelo amarelo de nossa bandeira) contra a ganância do "inimigo externo". Os discursos eleitorais do lulopetismo sobre a pátria e o pré-sal inscrevem-se nesse padrão.

Sob o feitiço do petróleo, o governo formulou uma estratégia nacional de defesa que atribui à Marinha a missão de resguardar a "Amazônia Azul", como se a guerra no mar pudesse substituir o conceito de movimento pela proteção estática de uma linha imaginária traçada na água. Hipnotizados pelo pré-sal, abandonamos o programa de biocombustíveis, junto com sua extensa cadeia de inovações. Ofuscados pelo brilho do tesouro enterrado, penduramos uma urgente revolução educacional no fio ainda não tecido dos royalties do petróleo.

O barril a US$ 70 confunde as cartas do baralho russo na Ucrânia, reativa as negociações nucleares com o Irã e anuncia violências na Venezuela. Deveria, ainda, servir-nos de alerta: já passa da hora de encerrar nossa Idade da Pedra política. 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

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