sábado, 3 de janeiro de 2015

O GAMBITO DE BRANDT

Raúl Castro celebra a libertação dos espiões cubanos e os arautos do castrismo, dentro e fora da Ilha, descrevem as notícias históricas como um triunfo do regime de Havana. Até mesmo a blogueira Yoani Sánchez, uma aguda analista, flertou com a narrativa oficial, ainda que para deplorar o desenlace. Contudo, em alguns dias, os agentes de inteligência cubanos perderão a aura de heróis nacionais, desaparecendo na obscuridade, e a fumaça da propaganda se dissipará. O reatamento de relações entre os EUA e Cuba começa a remover o principal fator de legitimação política da ditadura castrista. Barack Obama aplica à Ilha o gambito de Brandt, negando a um regime totalitário o privilégio de identificar a pátria à tirania.


No xadrez, gambito é a oferta de uma peça em troca de uma vantagem posicional. O primeiro-ministro alemão Willy Brandt anunciou, em 1969, a Ostpolitik ("política do leste"), que conduziria ao Tratado Básico de 1972 entre a Alemanha Ocidental (RFA) e a Alemanha Oriental (RDA). No gambito, Brandt renunciou à abordagem conflitiva, propiciando a normalização de relações. Foi acusado de traição, pois o reconhecimento da RDA parecia representar o congelamento da divisão alemã. De fato, porém, os intercâmbios entre as duas Alemanhas expuseram o fracasso do regime comunista ao escrutínio dos cidadãos da RDA. As raízes do levante cívico de 1989, concluído pela queda do Muro de Berlim, encontram-se na aposta da Ostpolitik.

A reedição do gambito não é uma operação maquiavélica, mas um gesto inscrito na moldura das circunstâncias. Pesaram sobre Obama a saúde debilitada de Alan Gross, o técnico americano preso na Ilha, e a decisão latino-americana de convidar Cuba para a Cúpula das Américas. Washington levou em conta a embrionária abertura econômica de Castro e o papel desempenhado pelos cubanos no combate à epidemia do ebola. Entretanto, o cálculo geopolítico está expresso no discurso presidencial: "os países têm mais chances de experimentar transformações duradouras se suas populações não são submetidas ao caos".

Castro optaria pelo conflito eterno, se pudesse. Mas a crise na Venezuela, que se acerca do colapso, converteu-se em elemento decisivo da equação cubana desde a deflagração das reformas de mercado –e acabou empurrando o regime à mesa de negociações com Washington. O relaxamento do embargo confere um novo fôlego à decrépita economia cubana. Em contrapartida, os senhores da Ilha terão que encarar a perda do inimigo indispensável. O espectro do poderoso inimigo externo esculpiu a mentalidade de segurança nacional que paralisa a política dentro de Cuba. A identificação da pátria ao castrismo e da divergência à traição repousa sobre o perene "estado de guerra". Se ele é retirado de cena, a ditadura se vê despida de seu ilusório conteúdo nacional, reduzindo-se a uma indesculpável tirania.

Cuba não é um país, mas uma narrativa histórica. Na Europa, a faca da Revolução Russa cortou a esquerda em duas partes e a longa noite do stalinismo ensinou aos social-democratas o valor da liberdade política. Na América Latina, a narrativa da resistência castrista ao cerco americano funcionou como pedagogia negativa, reforçando as inclinações autoritárias de uma esquerda já emplastrada pelo nacionalismo. Do outro lado do Atlântico, o totalitarismo cristaliza-se na figura repulsiva de Stalin; por aqui, esconde-se sob a fantasia da rebeldia e veste-se com um camiseta de Che Guevara. O gambito aplicado por Obama tem o potencial de inundar a caverna ideológica na qual, há meio século, abriga-se a esquerda latino-americana.

Conheci Havana no tenebroso "período especial", em 1994. Logo, o Pluto e o Mickey passearão no Malecón. Perderemos as imperturbadas paisagens de uma cidade petrificada. Em troca, um sopro de brisa fresca atravessará a América Latina 
Por: Demétrio Magnoli Publicado na Folha de SP

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