sábado, 4 de outubro de 2014

'O CARÁTER FICA'

Uma das vantagens mais interessantes da hipocrisia, talvez o vício preferido das campanhas eleitorais, é seu baixo custo. A rigor, fazendo a conta na ponta do lápis, a hipocrisia não custa nada, quando se considera que o hipócrita jamais pretende cumprir suas promessas, nem se comportar com as virtudes que atribui a si mesmo diante do público — encerrada a disputa, volta a ser o que sempre foi, e dá por zeradas todas as dívidas que parecia estar contraindo quando tinha de pedir voto aos eleitores.


Disputas pela Presidência da República, é claro, não são a oportunidade mais adequada para o público assistir a exibições de boa conduta. Assim mesmo, a campanha eleitoral de 2014 parece superar tudo o que já foi feito neste país, até agora, em matéria de embuste; só deverá ser superada, talvez, pela próxima corrida, em 2018.

Não há inocentes nesta rixa de terceira classe, mesquinha, desonesta e sem o menor vestígio de vida inteligente; desde o primeiro dia de campanha, ainda não apareceu nada que pudesse ser descrito pela palavra “ideia”. Mas o pior desempenho, de longe, fica com a concorrente mais forte até agora, Dilma Rousseff, porque ela não é apenas a candidata oficial – antes disso, é a presidente da República, e esse cargo lhe impõe obrigações formais perante todos os brasileiros, sem exceções. A primeira delas é o respeito.

Dilma, pela posição que ocupa e pelo juramento que fez ao assumir a Presidência, não tem o direito de tratar os eleitores como uma manada de ignorantes que não dispõem da capacidade de pensar com um mínimo de independência — e por isso não precisam ouvir argumentos, explicações e raciocínios que façam nexo, ou respeitem fatos. Vale tudo aí. Se Dilma não for eleita, garante sua campanha, a comida vai sumir das mesas. As crianças passarão a receber livros em branco. Os banqueiros vão ordenar demissões em massa, fechar escolas e acabar com o Bolsa Família.

Por ser negra, magrinha e de origem paupérrima, ou por lembrar que passou fome na infância, a concorrente Marina Silva é acusada de ser uma “coitadinha” — e uma pobre-diaba como ela, segundo Dilma, não tem condições de ser presidente. Só Lula, o seu principal patrocinador, tem o direito de se apresentar como operário e receber diploma de herói. Marina é igual a Fernando Collor — embora a candidata oficial não explique por que isso seria tão ruim assim, já que o mesmo Collor é hoje um dos seus aliados mais valiosos. Só Deus sabe o que ainda vai dizer até o dia da eleição.

O resultado prático de toda essa insensatez é que a campanha eleitoral da suprema magistrada do Brasil, que deveria ser a mais sóbria e mais fiel à verdade dos fatos, acabou sendo a mais hipócrita de todas. Um cavalheiro, segundo o ensinamento de Oscar Wilde, nunca deve trapacear quando está com boas cartas na mão. Dilma tem um jogo lindo – até agora sempre esteve à frente nas pesquisas, tem seis vezes mais tempo que Marina na televisão e usa todos os dias a máquina do governo para caçar votos. Mas sua campanha tornou-se um monumento à trapaça.

Não existe nenhuma disputa de “classes” na eleição, como pretende a propaganda oficial, em que a opção seria escolher o lado dos pobres, o dela, contra o lado dos ricos, o dos outros. A única coisa realmente em jogo é o interesse material: mais de 20 000 cargos ocupados pelo PT e amigos, a manutenção de um convívio de doze anos com empreiteiras e as oportunidades de negócios junto a empreendedores como o homem atômico da Petrobras e atual presidiário Paulo Roberto Costa, o doleiro Youssef e por aí vai.

Não existe a mais remota sinceridade nos alertas de que um Banco Central independente vai tirar as grandes decisões financeiras “das mãos dos brasileiros” – como se no governo Dilma eles decidissem alguma coisa a respeito. Não existe motivo para acreditar nas promessas de “limpeza” na Petrobras, quando Lula diz que a empresa é vítima de “ataques” de tubarões imaginários — e não dos tubarões de carne e osso mantidos lá dentro durante todo o seu governo e o de Dilma.

A complicação que o Brasil vive hoje vai além da falta de decência, de lucidez e de bons modos da campanha. Campanhas eleitorais são transitórias, mas os seres humanos que participam delas são permanentes. É uma pena, mas Dilma não vai mudar de caráter quando a campanha acabar — continuará sendo exatamente a mesma. Se ganhar, não vai fazer um ato de contrição e se arrepender da hipocrisia de uma disputa deformada pela falsificação da realidade; não se transformará numa pessoa que nunca foi.
Por: J.R. Guzzo Publicado na Veja

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