terça-feira, 28 de outubro de 2014

O FARDO DO HOMEM NEGRO

A Universidade de Oxford está preocupada: o ano acadêmico já começou por aqui e 20 mil estudantes africanos chegam para o início das aulas. Tradução: riscos de contágio pelo vírus ebola são uma possibilidade. Remota, mas real.


Perante essa preocupação dos ingleses, a resposta óbvia seria afirmar que o Ocidente é um poço de hipocrisia, que só treme de medo quando a morte dos pobres se aproxima das suas margens.

Existe até um cartum, da autoria do notável ilustrador português André Carrilho (divagação pessoal: o André foi o autor da capa do meu primeiro livro de crônicas), que tem feito sucesso nas redes sociais do mundo inteiro.

Descrição: vemos vários doentes com ebola deitados em suas camas. Todos eles são negros. Todos, com a exceção de um branco. E é sobre o doente branco que as câmeras da mídia concentram as suas luzes.

Mensagem óbvia: se o ebola não tivesse chegado à Espanha ou aos Estados Unidos, as matanças na África continuariam na doce paz do anonimato. Como, aliás, sempre continuaram desde a década de 1970.

Acontece que o meu colega André Carrilho está errado. Ou, pelo menos, parcialmente errado.

É um fato que o ebola assusta os brancos. É um fato que o Ocidente rico e tecnologicamente avançado já deveria ter prestado atenção a essa doença letal. Se o mundo encolheu com os prodígios da "globalização", não é preciso ser um gênio para imaginar que, cedo ou tarde, o bicho pintaria no hemisfério Norte.

O problema é que a estupidez, a ganância e a mendacidade do hemisfério Sul não ajudam a nenhuma ajuda.

Em artigo devastador para o "New York Times" —um jornal que está longe de qualquer simpatia direitista—, o enviado a Serra Leoa escreve uma carta de desespero e estupefação ante o espectáculo lúgubre que tem à frente dos olhos.

Adam Nossiter, eis o nome, começa por falar dos líderes comunitários do país que, no início, negaram a presença da doença e permitiram que ela alastrasse sem freio.

Depois, quando os corpos começaram a tombar, os mesmos líderes atribuíram o fato aos efeitos da bruxaria (um clássico). Provavelmente, tentaram travar o vírus com o feiticeiro local fazendo as suas macumbas. Curiosamente, não resultou.

Mas a cultura de ocultação não ficou por esses líderes tribais. Como escreve o mesmo jornalista, existe um abismo criminoso entre o que acontece no terreno e a resposta "oficial" do governo, que continua sentado sobre os US$ 40 milhões de ajuda internacional para combater eficazmente o flagelo.

Pois sim. No terreno, continua a faltar tudo: ambulâncias, medicamentos, equipamentos. E os 30 veículos da ONU, prontos a entrar em ação, continuam parados na capital Freetown porque a burocracia, como sempre, não perdoa.

Em vez desses veículos, circulam pelas estradas uns caminhões rudimentares, dirigidos por beneméritos nativos, que viajam até aos confins e transportam os mortos para as suas sepulturas. Infelizmente, os responsáveis pelos enterros ameaçam greve —dia sim, dia não— por falta de pagamento.

Não admira que, perante o caos, as estatísticas governamentais de Serra Leoa não sejam "fiáveis" (para usar um eufemismo): às segundas, quartas e sextas, não há mortos para ninguém; às terças e quintas, a coisa pode chegar aos cem. Só Deus sabe o que acontece no fim de semana.

Moral da história?

Sim, as luzes da mídia estão sobre o homem branco. Mas isso também se explica porque regimes autoritários e cleptocratas transformam os seus cidadãos em fantasmas invisíveis.

Se a mídia não olha para os doentes negros é porque eles não existem nas estatísticas dos seus próprios países.

Ou, melhor dizendo, eles só existem porque há jornalistas ocidentais dispostos a viajar ao inferno para contar. E, claro, porque existem também médicos e enfermeiros ocidentais que arriscam a vida (e encontram a morte) para salvar esses fantasmas.

Ironia: o fardo do homem branco é carregar hoje às costas o fardo do homem negro.

Por: João pereira Coutinho Publicado na Folha de SP

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