terça-feira, 3 de julho de 2012

O FANATISMOS DE ROUSEAU

“Ó Liberdade! Quantos crimes são cometidos em seu nome!” (Madame Roland, guilhotinada durante a Revolução Francesa) 

Isaiah Berlin dissecou diversos pensadores da era romântica, e um dos alvos preferidos foi Rousseau. Embalados pelos avanços nas ciências naturais, liderados por Newton, muitos filósofos do século XVIII aderiram a um discurso que apelava para a autoridade da “natureza” no que se refere às ciências sociais também. Sem essa linguagem nova e “científica”, as teorias sociais perdiam credibilidade. Rousseau foi o mais influente desses pensadores, e mereceu atenção especial nas análises de Berlin. Rousseau denunciava os falsos profetas, acreditava Berlin, porque eles usurpavam um direito que era só seu: “a natureza realmente falava, mas só ele ouvia sua voz clara e forte, e podia dizer aos outros como aprender a escutar e obedecer”. Tratava-se de um monopólio dos fins. Berlin desfere seu ataque fulminante: “Sua polêmica contra a babel de vozes que afirmavam falar em nome da natureza é arguta, divertida e convincente, até nos darmos conta de que ele é como o lunático que rejeita as pretensões de outros internos do hospício que dizem ser Napoleão porque ele próprio é Napoleão”. Alguns motivos do estrondoso sucesso do pensamento de Rousseau nas gerações seguintes, segundo Berlin, foram sua fala direcionada às emoções e seu estilo sentimental e até carregado de uma intensidade violenta. Seu escrito era demagogo, apaixonado. Rousseau declarou a Diderot que estava sufocado pela sofisticação corrupta das grandes cidades e pela tagarelice dos intelectuais. Ele recorria então à sabedoria das pessoas simples, como camponeses e crianças. Este discurso repetia aquilo que muito cristão deve ter dito antes dele, algo que se tornou lugar-comum depois. O “homem bom” era aquele mais distante dos avanços da civilização, eram os seres mais simples. A ignorância é uma bênção, sinônimo de pureza do coração. Isaiah Berlin tenta colocar Rousseau num divã imaginário para extrair possíveis traços psicológicos de sua personalidade. Ele não era um proletário, mas sim um membro característico da respeitável classe média baixa da Suíça, que “se afastou de seu meio e tornou-se um aventureiro boêmio sem ocupação fixa em revolta contra a sociedade, mas ainda com o temperamento e as crenças de um petit bourgeois provinciano”. Para Berlin, as investidas de Rousseau contra a aristocracia, o refinamento nas artes, a pesquisa científica desinteressada, era menos um grito por justiça do que a “desconfiança perene em relação à liberdade e à independência moral ou intelectual nutrida por certos representantes suspeitos da classe média”. A lupa de Berlin continua vendo melhor por trás do véu aparente de nobreza: “Rousseau é um sociólogo pobre, ou melhor, um sociólogo deliberadamente sem visão, que lançou areia nos olhos de muitas gerações ao representar como idílio rústico ou simplicidade espartana — a sabedoria imemorial da terra — o que de fato não passa de uma expressão daquela perspectiva burguesa e impregnada de consciência de classe das pequenas cidades, reconhecidamente numa condição anormal e doentia, que o fez peculiarmente consciente dos vícios e erros dos últimos dias de uma ordem feudal em derrocada e peculiarmente cego às deficiências daquela perspectiva social e daquelas idéias que seu gênio impetuoso tanto contribuiu para entronizar no seu lugar”. A vida em sociedade exige concessões, a liberdade não pode ser plena, absoluta, e algum tipo de compromisso utilitário se faz necessário. Não podemos ter tudo, sendo o homem o que é, e esta tem sido a visão da maioria dos reformadores de bom-senso. Mas Rousseau não poderia aceitar este “meio-termo”, esta contemporização. A revolta em Rousseau o leva a deificar a liberdade como “algo de tal ordem que corrompê-la é a suprema estultificação; qualquer tentativa de restringi-la, atingi-la, é um sacrilégio; o valor da liberdade é absoluto”. Enquanto alguns filósofos pensam em sacrificar parte da liberdade para ter ordem, ou vice-versa, Rousseau não admite sacrificar nenhuma das duas coisas. Ele precisa encontrar, portanto, uma solução, um ponto central, e somente um, no qual os desejos do indivíduo e as necessidades da sociedade coincidem com precisão, um ponto no qual a liberdade de um homem não entra em conflito com a liberdade de qualquer outro. Neste ponto, os homens escolhem livre e voluntariamente uma ordem rigorosamente determinada, e assim eles são plenamente livres e obedecem inteiramente às leis. A liberdade total se torna idêntica à conformidade total. Rousseau procura este ponto único “com a astúcia fanática de um maníaco”. Para diversos pensadores, a fronteira na qual a liberdade individual termina para dar legitimidade à autoridade constituída é mutável, depende de ajustes, compromissos, e sempre será imperfeita devido à própria imperfeição humana. Para Rousseau, a liberdade era um valor absoluto, ainda que tal conceito não fosse tão claro assim. Berlin faz uma analogia interessante, afirmando que “a liberdade humana era para ele o que a posse de uma alma imortal era para o cristão ortodoxo, e na verdade tinha um significado quase idêntico a seus olhos”. A solução encontrada por Rousseau para seu dilema está em seu “Contrato Social”, e se resume à doutrina da “vontade geral”. Para Berlin, ele a prega com “o peculiar fanatismo com que um homem propõe uma solução que descobriu por si mesmo, e com a intensidade quase lunática de um visionário um tanto maluco que demonstrou alguma solução cósmica de forma convincente por meio de alguma aritmética privada peculiar”. Os homens devem desejar livremente “aquilo que é a única coisa correta a desejar, e tal coisa deve ser igual para todos os homens justos”. O homem continua livre porque obedece a regras que não foram impostas de fora, mas impostas por ele mesmo, e ele acredita nelas. Não há mais um equilíbrio instável entre liberdade e ordem, com fronteiras incertas entre as duas, preservadas precariamente por instituições imperfeitas; liberdade e autoridade “não só não são incompatíveis, como em seu estado puro coincidem de forma total; são uma só e idênticas”. E se os homens agirem racionalmente, eles vão compreender isso, tal como Rousseau compreendeu. Quem objetar a esse tipo de libertação plena só pode ser irracional, incapaz de saber o que é liberdade verdadeira. Surge então a poderosa — e perigosa — ideia de que podemos forçar alguém a ser livre. Não existe espaço para discordância do que é adequado entre liberdade e conformidade, tampouco há tolerância com divergências ou compatibilidade com qualquer forma de empirismo. Os fins são racionais, apriorísticos, incontestáveis, e todo homem racional deve concordar com eles. Rousseau trata sua grande descoberta “como uma espécie de pedra filosofal que ele próprio encontrou, um adamo que transmuta todas as coisas em ouro, e a ela então se agarra com uma intensidade fanática”. Por cima de uma natureza perturbada, imaginativa e violentamente impressionável, ele joga a “camisa de força de um aparato lógico rígido, em cujos termos fingem formular argumentos de um tipo enganosamente claro, sistemático e racional”. Em suma, Rousseau é “um louco com um sistema”. E são inúmeros os seus herdeiros desde então, espalhando fanatismo ideológico seguido, muitas vezes, do sangue das vitimas inocentes sacrificadas no altar da busca utópica pelo modelo perfeito, pela liberdade plena.

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