quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A UNIVERSIDADE, A VERDADE E A EDUCAÇÃO LIBERAL



Quid est veritas?


Essa pergunta retórica, eternizada pelo pusilânime Pôncio Pilatos de modo quase irônico, resume de maneira bastante eloqüente a essência do espírito da universidade hoje em dia. Dentro do ambiente acadêmico, o simples desejo de dar a conhecer que se acredita em uma verdade de fato, sólida e atemporal, dá ensejo a reações negativas as mais diversas, que vão do enxovalho à perseguição. Em todo o mundo, um único mantra parece ecoar em praticamente todas as universidades renomadas, até mesmo nas mais tradicionais: a verdade é relativa, não passa de um constructo arbitrário cujo único critério de validade é o subjetivismo. Assim sendo, não há absolutamente nada que deve ser conhecido por si mesmo, que possui um valor intrínseco e que, assim, conduza o homem a um fim mais elevado: o valor do conhecimento é medido em virtude de sua utilidade, de sua possibilidade de instrumentalização visando a atingir determinados fins materiais específicos, sejam eles aumentar a produtividade, proteger o meio-ambiente ou promover a afamada justiça social.

Todavia, não é para isso que surgiu a universidade. John Henry Newman, grande cardeal e intelectual inglês do século XIX, foi um dos grandes defensores da ideia original de universidade. Para Newman,
   há um fim humano, um fim não instrumental, para a educação superior – um fim cujo valor reside em si mesmo. Para Newman, o objetivo de uma educação universitária é sempre a “ampliação da mente”, ou “iluminação”, ou “filosofia”. No entanto, ele não se satisfaz com nenhum desses termos. Ao contrário, ele evoca um termo que pode ser aplicado à mente da mesma forma que “saúde” é aplicada ao corpo. [...] Desejamos saúde em virtude do que um corpo saudável nos permite fazer, mas também por si mesma; e o mesmo também ocorre com uma mente “ampliada” ou “iluminada”. E, assim como a saúde do corpo é alcançada quando se exercitam todas as suas partes, Newman defende que a saúde do intelecto é alcançada através da educação mais aberta possível. (HENRIE , 2000. Tradução livre. Grifos do original.)
Em sua obra “The Idea of a University”, Newman aponta (tradução livre):

Nosso desiderato não são os modos e hábitos dos cavalheiros [...] mas a força, a firmeza, a compreensão e a versatilidade do intelecto, o comando sobre nossos próprios poderes, a justa estimativa instintiva das coisas quando passam ante nós, o que é um dom natural, mas que comumente não é adquirida sem grande esforço e o exercício dos anos. [...]

Quando o intelecto for apropriadamente treinado e formado para possuir uma visão ou compreensão conexa das coisas, demonstrará seus poderes com maior ou menor efeito de acordo com sua qualidade ou capacidade particular no indivíduo. No caso de muitos homens, far-se-á se sentir no bom-senso, no pensamento sóbrio, na razoabilidade, na candura, no autocontrole e na firmeza de visão, que os caracteriza. Em alguns, terá desenvolvido hábitos de negócios, poder de influenciar os outros e sagacidade. Em outros, haverá de elicitar o talento para a especulação filosófica e conduzir a mente à eminência deste ou daquele departamento intelectual. Em todos, será a faculdade de entrar com relativa facilidade em qualquer matéria do pensamento e assumir com habilidade qualquer ciência ou profissão.

Quando comparamos essas palavras de Newman com a realidade do mundo acadêmico, não apenas sentimos, mas vemos que algo se perdeu no meio do caminho – algo valioso, verdadeiramente imprescindível, que vivifica a vida intelectual de uma forma completamente alheia à estéril concepção utilitarista de hoje.

Se a universidade de hoje é apenas uma sombra distorcida da universidade original, como empreender a busca pela verdade? James Vincent Schall, S. J., professor de Filosofia Política da Georgetown University, aborda essa questão da seguinte forma (tradução livre, grifos do original):
O que pode ser essa outra forma de aprendizado? A primeira coisa a lembrar é que a maioria das grandes mudanças, dos grandes encontros com a verdade, com o que é bom, começa em lugares tranquilos e insignificantes. Frequentemente, começos pequenos surgem como que por acaso, ainda que mesmo os acasos sejam subsumidos em nossa vocação. Assim, o que nos faz acordar pode ser o que Aristóteles chamou de “admiração”, uma curiosidade sobre o que algo significa ou é. Pode ser um amor, uma consciência de que não estamos completos por nós mesmos. Mesmo nosso conhecimento começa não em conhecendo nos mesmos, mas conhecendo algo não somos nós, alguma outra coisa que seja.

Mais adiante, Schall esclarece:

O aprendizado descrito aqui é chamado de “liberal”, ou seja, libertador. Dá muito trabalho ser livre. Mesmo assim, precisamos de algum caminho para nos tornarmos o que somos. Ninguém pode fazê-lo por nós, mas também não podemos fazê-los simplesmente por nossa conta. Precisamos de guias para encontrar guias. Algo que Aristóteles falou certa vez deve ser reiterado aqui: muitas pessoas que não conhecem livros são, literalmente, muito sábias, às vezes mais sábias do que os ditos educados. Talvez seja o caso de nosso avô ou de algum operário ou camponês comum. Devemos conhecer e respeitar as experiências das pessoas comuns. Onde quer que haja uma mente e uma realidade, alguém pode encontrar a verdade. De modo algum isso apequena nossa vontade de conhecê-la de modo mais completo e buscar a orientação de bons livros, bons professores, bons pais, boas bibliotecas e bons amigos.

Para se buscar a verdade, não é necessário abdicar da formação acadêmica e se tornar uma espécie de intelectual recluso que vive, à sua maneira peculiar, uma vida monástica de contemplação das coisas mais elevadas da Criação. Antonin-Dalmace Sertillanges, em “A Vida Intelectual”, defendia que a aplicação disciplinada do intelecto por duas horas ao dia, já considerando todas as atividades pré-existentes no dia, já seria suficiente para cultivar o raciocínio e a capacidade contemplativa necessária a uma vida intelectual.


Evidentemente que isso não é algo que se obtém em curto prazo. Fomentar uma vida intelectual e conhecer a verdade por si mesma é mais do que um empreendimento com duração determinada: é um compromisso para a vida inteira. Isso requer um sentimento verdadeiro de amor à verdade, um desejo sincero de conhecer as coisas como elas são, não baseado na crença de que, assim, poder-se-á haurir benefícios especiais ou facilidades, mas baseado na sólida crença de que esse é o propósito e o fim último da vida do homem sobre a terra: conhecer a verdade.

Para aqueles que estão interessados em iniciar essa busca, recomendo a leitura de “A Student’s Guide to Liberal Learning”, de James V. Schall, S. J., disponível gratuitamente e na íntegra no site do projeto College Guide – uma iniciativa do Intercollegiate Studies Institute. É um ensaio fabuloso que pode ajudar muito a preparar-se de maneira adequada para empreender essa longa e grandiosa jornada rumo à verdade.

Felipe Melo

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