terça-feira, 28 de agosto de 2012

QUEM DEVE ARCAR COM OS CUSTOS DA CRISE?


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Nos últimos meses, à medida que foi se tornando mais evidente que a crise empobreceu a todos, especialmente na Europa, os agentes econômicos começaram a adotar a inteligente estratégia de tentar colocar o ônus de suas irreparáveis perdas sobre os ombros de seus conterrâneos: os trabalhadores não querem ter seus salários reduzidos, os maus empresários se negam a liquidar suas empresas insolventes, os investidores não aceitam perder o capital que empregaram de forma economicamente insustentável, os recebedores de subsídios e de auxílios estatais se opõem a tê-los cortados etc. Em suma, ninguém quer ver sua qualidade de vida ser solapada, e todos optam por transferir os custos da crise para o resto de seus concidadãos.

Com o intuito de justificar este comportamento egoísta, muitas pessoas estão recorrendo a um argumento aparentemente plausível: "Eu não sou o culpado pela crise. Portanto, não tenho por que pagar por ela." Ou, dito de outro modo, aqueles que são os reais culpados pela crise é que deveriam arcar com a totalidade — ou, ao menos, com a maior parte — de seus custos. Quem poderia se opor a este argumento? Será que pode haver alguém tão desalmado ao ponto de defender que os culpados pela crise não têm de pagar nada por ela?

E, como é óbvio, a partir deste ponto surgem as mais variadas explicações sobre quem são os culpados (que fique claro que não estamos falando de uma culpabilidade penal, mas sim de uma meramente econômica). Cada um, segundo sua cartilha e sua agenda ideológica, tenta puxar a brasa para a sua sardinha com o intuito de defender uma determinada linha de atuação política. Por exemplo, é comum ouvir que a crise foi causada pelos ricos e não pelos pobres; pelos capitalistas, e não pelos trabalhadores; pelos banqueiros, e não pelos devedores; pelos maus políticos, e não pelos bons; pela dívida privada, e não pela pública; pelo gasto privado, e não pelo público; ou pelas políticas 'neoliberais', e não pelas socialistas. Assim, chega-se à inevitável conclusão de que nem os pobres, nem os trabalhadores, nem os devedores, nem os 'bons' políticos e nem o setor público devem sofrer questionamento algum, e que a fatura deve ser paga unicamente pelos responsáveis pelo desastre — a saber, os ricos, os capitalistas, os banqueiros, os maus políticos e as empresas.

Mas, afinal, seriam estes realmente os culpados? Seria possível, dentre todos os que contribuíram para causar a crise, fazer uma separação clara entre os genuinamente inocentes e os que merecem receber objetivamente uma reprovação moral? 

Por exemplo: o empresário da construção civil que se endividou para construir mais moradias porque pensava que os preços ainda subiriam por um bom tempo, ou o gerente de banco que jamais previu o estouro da bolha e decidiu continuar ofertando hipotecas baratas — eles são culpados? Se sim, seriam também culpados os trabalhadores mais pobres que, levados pela crença de que os juros permaneceriam baixos e que jamais perderiam seu emprego, se endividaram sobremaneira tomando empréstimos para a aquisição de imóveis? Seria também culpado aquele aposentado que avalizou a hipoteca do seu neto ou que manteve seu dinheiro depositado em um sistema bancário que, como o espanhol e o americano, estava realizando empréstimos ruins de maneira generalizada? Seria também culpado o autônomo não endividado cujos lucros dependiam da renda artificial gerada pelo processo de endividamento geral e que, com a recessão, descobriu-se sem um mercado consumidor para o qual vender seus bens e serviços?

Uma resposta muito comum afirma que, embora todos estes tenham contribuído para causar a crise, não se pode reprovar moralmente a todos da mesma maneira. Afinal, do empresário e do gerente de banco são exigidos determinados conhecimentos específicos e uma determinada formação acadêmica que não necessariamente devem ser exigidos nem do trabalhador mais pobre, nem do aposentado e nem do autônomo. No entanto, faz realmente algum sentido exigir de um empresário ou de um gerente de banco alguns conhecimentos muito avançados sobre questões de macroeconomia e de conjuntura econômica em torno das quais nem sequer existe consenso entre os melhores economistas do planeta, e cujo conteúdo está em constante evolução? Ambos são homens práticos certamente afastados do mundo acadêmico, sem conhecimentos teóricos profundos. Ou, fazendo-se uma abordagem por outro prisma, não seria mais justo e coerente partir do outro extremo e argumentar que todos os cidadãos deveriam ter algumas noções mínimas de finanças, as quais lhes permitiriam não cair na tentação do endividamento barato ou dos investimentos insensatos?

A questão não é dizer que não podemos ter uma opinião formada e justificada sobre quem deve ser culpado pela irrupção desta ou de qualquer outra crise (eu tenho a minha: os culpados são os bancos centrais monopolistas e suas expansões monetárias, que aditivam a expansão do crédito bancário). A questão é que não é possível separar com objetividade quem, de um lado, contribuiu de alguma maneira para causar a crise e quem, de outro, teve um comportamento moralmente reprovável.

A virtude de um mercado desimpedido livre de interferências políticas é que ele faz com que a maior parte dos prejuízos provocados por uma crise recaiam justamente sobre aqueles que mais contribuíram para gerá-la, independentemente de qualquer crença quanto à necessidade de uma reprovação moral por sua atuação. Os bancos de reservas fracionárias que inflam bolhas vão à falência e não são socorridos, de modo que seus acionistas, credores e trabalhadores perdem todo ou grande parte do capital (mal) investido; aqueles que sehipotecam demasiadamente perdem seu imóvel; os trabalhadores que se especializam em atividadesespecificamente criadas pela bolha veem cair seu valor de mercado assim que a bolha estoura; os empresários que investiram excessivamente em setores dependentes da contínua expansão do crédito vão à falência e perdem todo o seu capital. Etc.

Aqueles que realmente querem que apenas os causadores da crise paguem por ela têm, necessariamente, de defender um mercado livre e desregulamentado, pois somente este arranjo faz com que os prejuízos recaiam exclusivamente sobre aqueles que investiram de maneira insensata e sobre aqueles que participaram lucrativamente deste arranjo artificial. Adicionalmente, somente um mercado genuinamente livre de interferências políticas faz com que preços e custos se ajustem prontamente à nova realidade, sem que o estado se ocupe de socorrer os falidos e de manipular as regras do jogo.

No entanto, justamente quando se diz que nem todos que contribuíram para a crise devem pagar por ela, mas sim apenas aqueles a quem cabe uma reprovação moral ("os culpados"), é que se abre uma porta para que políticos intervenham e redistribuam a renda dos cidadãos de acordo com critérios arbitrários e segundo os desejos de grupos de interesse que levaram estes políticos ao poder. Quando se aceita esta prerrogativa, pavimenta-se o caminho para que demagogos se aproveitem da situação e elaborem suas narrativas pessoais (e autoindulgentes, é claro) sobre a crise com o objetivo de transpor os custos sobre aqueles de quem mais têm raiva — sem que estes sequer tenham contribuído minimamente para a geração da crise (por exemplo, quando propõem elevar os impostos sobre empresas e trabalhadores que investiram sensatamente sua poupança e, como consequência, viram crescer ininterruptamente seus lucros antes e depois da crise).

Não obstante, a realidade é que esta tentação populista é incapaz de alcançar seus objetivos, pois, na maioria dos casos, é impossível fazer com que apenas os culpados paguem pela destruição gerada pela crise. Peguemos um exemplo extremo de uma culpabilidade indiscutível: um roubo. Imagine que um ladrão, sem propriedades e sem herdeiros, rouba a carteira de um cidadão, queima as cédulas de dinheiro que estavam dentro dela e, logo em seguida, se suicida. Seria possível ele ressarcir sua vítima? Não. Neste caso, não restaria à vítima nenhuma outra opção senão arcar com o prejuízo, embora ela não tenha tido absolutamente nenhuma culpa na situação.

Raciocínio similar pode ser feito em relação aos banqueiros que fizeram investimentos insensatos, às pessoas que não possuíam conhecimentos financeiros e que contraíram excessivas dívidas hipotecárias, ou aos trabalhadores que estavam empregados naqueles setores cuja existência dependia da continuidade da expansão do crédito barato. Talvez não possamos classificá-los como culpados (embora tal proposição seja discutível), mas seria ilusório crer que poderiam sair ilesos: os investimentos insensatos simplesmente se evaporaram e os bancos não têm como renová-los ou substituí-los (por isso muitos estão quebrados); a dívida hipotecária não irá desaparecer simplesmente porque alguns consideram injusto o devedor ter de pagá-la (e, se as dívidas não forem quitadas, quem irá sofrer serão as pessoas desavisadas que colocaram seu dinheiro no banco); e os desempregados provavelmente não encontrarão emprego a menos que rebaixem suas expectativas salariais ou gastem dinheiro do próprio bolso para aprender alguma especialização técnica demandada por empresários.

Quando se diz que nenhuma destas pessoas inocentes deveria pagar pelos custos da crise, imediatamente se está sugerindo que são os políticos que devem decidir quem são os culpados. E se aqueles que forem subjetivamente declarados culpados não puderem reparar os danos causados, então simplesmente será proposto algum tipo de redistribuição de renda à custa dos pagadores de impostos: um pacote de socorro para pequenos investidores, um perdão da dívida para os hipotecados ou um conjunto de empregos públicos para os desempregados. Idealmente, e para tornar mais digerível tal política, os pagadores de impostos penalizados pertencerão à mesma categoria ou classe social dos culpados: assim se chega à conclusão de que se alguns empresários (ou alguns ricos, ou alguns banqueiros) são culpados, então todos os empresários terão de arcar com os custos — por terem tido algo a ver com a geração da crise — e, consequentemente, terão de pagar mais impostos.

No final, portanto, partindo-se da premissa de que somente os culpados deveriam pagar pela crise, chegamos ao resultado final de que pessoas que não tiveram a mais remota ligação com a crise terão de pagar boa parte da conta, sem que tal punição em absolutamente nada contribua para a resolução da mesma. Afinal, por mais que alguns queiram ocultar, uma crise não é a materialização econômica do Juízo Final, mas sim um período durante o qual toda a estrutura de produção da economia, a qual foi desajustada por seguidos erros de investimentos causados pela expansão artificial do crédito, tem de se reajustar a níveis sustentáveis e racionais para voltar a gerar riqueza. 

Durante este processo de reestruturação, é inevitável que o mercado atribua prejuízos àqueles indivíduos que tomaram decisões ruins durante os anos da expansão econômica artificial. O errado seria justamente querer alterar caprichosamente estas atribuições de prejuízos e passar a redistribuí-las segundo caprichos e desejos subjetivos — seja socorrendo bancos falidos ou incorrendo em maciças obras públicas para dar emprego aos desempregados. Neste caso, muito provavelmente serão penalizados os justos e absolvidos os transgressores, o que fará apenas com que a superação da crise seja postergada.

Muito além de meros ilícitos penais, a interação social não manipulada pelo estado é quem deve determinar quem deve absorver os prejuízos da crise. Não se deve dar ao governo instrumentos para impor nossas tendenciosas e subjetivas percepções de culpabilidade sobre terceiros. Tal pretensão seria simplesmente um subterfúgio para se planejar de maneira centralizada a (não-)recuperação da economia: um propósito que, como todas as formas de socialismo, não apenas está destinado a fracassar sempre, como também a degenerar em fortes e perigosas inquietações sociais, dado que algumas pessoas irão jogar seus prejuízos sobre todas as demais.


Juan Ramón Rallo é diretor do Instituto Juan de Mariana e professor associado de economia aplicada na Universidad Rey Juan Carlos, em Madri.

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