domingo, 9 de setembro de 2012

ASSIM SE COMPORTA O JORNALISMO NOSSO DE CADA DIA


Alguém ainda lembra do último massacre de ianomâmis? Aquele ocorrido dia 5 de julho passado e denunciado pela Horonami Organización Yanomami (HOY), organização que reúne indígenas ianomâmis? Segundo Luis Ahiwei, secretário-executivo da ONG, 80 índios teriam sido massacrados por garimpeiros brasileiros, que atiraram, de helicóptero, contra um shabono (cabana), onde restaram só cadáveres carbonizados. A notícia surgiu na imprensa international dia 29 de agosto e rolou mundo, desde a BBC à France Presse, desde o El País a L’Express, desde o Süddeutsche Zeitung ao New York Times. Apenas nove dias são passados e ninguém mais fala no bárbaro massacre. 

Os jornais abandonaram o assunto como se jamais o tivessem comentado. Publicaram apenas uma nota do governo da Venezuela, assegurando não ter ocorrido massacre algum no país. Nenhuma errata, nenhum pedido de desculpas aos leitores pela barriga. Em meio a isso, os agentes do mal – isto é, um grupo de garimpeiros brasileiros – foram satanizados urbi et orbi. Como no massacre dos ianomâmis – que não houve – em 1993, na aldeia Haximu, quando quatro garimpeiros foram condenados sem que se tivesse encontrado cadáver algum.

Os jornalistas têm-se se revelado de gatilho fácil quando se trata de denunciar atentados aos “direitos humanos”. Isto é, quando brancos maltratam negros, quando europeus humilham africanos, quando garimpeiros matam índios. Não precisam nem checar os fatos. Basta que surja a denúncia. Se é de maltrato de brancos contra “excluídos”, os fatos só podem ser verdadeiros.

Comentei no início do ano um artigo de Rosa Montero, colunista de El País, publicado em maio de 2005. Vamos ao caso, conforme relata a cronista.

Em um comedor universitário na Alemanha, uma estudante pega uma bandeja de comida do selfservice e senta-se em uma mesa. Nota que esqueceu os talheres e vai buscá-los. Ao voltar, vê com surpresa que um jovem negro está comendo em sua bandeja. Duvida um momento, mas por fim, condescendente, senta-se para dividir sua comida com o intruso, que se mostra amigável e sorridente. Quando terminam de comer, o rapaz vai embora e, ao levantar-se, ela se dá conta de que sua bandeja está intacta, junto a seu abrigo, na mesa ao lado.

Comovente, não? A alemã racista acha que o negro apoderou-se de sua bandeja. Em um laivo de condescendência, consente em reparti-la com o negro. O bom negrinho nada objeta, apesar de a bandeja ser sua. A arrogância e o racismo europeus confrontam-se com a humildade e a generosidade africanas. Dá vontade de chorar.

Ao final do artigo, Rosa Montero alertava: “Dedico esta historia deliciosa, que además es auténtica...”. Deliciosa, pode ser. Mas não era autêntica. Mais ainda, era plágio de ficções. Constava do livro Galletitas, de Jorge Bucay. Outros situam sua origem em uma narrativa do escritor britânico Douglas Adams, publicado no final dos 70. Ou ainda a um conto juvenil da escritora Federica de Cesco – adorável suissesse que tive a honra de conhecer em meus dias de Estocolmo – intitulado "Spaghetti für zwei". 

Quem não lembra do caso da brasileira que foi atacada na Suíça, em fevereiro de 2009, por um grupo de skinkeads e teve o corpo retalhado com símbolos nazistas? A Folha de São Paulo mancheteou com gosto:

BRASILEIRA É ATACADA NA SUÍÇA POR SKINHEADS E PERDE BEBÊS

Paula Oliveira estava grávida de gêmeas; ela foi agredida em cidade perto de Zurique
Cortes a estilete feitos nas pernas da advogada formam a sigla do SVP, partido suíço que apoia política anti-imigrante
 

O texto é assinado pela reportagem local. Duas fotos frontais, da barriga e das pernas da moça, mostram escoriações onde se vê nitidamente a sigla SVP. Reproduzo trecho da notícia: 

Uma advogada brasileira de 26 anos foi espancada e teve boa parte do corpo retalhado por estilete na Suíça por três homens brancos e carecas que pareciam skinheads, na noite de segunda-feira.
Grávida de três meses de gêmeas, Paula Oliveira sofreu aborto na mesma noite, quando foi socorrida e internada em hospital universitário de Zurique. Ela continua em repouso, mas já não corre mais risco de morte.
 

A notícia correu mundo, fez a primeira página de centenas de jornais, tanto na Europa como na América Latina. Os cronistas da Folha, desde Clóvis Rossi a Bárbara Gância e Eliane Cantanhêde deitaram verbo em suas colunas, evocando a xenofobia e um ressurgimento do nazismo. Rossi, em indignado artigo, vituperava:

O galope da selvageria

O atentado contra a advogada brasileira Paula Oliveira nas imediações de Zurique é um desses episódios tão bestiais que dá vontade de passar ao largo, fingir que não leu, para não ter que aceitar que a humanidade ainda oferece tal grau de selvageria.
 

Dramática, Cantanhêde não deixava por menos:

A Paula somos nós

Não houve roubo nem estupro. Logo, até ordem em contrário, só há uma explicação plausível para a selvageria de três homens contra a advogada brasileira Paula Oliveira, de 26 anos, que perdeu bebês gêmeos depois de espancada e cortada com estilete por três skinheads na Suíça: xenofobia.
Os skinheads não nasceram com a crise internacional, e a covardia contra Paula não foi a primeira nem será a última. Apesar disso, o episódio só reforça a sensação, ou o temor, de que as dificuldades econômicas e o crescente desemprego exacerbem o protecionismo e a xenofobia nos países ricos.
 

Bárbara Gância, apocalíptica, evocava Orwell:

Emmanuel Goldstein voltou

VAI COMEÇAR tudo de novo. A Europa não digere bem o diferente, não gosta nem mesmo dos seus. Na Itália, e também na Suíça, cidades separadas por coisa de 40, 50 quilômetros falam dialetos ou línguas completamente diferentes e, muitas vezes, se odeiam.
 

Era tudo mentira da moça. Forjara o atentado para recuperar um noivo renitente. Para isso, chegou a falsificar exames ginecológicos. Pelo que sei, ficou tudo por isso mesmo. Nem os jornais fizeram um mea culpa, nem Rossi nem Gância nem Cantanhêde admitiram que caíram no conto da xenofobia como criancinhas ingênuas numa aula de catecismo.

A crônica fácil é uma tentação irresistível, particularmente para quem escreve todos os dias. Uma menina jovem, bonita, oriunda de país subdesenvolvido, além disso advogada, vivendo longe dos seus e tentando construir sua vida em país rico e hostil, é retalhada a faca por jovens nazistas na Europa. Mais ainda: estava grávida – de gêmeos – e abortou. A vítima já nem é só uma, mas três. Contraposição perfeita e simétrica, o bem e o mal absolutos. A fêmea indefesa e os machos prepotentes. A inocência dos trópicos e a perversidade do norte. A crônica está feita. Só falta encher a lingüiça com uma série enfadonha de lugares-comuns humanísticos. 

Ambos os casos cheiravam a mentira desde o início. Mas nenhum jornalista se perguntou, no caso da alemã, se a moça não lembrava do que pusera no prato ao servir-se. Pois é inviável que tivesse escolhido os mesmos alimentos que o africano. 

No caso da brasileira, os lúcidos jornalistas não se preocuparam em saber onde estavam os dois fetos que teriam sido abortados pela moça. Sequer notaram que as fotos da vítima eram sempre frontais e os ferimentos estavam localizados em partes ao alcance das mãos. Seria de supor-se que uma moça, quando atacada, se debata. Ora, se se debatesse, as letras riscadas nas pernas e na barriga não teriam a regularidade que apresentavam. 

No último “massacre” dos ianomâmis, “testemunhas que estiveram no local da matança afirmaram que os mineiros atearam fogo a uma casa comunal dos indígenas, pois encontraram os corpos dos ianomâmis carbonizados ao passar pela tribo”. Será que nenhuma das testemunhas teve a lembrança de tirar uma foto dos cadáveres carbonizados? 

Assim se comporta o jornalismo nosso de cada dia. Ao assumir potocas que se coadunam com a finada luta de classes, mostram sua extração. Jornalistas reproduzem mentiras ideológicas com gosto e sequer pedem desculpas aos leitores. Como se nada de grave tivesse acontecido, continuam assinando suas matérias. Sabem que, se mentirem conforme o gosto da época, não tem nada a temer por seus empregos.
Por: Janer Cristaldo

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