QUANDO TUDO O QUE SE ESCREVE TIVER SE DESFEITO EM FARRAPOS, QUANDO ATÉ MESMO OS MELHORES TIVEREM SE TORNADO APENAS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA JAMAIS CONSULTADA, AS PALAVRAS DE UM PENSADOR AINDA ESTARÃO VIVAS PARA MOSTRAR, SOBRE RUÍNAS DOS TEMPOS, A PERENIDADE DO ESPÍRITO HUMANO.
domingo, 1 de abril de 2012
De Varsóvia a Havana
De Varsóvia a Havana - DEMÉTRIO MAGNOLI
O Estado de S.Paulo - 29/03/12
O papa não é o mesmo, a cidade é outra e os tempos mudaram, mas o paralelo é incontornável. Quando, em 1979, João Paulo II falou numa Varsóvia submersa no som dos sinos que repicavam, começou a acabar a história do comunismo europeu. Ontem, em Havana, Bento XVI falou aos cubanos, retomando os antigos temas da verdade, da liberdade de consciência, de fé e de expressão. Será esta a centelha do colapso de um comunismo caribenho que copiou os traços essenciais do sistema inventado na URSS de Stalin?
Não é a primeira visita papal a Cuba. João Paulo II falou em Havana em 1998, iniciando uma ambígua aproximação entre a Igreja e o regime. De lá para cá, como explica a blogueira Yoani Sánchez, "podemos rezar em voz alta, mas criticar o governo continua a ser pecado, blasfêmia". Há 14 anos a sentença final do papa foi sobre a liberdade do espírito. Será viável retalhar o princípio da liberdade em fatias, tolerando uma delas para conservar o veto às demais?
A interlocução entre a Igreja de Cuba e o governo dos Castros propiciou a libertação recente de dezenas de prisioneiros de consciência. Entretanto, na maioria dos casos, a liberdade foi reduzida a um "direito à deportação", uma barganha que reforça a narrativa política do governo cubano. Dias atrás, o arcebispo de Havana permitiu a remoção de um grupo de dissidentes que se abrigara na Igreja da Caridade e publicou uma nota no jornal do Partido Comunista, escrita nos tons inconfundíveis do oficialismo. A liberdade de religião poderá florescer num edifício social erguido sobre o dogma do monopólio partidário da verdade?
Cuba é irrelevante sob os pontos de vista da economia e da geopolítica globais. É, contudo, um teatro fundamental para o debate sobre o tema da liberdade. Os Castros reconheceram, literalmente, o fracasso do sistema cubano. Mas os muros da ilha caribenha continuam cobertos pela palavra de ordem apocalíptica que condensa a doutrina do poder: "Socialismo ou morte". A disjunção lógica encontra uma solução dupla, nas esferas da política e da linguagem. Política: as reformas destinadas a criar uma economia mista, estimulando a iniciativa privada e emulando o "modelo chinês". Linguagem: a produção de um novo significado para "socialismo", que passa a designar exclusivamente o papel dirigente do Partido Comunista. Terá futuro um regime que admite fatias diversas de liberdade, mas rejeita de modo absoluto o exercício das liberdades políticas?
No universo da lógica, o reconhecimento oficial do fracasso do sistema traz implícita a admissão da falibilidade histórica do Partido Comunista. Disso seguiria o corolário da abertura política, com a promoção de um debate nacional sobre as alternativas disponíveis de organização do poder e da economia. No entanto, paradoxalmente, Raúl Castro escolheu a última conferência partidária como ocasião para reiterar a regra de ouro do partido único, repetindo o argumento de que todas as demais correntes de pensamento representariam "interesses estrangeiros". A tradição comunista identifica o partido com o proletariado, uma classe social que seria portadora da chave do futuro. Os comunistas cubanos inovam ao identificar o partido com a própria nação, uma proposição com consequências radicais. Seria realista imaginar a hipótese de uma abertura política conduzida por um regime que não distingue o dissidente do espião?
O destino de Cuba tem implicações decisivas para a esquerda latino-americana. Na Europa, as esquerdas aprenderam a lição da URSS e abraçaram o princípio da liberdade política. Na América Latina, onde o pensamento de esquerda se tingiu de nacionalismo e antiamericanismo, um Muro de Berlim mental continua em pé. O teorema da "ditadura virtuosa", que serve como álibi para a fidelidade ao regime castrista, reflete a alma dessa esquerda. "Por que insistir nas liberdades, se há saúde e educação?", indagam quase todos os nossos "intelectuais progressistas". O teorema está apoiado no material quebradiço de que são feitas as lendas. A Cuba pré-revolucionária, de Fulgêncio Batista, já exibia indicadores sociais invejáveis, enraizados nos padrões singulares de colonização da ilha. Mas a lenda deve ser preservada, pois forma a gramática de um precioso livro de memórias. Afinal, sem ela, o que fazer com a pilha incomensurável de artigos, ensaios e discursos consagrados à canonização do castrismo?
Às vésperas da visita de Bento XVI, a Comissão de Relações Exteriores do Senado brasileiro aprovou duas moções que solicitam o fechamento da prisão de Guantánamo e o encerramento do embargo econômico americano a Cuba. Na mesma sessão, curvou-se à vontade de dois parlamentares, do PCdoB e do PSOL, rejeitando moções que pediam o indulto para os presos políticos remanescentes e a concessão de autorização de viagem a Yoani Sánchez. As moções aprovadas, como as rejeitadas, incidem sobre decisões políticas de Estados soberanos - mas, felizmente, ninguém se lembrou do argumento da soberania nacional para poupar os EUA da crítica justa. O critério dúplice usado pelos senadores espelha a duplicidade geral que contamina a esquerda brasileira quando estão em jogo as liberdades e os direitos humanos. Mas como exigir coerência de princípios daqueles que ainda vivem à sombra de um Muro de Berlim ideológico?
Bento XVI pisou em solo cubano mencionando os "presos e seus familiares", palavras simples que não foram pronunciadas nenhuma vez por Lula ou Dilma Rousseff. Cuba não é a Polônia de 1979. Ela não participa de um sistema internacional em colapso nem dispõe da oportunidade de se incorporar a um sistema alternativo, próspero e democrático, constituído pela Europa Ocidental. A ilha caribenha marcha, numa aventura difícil e incerta, rumo a um capitalismo sem liberdades políticas. Seria esse o novo horizonte utópico da esquerda latino-americana?