A palavra "golpe" hoje circula no Brasil em todos os ambientes. O tema tem alcance histórico. O moderno poder político é movido por golpes canhestros ou eficazes. Basta consultar a crônica da Europa para verificar que todos os modos legítimos de mando foram violentados por golpistas de várias tendências. Assim se afirmou o poder de Luís XI e de Henrique IV, o mesmo ocorrendo com Robespierre e, depois, com a família de Napoleão. Pétain e Laval encerram a fieira do golpismo. Na Inglaterra, a ditadura de Cromwell afastou monarquistas e liberais (Levellers) da Revolução. Em Portugal, o golpe determinou a luta de Pedro IV, o nosso Pedro I, contra o seu irmão Miguel. O século 20 português conheceu golpes continuados. O fascismo italiano foi uma série de golpes, o mesmo na Espanha. Na Alemanha e na Rússia do século 20, regimes virulentos dominaram o Estado à força de golpes. No Brasil, temos os golpes do imperador, dos regentes, dos oficiais que derrubam a monarquia, de Getúlio, que instalou uma ditadura feroz, dos civis e militares erguidos contra a ordem estabelecida em 1961 e 1964. Depois, o golpe dentro do golpe no Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o golpe do chamado Pacote de Abril, etc. Setores das esquerdas falam hoje da imprensa golpista, no mesmo passo em que as direitas bradam contra o revanchismo. É preciso não banalizar a noção de golpe, cujo fim é impedir a força de adversários no Estado e nas sociedades. Eles são propositivos se buscam impor formas de pensamento e suspendem os mecanismos jurídicos das anteriores formas de poder. Por não terem origem nas urnas, os seus atores se legitimam invocando a urgência (o Estado estar-se-ia corrompendo) ou a necessidade. Foi assim no AI-1: "A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma". O golpe aposenta o voto, cassa mandatos, fecha partidos. Importante estudo vem de Gabriel Naudé nas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640). O texto pode ser lido online na Biblioteca Gallica. Naudé situa o golpe no campo da prudência. Ele critica a divisão tríplice daquela virtude feita por Justo Lipsio: a leve - dissimulação e desconfiança na ordem política; a sórdida, que consiste "em adquirir amizades e serviços de uns enganando outros por falsas promessas e mentiras, presentes e outros meios"; e a virulenta, "que se afasta totalmente da virtude e das leis". Segundo Naudé, tal fracionamento é inútil, pois todas as prudências dependem de uma só, ilustrada por Luís XI, o "Rei Aranha", cuja máxima era: "Quem não sabe dissimular não sabe governar". A regra dos governos reside na desconfiança universal e na dissimulação, que consiste ou em omitir - pretender que nada foi visto pelos poderosos - ou "na ação e na comissão, o ganho de alguma vantagem para atingir alvos por meios encobertos". Omissões e comissões nutrem os poderosos e fornecem "os diversos meios, razões e conselhos usados pelos príncipes para manter sua autoridade e a situação do público" sem "parecer transgredir o direito comum e causar suspeita de fraude e injustiça". Um golpista indicado por Naudé é Dionísio, tirano de Siracusa. Querendo impedir as reuniões dos opositores, agendadas para a noite, ele afrouxava sem alarde as penas dos assaltantes... Golpes incluem o segredo das ações "extraordinárias que os príncipes são levados a executar nos assuntos difíceis e desesperados, contra o direito comum, sem mesmo guardar alguma ordem ou forma de justiça, prejudicando o interesse do particular em benefício público". Rapidez, quebra de costumes e de jurisprudência integram os golpes. Neles "vemos cair a tempestade sem ter ouvido os trovões (...), as Matinas são entoadas antes de o sino tocar, a execução precede a sentença. Fulano recebe o golpe que pensava aplicar, sicrano morre, imaginando estar seguro". Truque jurídico golpista: "O processo é instruído após a execução". A nova ordem livra-se das "pequenas formalidades exigidas pela Justiça". Naudé profetiza os regimes sangrentos do século 20. O golpe (similar ao cometa e ao terremoto), afirma ele, deve ser tido como exceção. (Carl Schmitt tem muito a dizer sobre esse assunto.) Nele o político precisa ser visto "como o pai que cauteriza um membro do filho para salvar a sua vida". O golpe justifica-se ao abolir "privilégios, direitos, franquias, usufruídos por alguns governados em prejuízo da autoridade principesca". Os golpes devem ser radicais como os "cirurgiões competentes que, ao abrir uma veia, tiram o sangue para limpar os corpos de seus humores nocivos". Segundo Naudé, eles precisam ser fulminantes e despercebidos. Não existe ação eficaz se os planos golpistas são publicados. Jamais ocorreu golpe sem a purga dos "membros apodrecidos": o golpe é intolerante e ignora "as pequenas formalidades da Justiça". O que produz a defesa dos golpes em maquiavélicos como Naudé? As guerras dinásticas e de religião na Europa. Mas o golpe, longe de sanar as guerras civis, as perpetua, levando-as ao plano internacional. Quem deseja o convívio político segue as "pequenas formalidades" jurídicas. Sem elas ninguém está seguro, nem mesmo os golpistas, pois os regimes não são eternos e o golpista de hoje é a vítima do golpe, amanhã. A democracia exige simultaneidade irredutível das diferenças ideológicas, nela não existem inimigos, como propõe Carl Schmitt, somente adversários que merecem respeito e jamais ataques fratricidas. Qual o terreno fértil dos golpes? A desconfiança, a dissimulação, os ódios espalhados pelos golpistas que empesteiam e sufocam a vida política. Tais são os primeiros e últimos obstáculos a serem vencidos. Por Roberto Romano |
QUANDO TUDO O QUE SE ESCREVE TIVER SE DESFEITO EM FARRAPOS, QUANDO ATÉ MESMO OS MELHORES TIVEREM SE TORNADO APENAS VERBETES DE ENCICLOPÉDIA JAMAIS CONSULTADA, AS PALAVRAS DE UM PENSADOR AINDA ESTARÃO VIVAS PARA MOSTRAR, SOBRE RUÍNAS DOS TEMPOS, A PERENIDADE DO ESPÍRITO HUMANO.